A Caçada escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 3
2 - Joy




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Aproximadamente 8 meses antes, algum lugar da União Soviética

O acampamento era sujo, fétido e coberto por uma aura de desesperança. Você podia dizer que estava encarando soldados cansados, mas a verdade é que, se olhasse com mais atenção, veria apenas um grupo de cadáveres vivos e programados para matar — aqueles soldados estavam mortos havia tempo, suas almas partidas em milhares de pedaços espalhados pelas vítimas que tinham derrubado.

Ivan era um soldado noviço soviético. Tinha apenas dezessete anos, mas era tão desesperado para fazer alguma coisa que conseguira enganar sobre a sua idade para integrar as tropas de infantaria do exército, que esperavam há 15 dias por alguma movimentação. Ele gostaria de dizer que a vida como um soldado era tudo o que ele tinha sonhado, mas a verdade era muito oposta — ser soldado significava, primordialmente, passar frio, fome e sede, além de conviver sempre com o cheiro horroroso das latrinas do acampamento e brigar o tempo inteiro com seus companheiros, porque todos estavam desesperados para voltar para casa e qualquer comentário era faísca para uma briga.

A única coisa que animava sua vida como soldado eram os serviços de William.

Ivan não sabia quem era William — nunca tinha visto o capitão, e suas mensagens sempre eram entregues por meios dos tenentes, mas gostava das tarefas que recebia. Geralmente, eram serviços simples: espionar pessoas nos vilarejos próximos onde as tropas passavam, seduzir moças para conseguir informação e mais raramente, matar. Ele gostaria de dizer que odiava os serviços de assassinato, mas na verdade, salivava por eles — traziam um tipo de adrenalina que a guerra nunca conseguiria. E William pagava extremamente bem por uma missão bem sucedida.

—Ivan. — Primeiro-Tenente Dimitri se aproximou. Ele tinha uma expressão extremamente severa para um homem de apenas vinte e tantos anos, e Ivan não gostava dele. Nem um pouco. —Missão pra você, fuinha.

O apelido era horroroso. Mas Ivan suportava em prol do dinheiro que receberia.

—Você vai até o vilarejo que nós acabamos de deixar... Tem um homem lá que você precisa matar. Eu vou te dar a descrição e você se vira; tem dez dias pra me trazer a mão desse homem.

O soldado mais jovem aprumou-se imediatamente enquanto recebia da mão do Primeiro-Tenente um bloco de anotações em letra miúda e redonda, tão metodicamente escrita que não havia uma única mancha de tinta. Dimitri não rendeu demais o assunto — ele era o encarregado de passar as missões e fazer com que elas fossem cumpridas, e não interferia na vida de Ivan de nenhuma maneira. Por isso, quando no dia seguinte o jovem juntou suas tralhas e saiu andando para a cidade mais próxima do acampamento, tudo o que Dimitri fez foi observá-lo de esguelha e fazer um sinal de afirmativo com a cabeça.

Se Ivan voltasse vivo, ótimo.

Se não voltasse, não faria diferença.

Para o garoto, a linha entre querer viver e querer sentir-se vivo era muito tênue. A casinha na qual morara durante toda a sua vida limitara demais sua liberdade, e ele sempre se sentira como um boneco nas vontades de seus pais: “corte lenha, Ivan!”, “acenda o fogo, Ivan!”, “ordenhe as vacas, Ivan!”, “Ivan, ajude seu pai a arar a plantação!”. A guerra foi a sua única escapatória: a partir dali, ou se tornaria um homem livre e vivo, ou morreria lutando para se tornar um. E quando matava, quando via alguém morrer pelas suas mãos, Ivan se sentia mais vivo do que qualquer outra coisa.

Ele gostava de matar. Era uma conclusão feia e imoral, mas não foi assim que pareceu enquanto ele fazia o percurso que separava a cidade do seu acampamento. Não era seguro andar ali sozinho e a qualquer momento poderia aparecer alguém com uma metralhadora, pronto para transformá-lo em uma peneira, mas a ideia do risco só o deixava mais empolgado. Ivan estava tão bêbado de adrenalina que quando atravessava uma curva e um homem praticamente se jogou em cima dele, o susto foi tão grande que seu grito provavelmente foi ouvido de uma distância considerável.

—Quem seria você?

Era um mendigo. Não era necessário muito para perceber isso — vestes esfarrapadas, barba por fazer e cabelos desgrenhados e ligeiramente sujos. Ele levava uma garrafa consigo, e pelo modo bambo como ficou de pé, Ivan imediatamente desconfiou que fosse também um viciado em bebidas.

—Eu? — o estranho recitou, lentamente, rindo de modo idiota. —Eu sou o Joy! De Enjoy! — a piada pareceu realmente engraçada para o homem, que riu durante um longo tempo antes de continuar. —E você? Quem seria?

—Um soldado. Posso te matar, sabia?

—Claaaro que pode. — Joy riu. —Mas porque faria issssso? Vamosss sser amigosss! Vou te contar uma piada! Porque meu nome é Joy, de Enjoy!

Ivan revirou os olhos. Não podia acreditar no próprio azar.

—O que você quer, Enjoy?

—Eu quero chegaaaaarrrrr numa vila! Eu to perrrrdidoo há alguns dias! Isssssssso aqui foi a minha salvação! — o bêbado abriu a garrafinha e bebeu mais um gole, de maneira explicativa. — Eu precssssssssiso comer!

O jovem soldado analisou suas opções: podia matar o pobre Enjoy e continuar andando, mas ia ser um desperdício de balas e ele provavelmente chamaria atenção com o barulho que faria. Ele poderia brigar com o homem até deixá-lo inconsciente: nas condições em que o mendigo estava, não seria muito difícil. Mas demoraria. E ele podia ser um homem gentil com Joy e deixá-lo viajar consigo; tinha estocado uma quantidade razoável de comida que ele podia repor quando chegasse à vila e fizesse o trabalho.

Parecia óbvio.

—Enjoy... Não. Joy. — ele chamou, um tom mais dócil na voz. —Eu estou indo para um vilarejo nesse exato momento. Você pode viajar comigo... Se você se comportar. Tudo bem?

Joy arregalou os grandes olhos, por baixo da camada de sujeira que cobria seu rosto. Parecia não acreditar na própria sorte.

—Euuuuuuuuu... Prometo!

Ivan recomeçou a andar, impaciente, Joy no seu encalço. O trajeto para a vila duraria 2 dias, e nesses dois dias ele teria de agüentar a companhia do mendigo bêbado — suspirando, o jovem soldado pensou que talvez, só talvez, não fosse tão ruim igual ele achava que seria.

Acabou não sendo. Joy era uma boa companhia quando a sobriedade lhe vinha aos acessos, e suas piadas eram engraçadas. Ivan se pegou rindo várias vezes enquanto ainda era dia, e acabou contando algumas também, não tão boas, mas Joy ria assim mesmo. Era um idiota, seu andar trôpego de um lado para o outro, a sujeira tão acumulada que quase caía em crostas de seu rosto.

Quando a noite caiu, Ivan sugeriu que montassem um acampamento, depois de analisar estrategicamente uma pequena área. Os dois se deitaram na sombra de uma árvore que ainda não tinha começado a perder suas folhas para o outono, uma coisa realmente boa, pois os esconderia de possíveis olhares inimigos. Ainda não estava realmente frio, mas o inverno começava a mostrar suas garras e um agasalho era sempre bom — Ivan ficou com pena de Joy, e acabou acendendo uma fogueira, mesmo a contragosto.

—Você me lembra meu filho. — disse Joy, a voz mais sóbria, embora levemente pausada. —Ele era gentil assim também.

Joy não parecia um homem com idade para ter filhos, pensou Ivan. Mas debaixo de toda aquela crosta de sujeira, era difícil precisar sua idade.

—O que aconteceu com ele?

—Morreu. Uma bomba. A mesma bomba que matou minha família toda. Eu sobrevivi porque não estava lá na hora... Tinha saído para ordenhar as vacas. — Joy riu. — Depois disso, matei todas as vacas. Não precisava mais delas.

—Isso me lembra minha infância. Eu odiava ter que ordenhar vacas. Na verdade, eu odiava a vida que eu levava. Eu prefiro estar aqui a estar lá.

—Você é um mocinho muito jovem pra ser soldado, não é?

—Menti minha idade... Mas só alguns meses. Completarei dezoito em pouco tempo. Não me arrependo. Aqui eu me sinto vivo, e eu sou um soldado tão bom que recebo missões para fazer por fora.

Joy não parecia muito interessado; mas o entusiasmo na voz de Ivan o trouxe de volta para a conversa.

—Missões? Talvez você não seja um peixinho tão magro quanto eu pensei que era... Que tipos de missões, garoto?

—Todo tipo delas! Espionagem, coleta de informações, observação... — ele disparou, completamente inconsciente de que falava demais. — Ás vezes eu até sou mandado para assassinar pessoas! Meu capitão confia em mim o suficiente para fazer esse tipo de serviço!

Joy sorveu de um grande gole de bebida. Aquela garrafinha não acabava?

—Seu capitão confia tanto em você que aposto que nem o nome dele você sabe!

—Claro que sei! É William! Um oficial de guerra muito respeitado!

O bêbado riu, e Ivan acabou acompanhando — os dois rindo tanto que acabaram se deitando, as barrigas doendo.

Alguns minutos depois, respirando em grandes golfadas, o soldado se virou para falar alguma coisa, mas Joy já tinha dormido, babando, contorcido numa posição realmente horrorosa. Riu consigo mesmo e se virou para dormir também.

No dia seguinte, os dois conversaram sobre coisas mais sérias. Joy contou para Ivan sobre a família que ele perdera, e em troca, Ivan lhe contou sobre a vida que ele desesperadamente abandonara. Eram vidas realmente parecidas. O soldado também descobriu que Enjoy tinha o dobro da sua idade, gostava de tocar balalaica e era um cantor razoável, quando estava nos seus momentos de sobriedade — quanto mais bêbado, mais a sua voz se assemelhava à de uma gralha.

Quando montaram o acampamento daquela noite, Ivan se pegou pensando que quase, quase, iria sentir falta de Enjoy. Ele tinha sido uma boa companhia naqueles dois dias, e, se fosse mais a fundo, provavelmente a melhor companhia que ele tinha tido em toda a sua vida.

—Afinal de contas... — perguntou, quando acendeu outra fogueira. — Porque você se chama Enjoy? Até onde eu saiba, isso significa se divertir na língua daqueles americanos desgraçados.

—De fato, a piada está aí. — Joy riu. —Meu pai era um idiota, gostou da palavra e me chamou disso, não sabia o significado. Eu só fui descobrir quando era mais velho.

—Eu mataria meus pais se tivesse esse nome.

O bêbado deu um sorriso torpe.

—Você gosta dessa ideia de matar, não é?

—Matar é algo que faz com que eu me sinta vivo. Realmente vivo. Eu não sei o que eu faria se não existissem essas missões. Nesse momento, eu estou indo para essa vila para matar.

—O tal... Qual é o nome da criatura? Mandou você matarrrr alguém?

—William. — corrigiu Ivan, com importância. —Sim. Um alemão refugiado... Eles brotam em todos os lugares. Precisam morrer, já. São todos essa mesma raça nojenta.

—Eles pensam a mesma coisa da gente.

—Ninguém se importa. Eu vou matá-los, todos.

O clima estava pesado quando Joy e Ivan se encararam, e sem dizer mais nada, o primeiro se deitou e dormiu, quase que simultaneamente. Ivan perdeu alguns segundos para dar ao companheiro créditos por dormir tão rápido antes de ele mesmo se deitar e dormir, pensando a respeito de sua presa.

No dia seguinte, eles acordaram cedo, e caminharam mais depressa, os dois ansiosos para chegar. Conversaram superficialmente sobre assuntos genéricos, que rapidamente foram esquecidos quando a vila finalmente apareceu no seu campo de visão — era pequena e pobre, mas Joy a encarou como se estivesse vendo Moscou. Ivan riu por dentro.

—É aqui que nós despedimos, Enjoy.

—Claaaaaaro. — ele tinha bebido durante toda a viagem, e estava realmente ruim. — Obrigaaadoooo... Eu... Vou... Procuraaaarrr... Alguém... Boa... Sorte com a sua missssssão.

Ivan agradeceu, e os dois tomaram direções opostas.

A vila não era muito grande, e utilizando de um dos papéis que o Primeiro-Tenente Dimitri lhe passara, Ivan se orientou facilmente pelas ruas de pedra comprimida. O homem que precisava matar estava vivendo como um carpinteiro, um serviço que o deixaria exposto e fácil de matar — Ivan só precisava esperar um horário relativamente bom e dar um tiro.

Enquanto esperava, ele se socializou na vila. Tomou um café em uma pensão e se apresentou como um soldado que fazia reconhecimento. A dona do lugar ficou simplesmente encantada com ele e lhe ofereceu um quarto, o qual Ivan aceitou gentilmente. Nem sempre a melhor oportunidade aparecia logo de cara.

No caso daquele alemão, ela demorou dois dias.

O horário era perfeito — logo cedo, as pessoas estavam dormindo. O alemão desgraçado, Klaus, abriu a oficina mais cedo e estava martelando pregos em uma porta de modo completamente despreocupado, o que o deixava definitivamente vulnerável. Ivan tomou uma distância boa para mirar, e a adrenalina estava fazendo o sangue palpitar em suas orelhas de modo histérico — ele estava completamente absorvido por aquele momento.

—Joy, de Enjoy... Joy, de Enjoy...

O soldado quase disparou pelo susto. O companheiro parecia pior do que antes, realmente trôpego, e vinha arrastando os pés lentamente pela rua. Não parecia ter enxergado Ivan, que silvou irritado.

—Joy! Shhhhhh! Eu estou terminando minha missão agora!

—Aaaaaaaaaah! — Enjoy olhou para ele e sorriu torpe. —Vá com tudo, amigo.

E continuou a arrastar os pés, só que sem cantar dessa vez.

Ivan voltou a mirar.

Tão concentrado no trabalho de matar Klaus, o jovem soldado não viu o outro parar. Não viu seu olhar se focar, não viu ele pegar a arma e não viu Joy colocar o silenciador, calmamente, os movimentos precisos. Ivan sequer ouviu o barulho dos tiros que o mataram, as três pequenas chicotadas. Ele só sentiu a dor, se espalhando de uma zona indefinida do seu peito por todo o seu corpo.

Ele estava morrendo.

E Klaus ainda batia os martelos na porta, inconsciente de tudo o que tinha acontecido. Ele jamais saberia.

—Você é um homem burro, Ivan. — Joy se aproximou. Ivan, em seus últimos contorceres de vida, reparou que sua voz era firme e suave e seu andar sinuoso, como o de uma pantera. —Você podia fazer algo bem melhor da vida do que matar alemães refugiados. Nós não somos todos a mesma raça. É realmente um desperdício.

—Você... Me enganou.

—Morra se contentando com o fato de que não foi o primeiro... E de que não será o último.

Ele largou Ivan ali para morrer, junto com a arma que ele quase tinha usado, e caminhou calmamente pela vila. Tirou um pente do bolso e deu um jeito no ninho que era seus cabelos, depois de algum esforço. A garrafinha que tinha carregado durante todo aquele tempo, a qual continha apenas água, ele jogou no próprio rosto para limpar a crosta de sujeira que tinha acumulado para convencer o soldado.

Ainda não estava bom, ele teria de dar um jeito na barba e nas roupas. Mas dava pro gasto.

—Então o nome do filho da mãe é William... — sussurrou pra si mesmo, enquanto partia.

A partir daquele momento, Joy também não existia mais.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Até o próximo.



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