A Redoma escrita por Charlie


Capítulo 2
Dois




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NA MANHÃ SEGUINTE, EU ACORDEI bem melhor e menos estressado.

Charlie e eu tomamos o café da manhã juntos, ele falando mais um pouco sobre seus pais e como era a vida deles em Chester’s Mill e o que eu pude fazer foi apenas balançar a cabeça para ele. Era até bacana conversar com Charlie, mas eu conversaria ou até mesmo prestaria mais atenção se não estivéssemos falando apenas de Chester’s Mill. Eu odiava aquele lugar.

Mas ele era um bom amigo, para ser franco. Eu não teria a companhia de meu irmão nem tão cedo e eu não queria, bem, me sentir sozinho naquela cidade. Era fácil bater um papo com Charlie, o papo simplesmente fluía quando eu conversava com ele. Eu gostava dele... como amigo, é claro.

Assim que terminamos o café, Charlie e eu fomos assistir tevê, mas não estava dando nada na tevê, pois, por algum motivo estranho, a tevê não tinha sinal. Tudo culpa daquela droga invisível!, pensei. Então resolvemos voltar a conversar.

E eu não pude deixar de reparar em Charlie. Ele tinha os olhos mais azuis na claridade do dia. Seus cabelos no sol pareciam como fogo e ele era, bem, na forma mais amigável possível falando, fomo. Ele tinha uma mania de esconder o rosto quando eu o encarava quando o mesmo fala. Era uma gracinha; fofo, como eu tinha dito. Ele tinha um sorriso branco e perfeito que até me dava certa inveja. Eu tinha um sorriso perfeito, digamos assim. Meu irmão e eu tínhamos, mas foi por conta de aparelhos. Charlie não parecia ter histórico de aparelhos, ao menos não foi o que mostrou quando vi suas fotos quando pequeno. Enfim, ele era bem fofinho.

Mas conversamos tanto que quase não percebemos o horário. Já era quase meio-dia quando Charlie olhou em seu relógio de pulso. Charlie e eu fomos até o centro da cidade para dar uma volta pela pacata (talvez não tão pacata assim) Chester’s Mill e aproveitar para almoçar fora — eu levei dinheiro comigo, pois tinha dinheiro em minha mochila e eu não deixei Charlie pegar o dinheiro dos falecidos pais; disse que serviram para uma ocasião melhor e ele deixou passar.

Charlie não tinha vizinhos perto de sua casa, mas quando saímos das redondezas de sal casa, as pessoas de Chester’s Mill começaram a me olhar torto. Charlie cumprimentou uma senhora, a mesma senhora cujo encontrei chorando no dia em que estava procurando uma casa, mas ela apenas olhou para ele com cara de nojo e raiva e entrou-se para sua casa.

Eu não entendi direito o porquê, mas ele e eu não decidimos fazer questão daquilo e seguimos para o centro da cidade.

No meio do caminho, Charlie, sem querer, tinha tocado naquela coisa invisível e eu tirei seu relógio de pulso no exato momento — o relógio era feito de metal. Assim que joguei o relógio no chão, ele tinha explodido. Eu alertei a Charlie para que não tocasse muito naquilo e que não tocasse em hipótese alguma se estivesse com algo de metal. Assim que ele entendeu o porquê, depois de eu dizer que tudo de metal poderia explodir e que meu celular explodiu, continuamos a seguir para o centro da ex, então, pacata Chester’s Mill.

O centro estava totalmente louco.

Pessoas estavam andando e falando sozinhos feitos loucos. Alguns simplesmente estavam trancados do lado de dentro de casa, apenas observando a rua pela janela. Outros discutiam. Uma moça discutia com um homem e uma criança chorava ao lado deles, não era difícil de ver que era um casal. Uns garotos que não aparentavam ter nem dezoito anos, com mochilas nas costas e roupas folgadas corriam e riam feitos loucos em direção ao outro lado de Chester’s Mill. Eu marquei a cara de um, para caso os adolescentes fossem até a casa e Charlie pegar alguma coisa — e era claro que se fizessem isso eu teria uma conversinha com eles. Alguns também pareciam bem normais. Normais até demais para o meu gosto. Se uma coisa invisível aparecesse cortando minha cidade de outra, impedindo-me de sair de casa, era claro que eu não ficaria nada normal quanto a isso.

Mas deixei isso para lá. Eu não podia perder muito tempo com isso. Charlie eu tínhamos ido até o centro para comprar alguma coisa — se possível, pois eu sei como seria comprar alguma coisa naqueles dias em Chester’s Mill; seria um caos. E, como já estava quase na hora do almoço, resolvemos seguir para o Restaurante Sweetbriar ou algo assim, que seja.

Porém, assim que viramos uma esquina e seguimos em direção a outra e a viramos, encontramos alguns garotos na rua. Um casaco verde, calças jeans com uma toca laranja na cabeça, e ele tinham cabelos lisos até a altura do peito, e ele tinha um skate à mão. O outro era louro e vestia um casaco jeans com capuz vinho, vestindo uma calça mostarda, ele fazia algumas anotações em um caderno em frente ao capô de um carro, e uma mochila estava ali em cima.

Charlie parou ao vê-los.

— São meus amigos... — disse-me ele. Ele andou até eles, mas voltou-se para mim. Ele franziu o cenho. — Você, ahn... se importa de eu ir até eles?

Balancei a cabeça em negativa. O moreno jogou o skate no chão e começou a desenhar uma porta com grafite no ar e percebi que ele desenhava naquela coisa invisível. Ali era um dos limites daquela coisa. Mas depois ele disse algo para o louro que eu não consegui ouvir e começou a andar como skate na rua, como se nada tivesse o abalado.

— Não, não mesmo — sorri amigavelmente para ele.

Ele sorriu sem jeito e foi até eles, mas voltou-se para mim na metade do caminho.

— Você pode vir — disse ele. — Eles são gente boa.

Assenti para ele e caminhei com ele a minha frente.

— Ei, Ben, Joe! — cumprimentou-os Charlie.

Os dois meninos se viraram para Charlie.

— Ei, Einstein — disse o moreno.

— E aí, Charlie — disse o louro.

Franzi a testa para os dois garotos.

Charlie e eu chegamos perto deles e eles passaram os olhos de Charlie para mim, como se esperassem algo.

— Ah, este é Zach — disse Charlie apontando para mim. — Zach, estes são Joe e Ben — ele apontou primeiro para o louro, Joe, e depois para o moreno, Ben.

Apertei a mão dos dois.

— Olá — foi só o que eu disse.

— E aí — disse Ben.

— Ei — disse o Joe.

Notei que havia um mapa no capô do carro que parecia ser Chester’s Mill e seus arredores. Tinha uma pequena circunferência marcada de preto no mapa e o caderno na mão de Joe tinha algumas equações e um gráfico.

— Estamos tentando saber, ao menos, qual é a forma dessa coisa — disse Joe assim que me viu espionar seu caderno. Senti-me um tanto envergonhado. — Pelo que me parece, ela é redonda. Ao menos parte dela — ele deu um risinho.

Observei as equações. Eu queria poder ajudar, mas matemática e nem física não era meu forte. Eu era melhor em química, biologia e anatomia. Cálculos não eram comigo.

— Muito inteligente de sua parte — disse eu. — Desculpe desapontar, mas meu forte não é matemática e nem física — assumi com uma leve careta. — Sou melhor em química, biologia ou anatomia.

Ben levantou uma sobrancelha para mim. Joe sorriu.

— Você é algum tipo de nerd ou coisa assim? — perguntou Ben a mim.

Eu ri.

— Ele estuda medicina, imbecil — disse Charlie apontando para mim.

— Sabia — disse Joe.

— Charlie — bati em seus ombros e ele me olhou. — Menos ofensa, não é?

— É, Einstein — disse Ben. — Isso é rude.

Charlie levantou uma sobrancelha para Ben e não contive o riso.

— Tá, que seja — disse Charlie.

— Einstein? — perguntei ao ouvido de Charlie.

Ele deu de ombros.

— É um apelido, que é muito ridículo por sinal — ele aumentou o tom de voz olhando para Ben. — Foi consequência por ganhar meu primeiro prêmio de ciências quando eu tinha oito anos.

Pisquei para ele.

— Entendi — foi só o que eu disse.

Um silêncio se propagou entre nós enquanto Joe e Charlie faziam mais anotações no caderno de Joe. Eles pareciam brilhantes nesse lance de física e matemática, ou sei lá. Ben veio andando de skate até a mim.

— Como conheceu o gênio ali? — ele apontou para Charlie.

— Acidentalmente — disse eu. — Eu precisava de um lugar para ficar, daí entrei na casa dele pensando que estava vazia, mas não estava. Os pais dele morreram ao se chocarem com essa coisa invisível... mas não o surpreenda falando sobre isso — acrescentei assim que o vi que iria falar alguma coisa e ele assentiu com a cabeça. — Ele está tentando superar isso. Enfim, ele me deixou ficar, então estou morando com ele. Ele é gente boa.

Ben confirmou mais uma vez com a cabeça.

— Saquei — disse ele. — Sinto muito por ele. Os pais dele eram legais.

Dei de ombros.

Mas Ben voltou a andar de skate. Os outros dois discutiam e faziam mais cálculos, era completamente coisa de louco. Eles escreveram um cálculo tão grande que era frente de uma folha e verso da mesma. Isso definitivamente não era comigo.

Porém alguém estava vindo à nossa frente na rua. Um cara louro, forte e de barba. Vestia uma blusa vermelha, uma blusa de manga por cima e outra cinza que mais parecia um casaco. Ele vestia calças jeans, sapatos e tinha uma linha vermelha na sobrancelha direita.

Aquele era Barbie, meu irmão.

Nosso olhar se cruzou e eu fiquei na dúvida se ele queria sorrir para mim ou me repreender com o olhar. Eu apenas franzi a testa para ele e olhei para o outro lado.

Não era para nos vermos, não era para nos esbarramos. Era ideia dele. Eu tinha que sair dali, não porque eu temia pelo que ele poderia fazer, mas porque eu temia a minha própria vida. Ele disse que eu tinha que fazer tudo exatamente direitinho que ele falava, caso contrário, eu poderia morrer. E eu não queria morrer, ao menos não naquela cidade e não agora.

Aproximei-me rapidamente de Charlie e sussurrei em seu ouvido:

— Vou indo ao Restaurante Sweetbriar, te encontro lá, certo?


Ele me olhou e assentiu para mim. Assenti para ele e, virando as costas para aquelas crianças e meu irmão, fui em direção ao maldito restaurante.

Eu estava sentado na mesa que ficava colada à janela do Restaurante Sweetbriar em um canto do estabelecimento, porém de costas para a porta de entrada.

Charlie tinha demorado em chegar naquele estabelecimento. Demorou tanto que eu não consegui aguentar de fome e pedi o que queria comer. Até uma pessoa cutucou meu ombro — um ser baixinho, careca e gorducho — e disse “Barbie?”, mas quando me viu, pediu desculpas e foi embora.

Era horrível ser comparado com ele. Eu não gostava. Ter essa semelhança toda ainda seria um problema, eu sentia isso. Por sorte eu não tinha barba, pois acredito que se eu tivesse, aí mesmo que me chamariam de Barbie.

De qualquer forma, Charlie chegou vinte minutos depois daquilo e eu tinha dito que havia comido. Ele pediu por desculpas, mas eu disse que não era nada demais. Eu sabia o quanto ele estava empenhado naquele sei lá o que ele estava fazendo com o menino Joe. Mas esperei o mesmo terminar sua refeição.

Quando terminamos no Restaurante Sweetbriar, Charlie e eu fomos ao mercado, o que eu disse que estaria completamente cheio de gente comprando tudo quanto é coisa. Mas ele e eu apenas levamos o essencial para nos abrigarmos durante um mês e, assim que paguei as coisas, saímos direto de lá para ir à sua casa.

Era o fim da tarde quando tivemos a notícia de um grande incêndio não muito perto dali. Charlie disse que era na casa de um tal de Duke, o xerife da cidade e que queria ir ajudar. Eu não era o seu responsável, mas sentia-me como um responsável por ele, mas o deixei ir e não me atrevi a ir. Eu sabia que meu irmão estaria por lá, eu tinha quase certeza e, como eu podia me lembrar, não podíamos ser vistos. Então peguei as compras e segui para a casa de Charlie e o deixei ir até a cada do tal Duke.

Mais tarde naquele mesmo dia — após eu ter colocado as compras em seus devidos lugares nos armários da cozinha da casa de Charlie —, Charlie chegou ao anoitecer me contando toda a história do acontecido do fogo.

Ele disse que a casa do ex-xerife, pois ele estava morto, tinha pegado fogo misteriosamente. Tudo tinha ficado um caos, mas os civis da cidade tinham ajudado a apagar o incêndio com água em baldes e mangueiras. Tinham encontrado o Padre ou Reverendo (eu não entendi direito, pois ele tinha começado a falar rápido demais — talvez por euforia, talvez não) Coggins estava dentro da casa do tal Duke. Mas que o prefeito — um cara chamado Big Jim Rennie — tinha ajudado bastante, usando uma espécie de escavadeira, demolindo a casa. E a coisa toda conseguiu ser controlada com o acabamento do fogo por mangueiras e mais baldes com água. E tinha dito que apareceu um cara que era muito parecido comigo, eu apenas ri nervosamente para ele quase não conseguindo esconder o nervosismo de minha risada. Mas ele disse que tínhamos uma diferença além da barba, eu era menor e não parecia ser tão sério como ele, o que nos tornava totalmente diferente, segundo ele. O que foi bom para mim. E no final das contas ele percebeu que eu e o cara (meu irmão) não éramos parentes.

Ao menos por Charlie eu não era comparado ao meu irmão, pensei. Maldita semelhança genética.

E ele disse, também, que um policial chamado Paul tinha enlouquecido e atirado contra aquela parede invisível (que todos estavam chamando de redoma). Quando eu perguntei o que aconteceu, ele disse que a bala ricocheteou e voltou em direção a outro policial chamado Freddy. Senti pena, pois ninguém merecia morrer dentro daquela cidade, muito menos por um tiro disparado de um companheiro de trabalho. Eu sabia, pensei. Essa cidade ainda iria enlouquecer a todos.

Era uma história em tanto e eu não me atrevi a questionar. Ele parecia estar orgulhoso por ter ajudado em algo ao invés de somente ser um gênio na física e matemática — ele nunca tinha me dito nada disso, apenas vi as provas no caderno de Joe e nas fotos no andar de cima de onde estávamos.

De qualquer forma, a noite chegou e Charlie disse que estava exausto e, me dando um “boa noite”, ele foi para a cama mais cedo, e eu continuei na sala.

Eu não estava exausto como ele, estava apenas atordoado por ter visto meu irmão. Eu não sabia onde ele estava, eu não sabia como comia, como dormia e eu tinha certeza que Charlie não ligaria dele morar conosco. Mas a teimosia de Barbie era tremenda, eu sabia que ele não iria querer isso. Mas eu sabia que ele era esperto o bastante para conseguir alguma casa para morar. Porém percebi que estava me preocupando demais com ele, então resolvi espantar o pensamento referente a ele, subi as escadas, tomei um banho e fui até o quarto em que eu dormia para dormir.


O dia seguinte não teve surpresa alguma.

Pelo rádio tínhamos escutado que o tal do Paul havia enlouquecido e escapado da delegacia de Chester’s Mill, mas por sorte a policial, uma tal de Linda, havia conseguido encontrá-lo e disparou em suas costas; Paul estava morto. Eu não tinha deixado Charlie sair naquele dia e nem mesmo eu saí. Ficamos em sua casa, onde ele me mostrou todos os seus projetos mecânicos de feira de ciências. Ele, sozinho, tinha feito um robô de meio metro, onde o robô podia andar, apertar a mão e até mesmo dançar; ele tinha dito que tinha criado esse projeto a seis meses atrás. Outro era um carro mecânico, que era controlado por um controle igual ao do robô — um controle bem maior do que estava acostumado a ver carrinhos de controle remoto funcionar. O carrinho tinha quase cinquenta centímetros de altura e trinta de largura. Ele tinha projetado esse com oito anos. Ele realmente era um gênio!

Eu lhe dei algumas dicas de primeiros-socorros — era o mínimo que eu podia ensinar. Eu não podia ensinar minhas técnicas que a universidade me ensinava. Isso era antiético. Fora que eu não tinha licença para ensinar ele a nada disso e sem contar que nem sabia que podia tê-lo ensinado primeiros-socorros. Mas o que a lei e a ética podiam interferir dentro daquela cidade que estava desligada do restante do mundo? Eu sei; nada.

E o nosso dia acabou por ali.

Na manhã seguinte, eu tinha acordado primeiro e tinha ido preparar o café da manhã; ovos, bacon e pus pães na mesa, suco, leite, queijo e manteiga. Mas ele não levantou para o café da manhã, onde eu comi sozinho e horas mais tarde eu preparei tudo para o almoço. Quando Charlie chegou à cozinha ao meio-dia em ponto, eu notei que ele não estava nada bem.

Seu cabelo, rosto e a blusa azul estavam molhados de suor. Seu semblante era de quem estava exausto, de quem não dormia fazia dias. Seus lábios estavam secos e pálidos; ele estava todo pálido. Não demorou muito para eu ver que ele estava completamente doente.

Larguei a o prato em cima da mesa e corri até ele, segurando-o pelos braços, antes que ele caísse no chão.

— Ei, Charlie! — falei assim que cheguei até ele.

Ele estava ardendo em febre. Seu suor não parava de escorrer de sua testa e descer pelo seu rosto. Seu cabelo estava mais encharcado do que imaginava. Seu nariz escorria também.

Ele estava de olhos fechados. Dei alguns tapinhas em seu rosto para ver se ele acordava, mas nada.

Peguei-o no colo e o coloquei no sofá. Depois de alguns segundos, ele acordou. Ele me olhou com os olhos cansados, como se estivesse forçando os olhos a se abrirem.

— Pai? — disse ele. — Pai, cadê a mamãe? — e ele fechou os olhos novamente.

— Charlie... — o sacudi de leve. — Charlie, acorda.

Mas ele não acordava e sua febre parecia estar mais do que trinta e nove graus.

Alucinando, febre, suor... meningite! Eu tive um primo que teve isso. Em um minuto estava bem e no seguinte estava morrendo. Eu não podia deixar acontecer o mesmo com Charlie. Por sorte eu não peguei isso agora, pois ele começou a tossir em cima de mim. Eu tinha tomado a vacina cinco meses atrás, quando tinha sido selecionado para fazer um estágio pela universidade em que eu estudava, então eu estava protegido contra meningite. E pelo visto, Charlie não.

— Charlie? — chamei-o sacudindo-o novamente. Ele abriu os olhos lentamente. — Charlie, vou levá-lo ao hospital. Você não está bem...

— Tudo bem, papai — disse ele e fechou os olhos novamente. — Só traz a mamãe... só traz a mamãe... só traz..

E ele parou de falar.

Eu não o deixaria ali. Subi em disparada até o quarto em que eu estava dormindo, pus minha mochila nas costas (ali tinha luvas e alguns materiais para primeiros-socorros), desci, também em disparada, pus Charlie adequadamente em meu colo e, dando um jeito que eu não consegui entender, tranquei a porta atrás de mim e segui com ele ao Chester’s Mill Clinic em meus braços.

Ao chegar naquele hospital, eu passei pela porta de entrada e corri para a recepção com Charlie ainda em meu colo. O hospital não estava cheio, mas estava chegando algumas pessoas parecidas com o mesmo sintoma que o menino em meu colo.

Ao chegar à recepção, eu encontrei uma moça de pele amarelada com cabelos cacheados presos em um coque acima da cabeça. Ela vestia uma calça branca e jaleco com alguns detalhes verdes escuro, lilás e rosa. Não demorou para eu perceber que ela era uma enfermeira.

Ela me olhou sem entender.

— Quero que você cheque a pressão dele, a temperatura e dê a ele antibióticos o mais rápido possível — disse eu assim que ele chegou perto de mim. — Ele está alucinando e pelo meu diagnóstico ele deve estar com meningite, mas é bom checar tudo primeiro — ela me olhou com certo espanto. — Ponha ele em qualquer quarto que já estou a caminho.

Assim que terminei de falar, pus Charlie cuidadosamente em uma cadeira de rodas e tirei a mochila das costas, pronto para tirar minha...

— Mas quem você pensa que é para dar ordens assim? — perguntou ela um tanto grossa. Eu sabia que a intenção dela não era essa, mas ela estava apenas fazendo seu trabalho.

Tirei o pote que continha várias e várias luvas da mochila.

— Sou um, praticamente, formado em medicina — disse eu. — Sei o que estou falando.

Ele arregalou os olhos para mim e assentiu, seguindo com a cadeira com Charlie para o fim do corredor.

Tirei as luvas do pote e as vesti. Meu jaleco branco estava ali dentro — eu não me lembrava de ter colocado ele ali, mas tudo bem —, assim como meu equipamento para verificar a pressão de qualquer pessoa. Aproveitei para vestir o jaleco, pus o estetoscópio entorno do pescoço, pus a mochila nas costas e, seguindo o corredor, fui atrás daquela enfermeira, à procura do quarto para poder ajudar melhor Charlie. Ele precisava de minha ajuda.

O quarto não era nem grande e nem pequeno. Charlie já estava na cama. A janela ao lado esquerdo da cama estava fechada e com as cortinas fechadas. Tinha uma cama ali e tinha uma tevê de frente para a cama. Um abajur estava em cima do criado mudo ao lado da cama e a porta era de correr e de vidro, o que eu achei totalmente errado, pois aquilo não daria privacidade a nenhum paciente. Mas depois vi que tinha cortinas ali.

A enfermeira estava verificando temperatura de Charlie.

— Você está com o antibiótico? — perguntei assim que entrei no quarto.

— Não, não estou — disse ela.

— De quantos graus está à febre dele? — perguntei.

— Quarenta — disse ela assim que tirou o termômetro debaixo do braço dele.

Aquilo me espantou. Eu ainda tinha esperanças que estivesse trinta e oito ou trinte e nova, mas aquilo estava pior do que eu temia.

— Papai... — sussurrou Charlie.

Aquilo foi de partir o coração.

— Vai pegar o antibiótico — disse eu a enfermeira. — Prepare-o e traga-o para mim o mais rápido possível. Ele está alucinando desde que saiu de casa. A meningite nele está avançada.

Ela só assentiu para mim e saiu às pressas do quarto.

Eu tinha que salvar Charlie. Eu não podia deixar que nada acontecesse com aquele garoto. Como eu tinha dito, eu me sentia responsável por ele. Ele tinha me dado abrigo e ele tinha perdido os pais. Eu, de alguma forma, sentia que não podia perdê-lo. Ao menos não daquela maneira. O pensamento de perdê-lo foi tão forte que meus olhos chegaram a lacrimejar, mas eu segurei o choro. Porém, quando peguei em sua mão, ele a apertou e não consegui conter as lágrimas que saíram de meu rosto.

Mas eu as enxuguei antes que alguém vesse. Não poderiam me ver assim, caso contrário, me impediriam de cuidar dele. Então me recompus e consegui me manter, digamos, frio.

A enfermeira chegou dois minutos depois de ter saído com a seringa já pronta para ser injetada. Tomei a seringa de sua mão, pus na medida certa e, no segundo seguinte, injetei o antibiótico em Charlie.

— Aguenta aí, amigão... — disse eu assim que tirei a seringa dele e cobri a picada dela com algodão. — Agora irá melhorar.

Entreguei a seringa para a enfermeira e ela jogou no lixo.

— Tem luvas em minha mochila — disse eu. — Pode pegar.

Ela assentiu, mas não mexeu em minha mochila. Suspirei e, tirando um par de luvas, entreguei a ela. Eu tinha dado permissão, pelo amor de Deus! Mas descobri que os últimos pares que tinham na caixa eram os que eu tinha vestido. Joguei minhas luvas fora e agora eu tinha que diagnosticar os outros sem luvas. Risco total.

— Desculpe, pensei que tinha mais — disse eu.

— Sem problemas — disse ela.

Assim que saímos, ela me parou no meio do corredor.

— Qual é o seu nome, doutor? — perguntou ela.

— Não me chame de doutor — disse eu. — Ainda não sou formado.

Ela assentiu.

— Certo, mas acho que as regras não se aplicam aqui, não é? — questionou ela, mas tive que concordar. — Qual é o seu nome?

— Zach. Pode me chamar de Zach — disse eu.

— Sou Enfermeira Adams — disse ela.

Assenti para a mesma. Por sorte meu jaleco só mostrava o meu nome — eu pedi para fazerem o meu sem sobrenome e consegui ser atendido nesse pedido.

Mas não ficamos conversando. Ela seguiu para um corredor e eu para outro.

A cada minuto no hospital, uma pessoa chegava com os mesmo sintomas que Charlie. Era difícil cuidar de todos, mas por sorte tinha alguns médicos e enfermeiros no hospital, mas não éramos muitos para toda àquela gente.

Diagnosticando uns aqui, uns ali. Segui para o corredor em que Charlie estava e me espantei ao ver mais de dez pessoas, mas depois de diagnosticar todas e ver quantas realmente precisavam de antibióticos mais que os outros, eu consegui entrar no quarto em que Charlie estava.

Ele não estava mais suando. Sua temperatura já estava ao normal (eu tinha verificado) e ele não parecia estar mais alucinando, pois não dizia “papai” e nem “mamãe”. Charlie estava bem e eu tinha certeza que dentre de algumas horas ele estaria bem melhor.

Andando, ainda, em um dos corredores daquele hospital, encontrei uma ala onde não tinha mais local para se sentar de tanta gente doente precisando de ajuda. Tinha uma moça vestida de uma blusa jeans, calças pretas, loura e usava uns óculos de grau da hora, e tinha um estetoscópio entorno do pescoço.

— Precisando de ajuda? — perguntei assim que cheguei ao lado dela e comecei a verificar o doente ao lado.

Com minha visão periférica, consegui visualizá-la me olhando.

— Sim, precisamos diagnosticar todos aqui — disse ela. — Sou Alice Calvert.

— Pode me chamar de Zach — disse eu.

E assim fomos pelo resto do dia.

Certa ocasião, eu encontrei meu irmão novamente. Vestindo uma blusa de botão cinza com calças jeans e o mesmo sapato bege de sempre. Nossos olhos se encontraram, mas eu desviei o olhar e segui o corredor à esquerda. Eu não queria falar com ele no momento, eu tinha um dever para com os doentes a cumprir.

No corredor em que eu entrei, tinha um médico de pele cor de café atendendo um paciente, mas corri ao outro que pedia socorro para um próximo a ele. Abaixei-me para ouvir seu coração, mas não o ouvi. Segurei o seu pulso, mas nada de batimentos. Tentei ouvir sua respiração, mas nada. Comecei a fazer as compressões cardíacas, mas sem respostas. O homem que eu tinha verificado isso tudo estava morto. Olhei para o outro médico no corredor e balancei a cabeça em negativa.

O resto do dia estava indo embora e quando entrei em outra sala (aquele hospital realmente era grande), tinha um garoto armado. Ele aparentava ter dezessete ou dezoito anos. Tinha cabelos escuro e alto, mais ou menos do meu tamanho. E aquela policial de antes... aquela que eu tinha visto outro dia, ela estava ali. Não vestida de policial, mas com aquela rouba branca com bolinhas prestas de hospitais; e ela não me parecia bem.

— Precisa voltar para onde saiu — informei a ela assim que cheguei perto. — Você não está cem por cento. É perigoso.

Ela me olhou sem entender.

— Mas quem é você?

Mas eu já tinha saído dali.

Por sorte, meu irmão com mais um cara (que eu reconheci logo assim que o vi, pois era o cara que tinha me confundido com meu irmão) tinham chegado com mais antibióticos, pois Alice — assim que me esbarrei com ela em uma ocasião — tinha me contado.

Em outra ocasião avistei o amigo de Charlie, o tal Joe com uma mulher negra e careca e, por sinal, bonita, com uma menina ruiva e Alice junta a eles. Eles deveriam estar discutindo um assunto sério, mas resolvi não me intrometer.

Rondei o hospital todo atrás de alguém doente e por sorte não encontrei. Todos tinham sido medicados e já estavam saindo do hospital ao anoitecer. O que era bastante bom, pois assim a meningite não se espalharia por Chester’s Mill, uma vez que todos estavam vacinados contra ela.

Mas fui até o quarto onde Charlie estava.

Ele estava sentado na cama, com um controle remoto a mão e passando os canais da tevê. Inútil, já que a tevê não mostrava nada a não ser canais sem transmissões.

— Olá — disse eu assim que entrei.

Ele me olhou e sorriu. Foi bom ver seu sorriso de novo.

— Agora você é doutor, é? — perguntou ele e riu.

Dei de ombros, mas ri.

— É, parece que sim — confirmei. Cheguei mais perto dele. — Como se sente?

Ele fitou o teto por um segundo.

— Bem — afirmou ele. — Me sinto muito bem.

Assenti com a cabeça.

— É bom ouvir isso — disse eu e sentei-me ao pé da cama. — Você me deu um baita susto.

— Desculpe por isso — disse ele. — Não foi minha intenção.

— Eu sei. Tudo bem.

— Quando posso sair daqui?

— Assim que eu determiná-lo pronto.

— Não podemos ir agora?

— De forma alguma.

— Mas por quê?

— Porque você ainda não está cem por cento.

— Mas eu me sinto be...

— Não, Charlie — o interrompi. — Amanhã eu tiro você daqui junto comigo. Vou terminar esse plantão e vamos embora.

Ele assentiu com a cabeça.

— Tudo bem — disse ele.

Eu abri a boca para falar quando alguém disse do lado de fora:

— Doutor, posso ter um minuto de sua atenção, por favor?

Quando eu me virei, era ele. Barbie estava à porta. O olhei com os olhos semicerrados, mas ele parecia estava com cara de urgência.

— Já volto — disse a Charlie e saí do quarto.

Ele e eu fomos em direção ao fim do corredor, onde estava completamente deserto e viramos a esquerda, onde também estava vazio.

Ele parou de andar e eu parei logo em seguida. Ele cruzou os braços e eu pus as mãos para dentro dos bolsos da calça.

— O que faz aqui? — perguntou ele.

— Não é bem óbvio? — rebati. — Charlie ficou doente e resolvi ficar para ajudar.

— Você não pode...

— Dê um tempo, Dale — o cortei. — Aquele garoto precisava de ajuda e eu não iria virar as costas para ele. Não estou ligando mais para se reconhecerem a gente e eu acabar podendo morrer. Não estou dando à mínima! Eu vou ajudar aqui e fim de papo.

Eu o encarei nos olhos e ele fez a mesma coisa.

— Desde quando ficou determinado assim? — perguntou ele semicerrando os olhos.

— Desde que fui morar com você — respondi de má vontade.

— Você nunca demonstrou nada assim antes.

— Porque talvez antes a gente tinha aonde brigar — o olhei mais sério pronto para começar uma briga com ele.

Ele apenas riu. Idiota.

— Tudo bem — disse ele. — Alguém sabe que somos irmãos?

— Não — respondi rapidamente.

— Nem mesmo o menino.

— Nem mesmo ele. As pessoas vão notar. Temos semelhanças demais. Charlie reparou nisso.

— Não deixe que ele descubra.

— Vai ser difícil.

— Afinal, qual é a sua ligação...

— Ele só me deu abrigo, Dale. Mais nada.

— Você não está afim de...

Cale essa boca! — o cortei antes mesmo que ele falasse algo que me faria partir sua cara. — Terminou?

Ele assentiu e logo em seguida virei às costas, se segui de volta para...

— Ei, Zach? — chamou ele. Virei-me para olhá-lo. — Ahn... tome cuidado. Há pessoas nessa cidade que me procurarão e irão querer tirar satisfação. Não deixe que peguem você.

Semicerrei os olhos para ele.

— Sei me cuidar — disse eu.

Virei às costas para ele novamente se segui de volta para o quarto que Charlie estava.


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