Nascidos da Noite - Livro Rigor Mortis escrita por Léo Silva


Capítulo 30
Capítulo 30 - Ver o mundo de uma forma diferente




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Os primeiros raios de sol despontaram no horizonte.

Cachorro Louco estava deitado no sofá da sala quando despertou com a luz matinal. Samanta escondeu-se no porão.  Antes disso, ela se livrou do corpo da tia – jogou-a no poço onde ela guardava o filho mimado – e agora a vampira dormia tranquilamente. Não precisavam se preocupar com a polícia, pois ficariam apenas até a noite seguinte, quando partiriam em busca da segunda alma. E ninguém daria por falta de Dorotéia mesmo.

Pensou na sorte que tinha de ter encontrado Samanta. Se ela não tivesse salvado sua vida (mais de uma vez), ele certamente não estaria ali, agora, iluminado pelo sol de uma manhã que parecia promissora. Ao mesmo tempo se sentia amaldiçoado por ainda estar vivo – e ser tão frágil. Depois de tudo, sua humanidade o condenava a uma vida de fragilidade, sempre dependendo de proteção de outrem. Tratou logo de afastar estes pensamentos ruins, certo de que o destino reservava algo melhor para eles.

Tem que ser melhor, baby, porque o presente está quase insuportável.  

Cachorro Louco pensou em Samanta, no quanto ela era bela e atraente. Sua pele branca, os longos cabelos vermelhos. Sentiu-se atraído por ela desde a primeira vez que a viu, mas confessava isso apenas em seus pensamentos. Parado diante de um enorme espelho que ornamentava a parede do corredor que ligava a cozinha à sala, ele observou seu corpo de adolescente. Era magro e sofrido mas, ainda assim, não se considerava feio. Talvez fosse bonitinho, o que não garantia muita coisa. Estaria a altura de Samanta? Bobagem, especulava isso sem nem saber o que ela sentia por ele – se é que vampiros podiam sentir alguma coisa. Além disso, espelhos têm a péssima mania de mentir.

Começou a perambular pela casa. Na cozinha encontrou muita comida estocada. Ele experimentou compotas de pêssego, figo e maçã. Depois bebeu suco direto da caixa. Aquela comida toda iria estragar com a casa abandonada – enquanto tantos passavam fome nas ruas. Cachorro Louco deixou a cozinha e foi para o quarto de Dorotéia – era o único cômodo da casa arrumado.

Havia diversas fotos de Dorotéia e seu filho nas paredes. Cachorro Louco segurou uma delas diante dos olhos. Dorotéia era louca, mas pelo menos cuidava de seu filho.

Ele se deitou na cama, e encarou o teto.

Por que sua mãe o abandonara?

Conte até dez.

Cachorro Louco encolheu-se um pouco, e envolveu a si mesmo em um abraço solitário. Naquele dia, quando abriu os olhos, ele se viu sozinho. Só Deus sabia o que ele passou desde então, vagando pelas ruas, à mercê de bandidos e pedófilos. De valentões. De vampiros.

Ele fechou os olhos e sonhou. E em seu sonho sua mãe aparecia, vestida de preto, e com os lábios vermelhos como se cobertos de sangue. Mais uma vez ela mandava que ele fechasse os olhos e contasse, e mais uma vez ela não estava lá quando ele os abria. Era Samanta quem estava lá, com sua pele branca e fria feito gelo, e seus cabelos vermelhos como o fogo. Samanta o envolvia em um abraço gelado, e puxava-o para dentro dela, com uma urgência assustadora. Enquanto sussurrava no ouvido de Cachorro Louco palavras inaudíveis, ela o mordia no pescoço, e sugava seu sangue até matá-lo.

Cachorro Louco acordou com o sol da tarde sobre seu rosto. Olhou para um relógio que estava sobre o criado mudo e viu que eram quase dezoito horas. Apalpou a virilha e sentiu uma umidade grudenta e, envergonhado, se levantou e foi até o banheiro. Despiu-se e tomou um banho frio, aproveitando para tentar afastar aquele sonho que tivera com Samanta – por mais que isso fosse difícil.

Quando saiu, envolto em uma toalha, o sol já havia se posto, e Samanta estava em pé, mo meio do quarto.

— O que houve? – perguntou ela.

— Nada.

— Você parece diferente...

— Já disse que não é nada.

Ela encarou-o. Andou em volta de Cachorro Louco, que permanecia estático.

— Sabe que não pode esconder nada de mim, não sabe?

Antes que ele respondesse, a vampira segurou-o pelo braço.

— O que está acontecendo?

— Nada...

— Esse “nada” tem alguma relação comigo?

— Não.

— Está mentindo.

— Foi só um sonho, Samanta. Só um sonho.

Ela soltou o braço de Cachorro Louco, que ficou acariciando o local inconscientemente.

— E esse pingente aí? – perguntou ela, olhando para a jóia pendurada no pescoço do rapaz.

— Minha mãe me deu.

— Você nunca fala sobre ela.

— Não há muito o que falar.

Samanta pareceu desconcertada. Entendia perfeitamente, em matéria de mãe, os dois não tiveram muita sorte.

— Tudo bem, vou esperar por você lá embaixo. Não demore.

****

— Amadeus Boyne – disse ela.

Eles estavam sentados no sofá de Dorotéia e haviam acendido um lampião a gás que encontraram no porão. As sombras em torno dos dois pareciam brincar, encolhendo e esticando, tomando formas diferentes.

— Quem é Amadeus Boyne?

— É o homem que me transformou em vampira. Se ele morrer, então, eu posso recuperar minha vida... Mas, se eu tiver transformado você, então, você permanecerá como vampiro. A corrente não admite uma quebra.

Cachorro Louco abaixou os olhos.

— Se você não fosse vampira eu teria morrido.

— Se eu não fosse vampira, nós não estaríamos aqui.

— Como você pode saber que ele ainda está vivo?

— Eu ainda sou vampira, não sou?

— Como você sabe que ele ainda é um vampiro, que ele não se curou matando quem o criou?

Samanta negou com a cabeça.

— Escute, Cachorro, você sabe imediatamente quando perde sua chance de voltar a ser humano. É como se você recebesse um aviso, e eu nunca recebi esse aviso. Todas as coisas estão ligadas por linhas invisíveis. Ele ainda está por aí, eu sei. E ainda é um vampiro. E se ele morrer assim, eu terei minha vida de volta.

Cachorro Louco encolheu-se um pouco e olhou fixamente para o lampião.

— E quanto a mim?

— O que é que tem você?

— Você prometeu me ajudar.

— E eu vou. Tem a minha palavra... Mas eu não posso enganar você, Cachorro, não tenho a intenção de transformá-lo em um monstro. Se é nisso que está pensando...

Ela se afastou. Foi até a janela e ficou um tempo olhando a escuridão da rua.

— Quer dar uma volta?

***

Foram para o Parque Cândido Portinari, Zona Oeste.

E lá estava ela, toda iluminada como se fosse feita de estrelas: a maior roda gigante da América Latina, com 90 metros de altura. Antes de saírem de casa, Samanta entregou um envelope para Cachorro Louco.

— O que é isso? – perguntou ele.

— Minha herança. Parece que titia guardava dez mil reais em casa.

— Dez... Dez mil reais?

A vampira assentiu. Agora eles tinham dinheiro.

— Podemos comprar passagens e sair de São Paulo – disse Cachorro Louco.

— Não é tão simples. Ônibus têm sido atacados constantemente nas estradas, e aeroporto está fora de cogitação para nós – falou ela, emitindo um meio sorriso.

Ele aceitou, por hora. Então, foram para o parque.

Samanta vestiu-se com algumas roupas antigas que a tia ainda mantinha no guarda roupas. Ela colocou uma blusa preta de gola alta, saia preta e scarpins de mesma cor. Jogou um xale branco sobre os ombros.

Agora, Samanta e Cachorro Louco caminhavam pelo parque, lentamente. Havia poucas pessoas – a onda de violência ampliara ultimamente, e era ainda menos seguro sair à noite. O vento mexia com os cabelos ruivos de Samanta, e a vampira parecia flutuar levemente, os passos quase não tocando o chão.

Cachorro Louco suspirou.

— O que estamos fazendo?

— Vamos ver o mundo de uma forma diferente. É isso que estamos fazendo.

Samanta segurou a mão de Cachorro Louco, começou a puxá-lo na direção da roda gigante. Compraram os bilhetes e entraram na cabine. A roda girou um pouco, então parou.

Lentamente, eles foram subindo. Então, começou a girar de verdade. Cachorro Louco apoiou o rosto no vidro da cabine, e olhou fixamente a cidade de São Paulo, iluminada por milhares de luzes. Parecia o céu.

— Samanta...

— O que é?

— Eu gosto de você...

— Também gosto de você, seu bobo.

— Por favor, não se faça de desentendida... Não sabe como é difícil dizer isso...

— Eu sei... Por isso, Cachorro Louco, não vou apenas dizer. Vou demonstrar...

Então, ela puxou-o para junto de si e beijou-o longamente.


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