Arco 1: O Homem e o Espelho

A01 – Capítulo 1: Aquilo que se foi.

Foi o acaso que a levou em direção àquela rua, que ela nunca usava ao voltar para casa por achá-la muito perigosa, numa noite chuvosa. Também foi o acaso que colocou aquele cachorro, naquele exato segundo, na frente de seu carro. Foi o acaso que fez sua cabeça pender para um lado e não para o outro durante a capotagem, bem como o acaso fez com que aquele ponto do teto acertasse uma rocha, forçando a fuselagem contra seu crânio. O acaso a matou e o acaso o levou até aquele espelho em outra noite chuvosa, dois anos depois.

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— Amanhã faz dois anos, Clarisse... céus... o que eu não daria para te ter aqui novamente... — Jonathan pensava enquanto tentava inutilmente se concentrar em toda aquela papelada sobre a pequena mesa de MDF. Seus cabelos lisos e de um castanho tão escuro que era comumente confundido com preto lhe escapavam entre os dedos em que apoiava sua cabeça. Seus olhos, também castanho-escuros, estavam inchados e vermelhos. O cansaço e a tristeza eram óbvios em seu semblante desgastado e o fato de estar sozinho naquele escritório iluminado apenas pelo monitor de seu computador, três horas após o término do expediente, já mostrava muito sobre sua situação.

Deitado de bruços, flutuando pouco acima da cabeça do homem, Nada o observava enquanto ouvia seus pensamentos melancólicos. Perguntava-se inocentemente o que ele faria se soubesse que todos os acasos de sua vida eram obras de uma vontade. Era uma das coisas que mais lhe passava pela mente enquanto observava e agia sobre a vida daqueles humanos.

Após algum tempo Jonathan desistiu de continuar seu trabalho. Estava atolado de coisas para resolver, mas não conseguiria mais continuar ali. Precisava espairecer. O bar há alguns quarteirões, no fundo de um beco escuro onde desde empresários a ladrões de sinaleiro se reuniam para beber, conversar e fumar, era o seu “ponto de descanso” natural e foi para lá que ele se dirigiu. Bebeu o de sempre, doses de whisky, vodka e gin, até sentir-se bêbado o suficiente para voltar ao seu apartamento e desmaiar na cama. Uma, duas, três... talvez quatro horas haviam se passado, mas não era de grande importância para ele naquele momento. Apenas estava aliviado por ser incapaz de pensar claramente. Tropeçando nos próprios pés, começou a caminhada em direção ao seu pequeno e desarrumado apartamento.

— Um cachorro!— disse Nada, fingindo surpresa ao ver um cachorro parado na próxima esquina. — É só um cachorro, porque tanto interesse nele? — continua enquanto Jonathan se aproxima do cão, olhando-o com atenção. — Você nunca nem mesmo gostou de animais. Mas esse cachorro parece ter algo diferente... Ele está indo embora, você devia segui-lo!

O cachorro começa a andar pela calçada e, por algum motivo que ele mesmo desconhece, Jon o segue. O cachorro para em frente à vitrine de uma loja e espera que o homem o alcance. Acima da marquise uma placa verde com letras garrafais brancas informa o nome do estabelecimento: “Clarisse Espelharia”. Do outro lado da vitrine, a atenção de Jonathan é atraída para um dos espelhos, enquanto o cachorro lentamente continua sua caminhada até desaparecer na escuridão da noite.

— Clarisse! — ele exclama surpreso. — Clarisse! Você voltou pra mim, você veio!

No espelho, olhando-lhe com ternura, Jonathan via a imagem de sua amada embaçada pelas lágrimas que surgiam sem cessar em seus olhos. Ali ele ficou, observando-a, admirando-a, conversando, até dormir, exausto, na calçada.