Nascidos da Noite - Livro Rigor Mortis escrita por Léo Silva


Capítulo 27
Capítulo 27 - Viver




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Base dos Cavaleiros do Apocalipse, São Paulo, Brasil, 2020

Lupita deu duas batidas à porta da sala de reuniões e entrou.

Os quatro cavaleiros olharam na mesma direção quando ela passou pelo centro da sala e caminhou até uma imensa televisão. Ela mantinha aquela postura quase militar enquanto atravessava a sala, e era o único ser vivo com coragem suficiente para fazer isso. Qualquer outro seria destroçado pelos poderosos vampiros. Contudo, Lupita era uma espécie de governanta que cuidava de assuntos burocráticos que envolvessem o “mundo dos humanos”, e era mais útil viva do que morta. Sem contar a proteção que Egil dispensava a ela – foi a ele que ela deu o lápis-lazúli, não foi?

— Desculpem-me a interrupção, mas os senhores precisam ver isso – disse ela, ligando o aparelho.

Os quatro vampiros olharam para a televisão. Um militar fazia o primeiro pronunciamento oficial do governo desde o golpe. Havia dezenas de repórteres aglomerados em frente a um palanque fortemente vigiado, se acotovelando e falando ao mesmo tempo.

— Senhoras e senhores, hoje se inicia uma nova era para o nosso país. Nós vamos fazer o Brasil grande novamente, custe o que custar! Não vamos mais tolerar desrespeitos e balbúrdias contra nosso povo, a raça humana. Há séculos somos perseguidos e hostilizados pelos semi-vivos, mas não vamos mais tolerar isso! A partir de hoje, uma série de medidas serão tomadas, como forma de garantir a segurança dos brasileiros. Devolveremos o Brasil aos brasileiros! Todo semi-vivo deverá se cadastrar no Cadastro Nacional de Semi-vivos, e receberá um número de identificação que deverá ser apresentado sempre que solicitado. Semi-vivos não declarados poderão sofrer as consequências legais. A circulação de semi-vivos em ambientes públicos será regulamentada, e qualquer estabelecimento poderá se recusar a entrada de não-humanos. A circulação de semi-vivos nas ruas está restrita ao intervalo compreendido entre as 7 horas e 22 horas. Qualquer semi-vivo pego fora desse horário poderá sofrer as consequências...

Lupita olhou para os vampiros e desligou a televisão. Eles pareciam anestesiados, parados feito estátuas de pedra.

— Já começou, e nós sabemos como vai terminar – disse Antony. – Sabemos, também, o que devemos fazer, mactep.

— As coisas não são tão simples, irmão – disse Egil.

— Não entendo como pode ser tão pacífico! O ataque ao centro de investigação criminal mostrou como os humanos são fracos! Nós podemos, mactep, eu sei que podemos.

Os irmãos Aires e Maçal permaneceram em silêncio.

— Se nos voltarmos contra os humanos, sem a certeza da vitória, seremos dizimados por eles. Todos nós.

— Pois eu prefiro morrer lutando pela liberdade a que baixar a cabeça para nossos inimigos – bradou Antony.

— Diga-me, quando Sir Antony Birdwhistle se tornou um tolo impulsivo e inconsequente?

Antony cerrou os punhos e encarou Egil. Veias saltaram em sua testa, e ele olhou para os outros dois vampiros, que mais pareciam estátuas de pedra.

Mactep, me tens como um tolo...

— Um tolo impulsivo, Antony. Não percebe que não podemos manter uma guerra enquanto o sol for nossa fraqueza? Podemos vencer a batalha de uma noite, mas os seres humanos ganharão a guerra quando o dia raiar. Nós precisamos de muito mais do que fizemos hoje, e quem sabe não termos isso agora que os humanos voltaram a nos reprimir?

Antony abaixou os olhos.

— Tens razão, mactep.

— Que bom que reconhece isso. Agora, poderiam nos deixar a sós? Preciso conversar com Lupita.

Os três vampiros se inclinaram brevemente para Egil, e então saíram.

Egil caiu sobre a cadeira de qualquer jeito, e cobriu os olhos com as mãos. Lupita jamais vira seu chefe daquele jeito. A humana aproximou-se do vampiro, e envolveu-o em um abraço.

— Eu não sei mais o que fazer para contê-los, Lupita, sinto que estou perdendo o controle – desabafou o vampiro.

— Sei que encontrará uma saída, mactep. Você sempre encontra uma.

— Não me chame assim...

O vampiro se levantou, ainda envolvido pelos braços de Lupita. Os dois permaneceram abraçados enquanto ele acariciava os cabelos dela, desfazia seu coque e deixava-os fios livres.

— Eu daria qualquer coisa para voltar a sentir... De verdade... Não sabe o quanto me dói esconder isso dos meus irmãos, mas eles não entenderiam meus motivos. Eles gostam do que são, do que se tornaram. Eu sinto todos os dias o peso de mentir para eles...

A humana sorriu.

— Eu o entendo, meu amor...

— Quando tudo isso tiver um fim, se tudo isso tiver um fim, nós poderemos, finalmente, viver...

Egil beijou-a. Os dois permaneceram assim durante um longo tempo. Quando se separaram, Lupita percebeu um brilho diferente nos olhos do vampiro.

— Essa guerra só vai terminar quando eu encontrar e destruir o vampiro que me converteu, então, poderemos viver...

Viver.

***

Londres, Inglaterra, 2020

Simon treinava com a espada.

Era um dia frio, do início do segundo mês de inverno, e o jovem Von Bauer estava ao ar livre. Usava roupas leves para a ocasião, pois o movimento do treinamento o aquecia. Passava a maior parte do dia assim, repetindo os movimentos que August o ensinava a cada semana. Se desejava derrotar a origem de todo o mal do mundo, nada menor do que a perfeição serviria – e ele sabia disso.

August aproximou-se com uma bandeja. Nela havia um cálice de hidromel e um pedaço de cordeiro assado.

— Uma pausa para o almoço? – perguntou o vampiro, colocando a bandeja sobre uma mesa de pedra coberta por uma fina camada de neve.

Simon interrompeu o treinamento. Olhou para o vampiro com carinho. Deixou a espada de lado por um tempo e sentou-se ao lado de August.

Um vento gélido percorreu o pátio de treinamento, e ele sentiu os pêlos do corpo inteiro se arrepiarem. Comeu o pedaço de carneiro e bebeu o cálice de hidromel. Doce e reconfortante, como a morte deve ser.

— Obrigado, meu lorde.

— Pelo quê?

— Por ser sempre tão amável comigo.

— Você é a última esperança da humanidade, meu caro Simon. Eu seria um tolo se não fosse amável com você.

De repente era Valentina que estava ali, na frente de Simon, servindo-o. A doce Valentina, com seus lábios carnudos, deliciosos lábios com sabor de hidromel. Os cabelos de Valentina esvoaçavam com o vento, e sua branca pele era como o gelo. Até mesmo o perfume de flores silvestres que ela usava estava ali, como um segredo que só o vento conhecia. Simon sentiu seu membro enrijecer somente de vê-la, e por um instante não se controlou, puxando-a para junto se si e beijando-a.

— Você não passou no teste, Simon – disse August assim que se separaram. – Seus inimigos usarão de truques muito melhores do que este.

Simon desviou os olhos dos de August, e fitou a neve que caía. Por mais difícil que fosse, tinha que admitir que sempre caía naquele truque. Sentia-se um perfeito idiota. Sua paixão o deixava cego e vulnerável.

— Sinto muito, meu lorde.

— Não sinta, jovem Simon.

Simon olhou detidamente para Lorde August. Sempre que estava com o vampiro ele sentia como se o tempo desacelerasse, até quase parar. Era quase perceptível a compressão temporal, os flocos de neve parecendo escorrer lentamente até o chão, como se tudo fosse feito de gelatina.

— O senhor tem muitos truques, meu lorde.

August sorriu brevemente.

— E você tem poder, Simon. Ainda não encontrou uma forma de canalizá-lo, mas não tenho dúvidas de que você carrega o legado dos Von Bauer consigo. Precisa abandonar suas paixões terrenas se quiser cumprir seu desígnio.

O jovem assentiu com um breve movimento da cabeça.

O vampiro permaneceu em silêncio, fitando a neve que voltara a cair na velocidade normal.

— A moça está grávida, Simon, você será pai – disse August. – Sabe o que isso significa?

Os olhos de Simon se estreitaram, e ele pareceu refletir por um momento. Aquilo não estava certo, não deveria ser assim. Por que ele? Por que não outra pessoa? Só queria ter uma vida normal, mas o sangue Von Bauer era amaldiçoado, e normalidade era última coisa que ele teria em sua vida – ou em sua morte.

— Significa que a hora se aproxima, meu lorde.

— Sim, jovem Von Bauer.

— Quanto tempo?

— Um mês.

— Então, devo voltar ao meu treinamento. Não tenho nem um minuto a perder.

Simon levantou-se, inclinou-se brevemente para August e voltou ao treinamento.

O vampiro limitou-se a recolher o cálice e o prato e se retirou em silêncio.


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