Escuridão escrita por Luh Moon


Capítulo 3
Mariah


Notas iniciais do capítulo

Enjoy ~~



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Uma noite – afinal para mim sempre era noite – estava me sentindo tão cansado e sem perspectiva que simplesmente permaneci em minha sepultura. Seria ótimo que eu tivesse um corpo, assim poderia me sentar a apoiar o queixo nas mãos... Eu apenas estava cansado de seguir fantasmas que pareciam ainda mais perdidos que eu. Foi então que vi uma garotinha, metida num vestido branco, atravessar a alameda a passos tranquilos e cantarolando uma dessas canções infantis que todos nós aprendemos na infância.

Eu sorri, embora me sentisse de fato triste. Dava para dizer pelo aspecto translúcido e pelo leve brilho que emanava dela que era um fantasma. Pobre criança! Não devia ter mais de sete anos. Fiquei distraído, olhando para ela e imaginando como ela morrera e o impacto que sua morte tivera sobre sua família. Ela de repente parou de cantarolar e voltou-se para mim. Levei um tremendo susto quando ela sorriu.

Foi um acidente.

Eu olhei em redor como um estupido. A voz dela não vinha dos lábios como uma pessoa viva. Era mais como se ela falasse diretamente com a minha mente, com uma voz dentro dos meus pensamentos. Depois que o susto inicial passou e eu então me aproximei dela. Eu não sabia como fazer aquilo, como falar com ela, mas ela tinha ouvido o que eu estava pensando; e podia me ver.

É novo por aqui? Não sabe falar? O que houve com você?

Era uma criança, sem dúvida! Podia estar morta e ser apenas um espectro, mas continuava inconveniente e curiosa como toda criança. Honestamente, naquele momento eu senti uma vontade imensa de rir, e foi o melhor sentimento que tive desde que descobri que era um fantasma. Concentrei-me. Eu entendia que bastava que eu pensasse e ela me ouviria. Foi o que eu fiz.

Eu não sei...

Era uma frase patética, sei disso, mas era a resposta para as perguntas que ela havia feito. Vi ela sorrir ainda mais e se inclinar, como se quisesse olhar por cima do meu ombro. Quis olhar na mesma direção e percebi que ela fitava minha lápide. No meio de tanta coisa que estava acontecendo comigo, eu nunca mais tinha olhado aquele pedaço de mármore!

Você mora aqui, certo? Deve ser Daniel.

Não sei, eu não me lembro...

Patético! Mas o que mais eu ia dizer àquela criança? Eu não me lembrava de coisa alguma mesmo! Por um momento duvidei que ela fosse mesmo um fantasma. Ela parecia tão desembaraçada, tão confortável, tinha um corpo, um rosto, roupas... Interrompi meus pensamentos no instante em que a apanhei me observando. Obviamente ela tinha ouvido cada palavra.

Estou aqui há bastante tempo. Você também vai se acostumar, tenha paciência.

Ela simplesmente andou até onde eu estava e sentou-se na sepultura. E então fez exatamente aquilo que eu quisera tanto fazer: apoiou os cotovelos nos joelhos e apoiou a cabeça nas mãos. Pareceu carrancuda e emburrada, mas quando prestei mais atenção, percebi que ela apenas estava triste... Eu não sabia como consolá-la. Eu era incapaz de consolar a mim mesmo! O que eu poderia fazer por uma criança morta? Uma criança morta...

A ideia era bizarra demais. E era a primeira vez que eu a contemplava de frente: a ideia de uma criança tão pequena e tão morta... Eu sei que soa ridículo! Mas eu demorava algum tempo para entender coisas elementares naqueles dias; coisas como a simples conclusão de que a existência de um fantasma de sete anos de idade vagando pelo cemitério implicava diretamente na morte de uma criança. Não era algo com o que eu estivesse pronto para lidar!

Não vai ser sempre assim.

Ela falou num tom de voz mais baixo, como se estivesse longe dali. Alguma coisa me disse que ela estava sendo levada pelas próprias memorias, e embora estivesse se esforçando para me animar, parecia ficar mais e mais aborrecida. Devia ser ruim recordar a própria morte! Ora, que estupidez! Como se morrer já não fosse ruim o bastante. Esses pensamentos embaçados me irritavam.

É como acordar depois de dormir por muito tempo. Ela continuou dizendo. Leva um tempo para você voltar a ver as coisas como elas realmente são. Leva um tempo para voltar a sentir todas as partes do seu corpo...

Ela esticou o braço e contemplou a mão aberta diante do rosto. Espichou os dedos e movimentou-os. Parecia estar em profunda contemplação, ao mesmo tempo em que parecia estar querendo me dizer que eu não seria para sempre aquela massa disforme que escorregava pelo ar sem saber direito onde ia parar. Mas eu não conseguia me concentrar em sua mão. Eu não conseguia deixar de prestar atenção ao seu rosto que parecia se entristecer mais e mais.

Não é tão ruim afinal...

Se eu tivesse um rosto eu teria franzido a testa naquele momento. Como assim? O que não era tão ruim? Morrer ou ser um fantasma? Percebi que me afastava dela. Tinha ficado profundamente aborrecido com o que ela dissera. Não era a morte em si que me aborrecia, mas a perspectiva de estar preso àquela condição. O que éramos afinal? Manifestações sobrenaturais? Almas? Assombrações? Era demais para o que me sobrará de consciência! Era simplesmente demais. Senti que estava descendo, como se estivesse sendo sugado de volta para minha sepultura.

Espere! Quero lhe mostrar algo!

Ela saltou da pedra e meu espectro – eu não consigo pensar em uma palavra melhor para me definir naquele momento, já que eu era apenas um amontoado de energia sem forma – parou no meio do caminho e voltou para cima. Depois simplesmente me apanhei seguindo-a enquanto ela andava a passos infantis pelas ruelas escuras entre as sepulturas. Ela manteve o silêncio e eu a acompanhei.

Cruzamos com hordas sem fim de fantasmas de todos os tipos: altos, baixos, velhos, novos, mutilados, sujos, radiantes... E nenhum deles pareceu notar a nossa movimentação. Eu estava curioso. Queria saber por que alguns fantasmas pareciam doentes e outros não; por que alguns, como ela, pareciam apenas uma forma mais suave de si mesmo enquanto outros pareciam ter sido triturados por alguma máquina sobrenatural. Estava curioso com o fato de os outros não nos perceberem... Estava cheio de dúvidas, mas mantive o silêncio e apenas a segui.

Ela deteve-se diante de um mausoléu muito antigo e apontou para dentro. Não precisamos de palavras! A massa disforme que eu era tinha entendido que ela queria que eu entrasse ali e assim se fez sem que eu desse por isso. Quando percebi estava do lado de dentro e ela estava ao meu lado, silenciosa e com as mãos pousadas sobre o vestido.

Havia algumas gavetas em redor e três sepulturas de mármore no centro. Duas correspondiam a adultos. Eu tentei ler os nomes, mas as letras pareciam embaralhar sempre que eu pensava que ia conseguir decifrar. Entre aquelas duas havia a terceira, menor e na cor branca... E eu pude perceber onde ela tinha me levado quando revi seu rosto que agora sorria para mim.

É onde eu estou... É o meu nome... Apontando para a sepultura.

Estava gravado em letras de estilo gótico, douradas e em relevo: Mariah. Só isso. Só o primeiro nome. O sobrenome da família estava gravado na pedra na entrada do mausoléu e no alto da parede de fundo. Era desnecessário que aquela informação se repetisse em cada tumulo. Achei uma atitude sensata, além de notar que ter apenas o primeiro nome escrito na sepultura trazia uma sensação de maior familiaridade. Se eu ainda estivesse vivo incluiria esse pedido em meu testamento.

Eu tinha mesmo um testamento ou qualquer coisa dessas? Será que eu era dessas pessoas que não pensam na morte como uma possibilidade? Ou, ao contrário! Eu poderia ser um hipocondríaco, um velho que vivia com gatos em uma casa velha e com pouca higiene. Eu gostava de gatos? Ou de cachorros? Pássaros ou de qualquer outro animal? Eram aquelas incertezas que me faziam entristecer. Era como se eu não fosse ninguém... E, pensando melhor nisso, depois de morto eu ainda era alguém?

Consciência... Sussurrou aquela vozinha em meio aos meus pensamentos desordenados. Somos uma consciência sem corpo!

Ah! Então era isso! E eu devia ser uma consciência muito medíocre, já que não conseguia lembrar sequer meu próprio nome... Não fosse ele estar escrito bem embaixo do meu nariz, ou, nesse caso, acima do meu nariz em uma lápide de mármore. Eu me sentia completamente patético naqueles dias e estava pensando nisso quando ouvi uma risadinha abafada. Lá estava Mariah escondendo um riso divertido detrás das mãozinhas espectrais.

Todos passaram por isso, seu bobo! Você não é patético!

Ela estava sorrindo e eu tive vontade de sorrir também. Voltamos para a minha sepultura sem eu dar por isso e Mariah simplesmente se sentou lá e ficou me fazendo companhia. Algumas vezes ela apontava alguma coisa ou algum lugar, ria e voltava a ficar em silencio. Eu não sabia, mas achava que ela estava respeitando minhas limitações. Naquele momento eu senti que tínhamos criado um laço. Eu ainda não sabia, mas tinha acabado de fazer a minha primeira amizade fantasma.




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