Gypsy escrita por Arabella


Capítulo 31
Ai, ai, ai, ai.




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A pista de gelo tem a voz de Finn, e por isso a deixo falando sozinha, sem nem olhar para trás começo a patinar mais rápido. Atrás de mim consigo ouvir mais alguns gritos do tipo:

– Não seja tão infantil, se a gente se encontrou aqui deve ser por algum motivo.

– Claro que teve um motivo, Santana armou para cima de mim – falei ainda patinando em alta velocidade.

– Se ela armou ou não isso não vem ao caso. Já que nos encontramos acho que devemos conversar. Assumo que não estou muito feliz com você no momento, mas deveríamos aproveitar a oportunidade.

– Não está feliz comigo?!?! – indago bem alto, porque fico indignada – Olhe primeiro para você, o que você fez não tem perdão.

– Não tem perdão?! Você nem deixou eu explicar o que aconteceu. Pára de criancice Rachel, eu não vou ficar correndo atrás de você em um rinque de patinação gritando detalhes da nossa relação.

– Ex-relação – enfatizo.

Mas mesmo com ele dizendo que não ia correr atrás de mim eu podia sentir sua voz bem perto. Aumentei a velocidade das patinadas, não sei se estou pronta para uma discussão de relação em público. Muito menos se essa relação for com Finn, onde as chances de eu me machucar são muito grandes. Só que, ironicamente, quem acabou se machucando foi ele.

No meio de toda essa perseguição via-patins, senti um movimento perto das minhas pernas, logo após um grito. Olhei para trás e vi que Finn tinha caído.

Bem feito, foi o meu primeiro pensamento. E meu segundo pensamento foi achar que ele estava mentindo.

– Levanta logo daí! – gritei, parada de onde eu estava.

– Ai, ai, ai, ai – era tudo o que ele sabia dizer, bancando o bebê chorão de sempre. Bebê chorão fingido de sempre, eu quis dizer.

– Tem um montão de turistas patinando desgovernados, levanta logo daí, antes que algum deles passe por cima de você.

– Ai, ai, ai, ai, ai... – ele continuava dizendo.

– Você não está notando que eu não vou cair nessa encenaçãozinha sua?

– Está doendo de verdade, porra! – ele berra. Turistas impressionados começam a olhar para a gente com cautela, como se fossemos loucos e desviar do local em que estamos.

– Escuta aqui, – digo me aproximando dele, ameaçadora – eu não sou mais nada sua para ter que suportar mais um dos seus faniquitos. - E com essa explicação final pretendo patinar para longe dele.

– Mas você ainda é minha médica, não é? - Essa pergunta me fez parar. Primeiro porque era uma pergunta traiçoeira e segundo porque ela foi feita com uma grande distorção de sofrimento na voz.

– Sim infelizmente ainda sou – respondo me reaproximando do lugar onde ele estava deitado segurando o cotovelo esquerdo na mão direita com seus ritmados reclames de “ai, ai, ai, ai”

– Que bom (ai, ai, ai) porque eu estou precisando de cuidados (ai, ai, ai, ai).

– Talvez você esteja indo longe demais com essa encenação, só que eu ainda não acredito em você.

– Não me importa que não acredite, ainda assim tem que me examinar, não é mesmo? - Afirmo com a cabeça, meio contrariada enquanto me agacho para começar o procedimento.

– Certo – digo em um tom profissional – mexa o braço. - Ele não cumpre com a ordem dada, somente olha para mim e indaga:

– Você não acha que se eu conseguisse mexer o braço eu já não teria me levantado daqui? – e sua voz continua sofrida. Agora vejo também que tem gotinhas de suor por toda a sua testa. Sendo que estamos no inverno. Começo a perceber que há uma grande possibilidade de ele estar falando sério, de ele ter mesmo se machucado. E essa constatação me faz cair de bunda no chão, ou melhor, no gelo. - Você está bem? – ele pergunta desconfiado ainda segurando o braço machucado.

– Estou. Você que parece não estar – falei enquanto arrastava minha bunda molhada para perto dele. - Afastei a mão dele que segurava o cotovelo e comecei a tentar examinar seu braço esquerdo. Mas só tentei, porque antes de eu conseguir ele levou a mão livre ao meu rosto tirando uma mecha de cabelo que caia e prendendo-a a atrás da orelha.

Esse era um gesto que ele já tinha feito diversas vezes, muitas delas eu estremeci, mas nunca tanto quanto dessa vez. Deus, eu sentia tanta falta dele... E ao mesmo tempo sabia que nunca iríamos dar certo juntos. Não com ele se importando mais com o trabalho do que com a própria vida.

– Você estava linda – ele diz cortando meus pensamentos.

– Do que é que você está falando? – pergunto, abobalhada, sem poder prestar atenção em muita coisa enquanto seu dedo indicador passeia pelo meu rosto.

– Na formatura, você estava linda e eu nunca tive a chance de te dizer isso. - Ah, a formatura... Ela me lembra outra coisa.

Por mais que eu o amasse não suportaria ficar em segundo lugar em sua vida. Aquelas poucas semanas antes da formatura foram pequenas amostras do que estaria por vir. Por isso afastei meu rosto da mão dele e perguntei:

– Me explica como foi que você caiu.

– Ah Rachel... Você sabe, foi tudo sua culpa. De novo. Se você não tivesse...

– Estou perguntando como médica – interrompo a explicação emocional dele. Quero fatos.

– Bem, eu estava patinando logo atrás de você, quase te alcançando para poder te parar e explicar o que realmente aconteceu–

– Estava quase me alcançando e aí?... – perguntei atalhando para a parte profissional, que era o que realmente me interessava. Ou deveria interessar.

– E aí que você foi mais rápida, eu acabei agarrando o vento e fui parar no gelo e tentei aparar minha queda com o meu cotovelo. É por isso que está doendo.

– Hmm – murmuro enquanto penso em como vou examiná-lo assim, dessa maneira, no meio do rinque de patinação – Vamos ter que tirar seu casaco para ver o que de fato aconteceu.

– Tirar o meu casaco?! Rachel, estão tipo... 0 graus! Sem falar que eu não consigo nem pensar em mexer meu braço, quanto menos mexê-lo de verdade.

– Se for assim vou ter que chamar uma ambulância.

– Tudo bem – ele diz resignado, deitando a cabeça no gelo.

– Droga, - reclamo comigo mesma – eu não trouxe o celular.

– Como assim você não trouxe o celular?? – Finn parecia ultrajado com essa perspectiva. Mas ao contrário dele, meu celular não era uma extensão de mim. Eu não tinha “negócios importantes que tratar” em uma droguinha de aparelho, além do mais...

– Eu vim patinar, esse não é o lugar mais adequado para eu começar uma conversa no telefone – me defendi.

– Pode usar o meu. Está no meu bolso – ele diz se dando por vencido, parece que a dor ganhou dele. Estico a mão para alcançar o zíper do bolso do casaco dele quando ele diz em meio a outra sessão de “ai, ai, ai”: - No bolso da calça.

Lugar traiçoeiro, tiro o celular de lá a muito custo e cheia de dedos. Quando finalmente consigo resgatar o celular de lá e vou discar o número do hospital, vejo que a tela de fundo continua a mesma. A mesma de cinco meses atrás. Uma foto que foi tirada na minha casa, mais precisamente na minha cama, naquele primeiro dia em que ele dormiu lá. Nela estavam ele e eu, com caras muito feias, foi tirada assim que acordamos. Ou melhor, quando ele me acordou...

– Rach, acorda, eu te amo – ele disse no meu ouvido.

– Hmm... – eu disse satisfeita por ter sido essa a primeira frase que eu tinha ouvido no dia.

– Rachel, eu te amo, você ouviu?

– Uhumm – confirmo me enrolando um pouquinho mais nas cobertas.

– Então fala que me ama também, dessa vez com palavras.

– Eu te amo – murmuro ainda de olhos fechados.

– O quê? Eu não te escutei direito, fala mais alto.

– Eu te amo. – digo abrindo os olhos, com toda a minha seriedade.

– Ainda não ouvi, – ele insiste – fala direito e com um sorriso bonito. E como nessa hora eu já estava completamente acordada resolvi entrar na brincadeira.

– Eu te amooo! – falei alto, pertinho de gritar e com o sorriso que ele pediu.

– Eu é que te amo – ele grita.

– Eu te amooooo – eu grito ainda mais alto e ele tenta me acompanhar e foi nesse momento que ele tirou o celular não sei de onde a bateu a foto que está na proteção de tela. Ele me mostrou como ficou a foto de nós dois gritando e descabelados, mas completamente felizes.

– Melhor a gente parar agora – ele aconselhou – acho que já está bom, já acordamos a vizinhança inteira com o nosso amor.

Tenho certeza que ele viu meus olhos enchendo d’água quando percebi qual era sua proteção de tela, mas por sorte ele não falou nada. Durante o tempo em que eu ouvia o telefone do hospital chamando do outro lado da linha me virei de costas para ele, tentando assim me recompor daquele mar de lembranças que me inundava.

– Uma ambulância já está a caminho – anuncio com uma tentativa de sorriso. Não tenho certeza de que o sorriso funcionou muito bem, porque ele não sorriu de volta. Só me olhou com um olhar que eu não consegui decifrar, mas que passeou pelo meu rosto inteiro.

– Melhor colocarmos seu braço no gelo – digo me concentrando no que realmente interessa – sei lá, talvez adormeça um pouco.

Apesar dos protestos dele desço o braço que está em seu tronco para a camada de gelo sob nós. Foi a melhor desculpa que encontrei para me desviar de seu olhar. E pareceu funcionar por uns bons três minutos. Só pareceu. Quando Finn soltou um grande suspiro eu desloquei minha atenção do seu braço para o seu rosto, temendo que uma nova onda de dor tivesse surgido por conta dos pequenos movimentos que eu fazia com o braço dele. Engano meu. Ao me deparar com seu olhar inquieto percebo que seu problema não é o braço. O problema era eu.

– Acho que quatro meses foi tempo o suficiente para nós dois analisar os acontecimentos e repensar nossas atitudes – ele começou falando o que parecia que ia ser um longo discurso. Isto é, se eu não o interrompesse.

– Finn, eu estou aqui na qualidade de sua mé... – tento explicar. Isto é, se eu não tivesse sido interrompida. Finn coloca o dedo sobre a minha boca, não digo de um jeito rude, mas com força o suficiente para interromper minha fala.

– Shhh Rach, deixa eu falar. Eu queria ter te explicado o que aconteceu na época, mas você sabe, você justificou o meu erro criando...

Essa foi a vez dele ser interrompido e dessa vez não foi minha culpa e sim da sirene da ambulância. Dois paramédicos saltaram da ambulância e rapidamente colocaram Finn na maca. Ele permanecia com a boca aberta, como se fosse falar alguma coisa, mas se deixou ser levado para o interior da ambulância. Na verdade ele não tinha opção quanto a isso.

– Doutora, vai atrás com ele – disse um dos paramédicos, o mais baixinho – Eu vou dirigindo e meu amigo aqui vai respondendo aos chamados, é incrível como os números de acidentes aumentam com a chegada da neve. Ao que parece Finn não foi o único sem direito de opção por aqui.


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