Nascidos da Noite - Livro Rigor Mortis escrita por Léo Silva


Capítulo 24
Capítulo 24 - Conte até dez




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Feche os olhos, querido, como nós combinamos, e conte até dez.

A mulher beijou a testa do garoto durante um longo tempo e acariciou os cabelos dele com ternura. Ele sentia o perfume dela – jasmim, com toques de limão siciliano –, e queria que aquele momento durasse para sempre.

— Mamãe?

— Sim, querido.

— Quando a brincadeira terminar, nós podemos ir ao parque?

Ele havia visto um parque quando chegavam a São Paulo. Daqueles com roda-gigante e carrinhos bate-bate. O garoto sempre quis andar na roda gigante – ver o mundo lá de cima, sentir o vento tocando sua pele enquanto ele gritava de medo e alegria. Mas, primeiro, tinha a brincadeira de esconde-esconde.

Conte até dez, querido.

— Mas é claro, o que você quiser... Agora, feche os olhos e conte – pediu a mulher. – Bem devagar, da forma que combinamos.

O garoto obedeceu. Estavam na Rodoviária do Tietê, e centenas de pessoas passavam em diferentes direções. De olhos fechados, o garoto contou:

— Um... Dois... Três... Quatro... Cinco... Seis... Sete... Oito... Nove... Dez.

Quando abriu os olhos, estava sozinho no meio da multidão.

Conte até dez, querido.

— Mamãe?

O garoto deu dois passos, assustado. A mãe não estava em lugar nenhum, e ele se sentiu, pela primeira vez em sua vida, completamente sozinho. Pessoas passavam de um lado para o outro, uma multidão de pernas nas mais diferentes direções.

— Mamãe?

O garoto, com os braços encolhidos, começou a caminhar lentamente, os olhos percorrendo seu entorno. Aquelas pessoas estavam realmente ali, ou ele é que não estava? Então, o garoto se sentiu, pela primeira de muitas vezes, completamente invisível.

Fechou os olhos e contou novamente. Conte até dez, querido. Quando os abriu, ainda estava no meio da multidão, sozinho e invisível. Sua mãe o deixara.

***

Cachorro Louco abriu os olhos lentamente. Há alguns segundos estava suspenso sobre o poço, e agora, estava dentro dele. Quase no fundo. Lá embaixo os olhos vermelhos se movimentavam de um lado para o outro.

Então, se fixaram em Cachorro Louco.

— Estou com fome, porque meu jantar não desce logo? – uma voz sumida de garoto ecoou dentro do poço.

Agora, Cachorro Louco não se sentia sozinho. Nem invisível. Mas estava com tanto medo quanto no dia em que foi abandonado em São Paulo – um medo quase palpável. O garoto que um dia ele foi ainda se escondia lá dentro, e de vez em quando voltava à superfície. Tentou gritar, esquecendo por um instante da mordaça.

Eu não sou seu jantar, pensou Cachorro Louco. Preciso sair daqui. Mas, antes, essa mordaça. Cachorro Louco tentou cortar o tecido que o amordaçava com os dentes, mas foi em vão. Estava muito perto da parede do poço, e havia uma protuberância em uma das pedras. Começou a esfregar o tecido contra a protuberância, na esperança de rompê-lo. Ao mesmo tempo, o gosto de sangue invadiu soa boca.

— Onde está a mamãe? Tenho fome!

Os olhos começaram a se movimentar para cima, com o som característico de correntes sendo arrastadas. Então, pararam. Ali, o limite possível para aquela criatura.

— Que cheiro bom! Mamãe cozinha como ninguém!

Cachorro Louco olhou para baixo, e aqueles olhos pareceram se estreitar, ardilosos. Com a boca sangrando, ele continuou a esfregar a mordaça na pedra. Então, sentiu o primeiro solavanco. A corrente cedeu alguns centímetros, e ele desceu um pouco para dentro do poço. Aquele movimento foi suficiente para a mordaça se soltar, libertando-o.

— Socorro! Samanta! – gritou Cachorro Louco.

No fundo do poço, os olhos começaram a se movimentar freneticamente, ao mesmo tempo em que o barulho de correntes se intensificou. Sentindo outro movimento involuntário da corrente onde estava preso, Cachorro Louco abriu as pernas, tentando se segurar, mas as paredes do poço eram escorregadias demais. Seus pés não encontravam apoio, e ele sentiu a corrente ceder mais um pouco, e ele desceu mais um pouco. Agora ele via o que, de fato, o aguardava.

O fundo do poço era uma espécie de galeria, que se estendia para os lados como um cômodo. Havia pilhas de livros, brinquedos e ossos e, em um dos cantos, uma escrivaninha com uma luminária (alimentada por uma rede diferentes da casa, pois a luz estava acesa.

Então, o dono dos olhos vermelhos apareceu. Um garoto de aparentemente oito anos, com longos cabelos amarrados em um rabo-de-cavalo. Estava descalço, e usava apenas uma bermuda surrada. Uma corrente prendia sua perna ao chão.

— Falta pouco para o jantar...

— Eu não sou seu jantar!

— É o que veremos, jantar. Se não fossem por essas correntes que minha mamãe colocou em mim, você já teria deixado esse mundo – disse ele.

O garoto abriu a boca e seus caninos saltaram das gengivas. Ele avançou na direção de Cachorro Louco. Com as garras estendidas, o garoto quase conseguia alcançar o pé de Cachorro Louco. Se essa corrente ceder mais um pouco, estou perdido.

O garoto uivou, as mãos esticadas para o alto.

Cachorro Louco ouviu um estalo, e acreditou que seu fim havia chegado.

***

Londres, Inglaterra, 2020

Lord August tomava uma taça de vinho quando Florence entrou no aposento.

A vampira sentou-se na cama, ao lado dele, e abraçou-o delicadamente. Ele olhou para ela com carinho. Acariciou os longos cabelos de Florence. De olhos fechados, a vampira parecia em transe.

— Minha doce Florence – sussurrou ele. – Como está nosso hóspede?

— Nesse momento despoja a jovem senhora – disse ela, abrindo os olhos.

Sim, era exatamente o que ele precisava (embora não gostasse de como aquilo soara). Que Simon fizesse sua parte e deixasse um descendente antes de partir. Deveria, inclusive, batizá-lo assim que tivessem certeza do sexo (e seria convenientemente bom se fosse um homem, embora não estritamente necessário). Florence sabia como prever o sexo de bebês desde muito cedo, tinha de admitir que nisso ela era razoável.

— Sentirá sua falta? – choramingou ela de repente.

August levara a mão à taça e tomava mais um gole do vinho. Quando terminou, voltou a olhar para Florence, alisando levemente seus cabelos recém penteados.

— Por que sentiria falta dele, se tenho você? – mentiu.

O olhar da vampira pareceu condescendente. Ela apoiou a cabeça no ombro de August, e suspirou.

— Por que o senhor, meu lorde, anda um tanto quanto... melancólico.

— Minha doce e inocente Florence, sabe o que acontecerá se Kassius cumprir sua demanda pela Noite Eterna?

Florence ergueu os olhos para o mestre. Não disse palavra alguma, nem precisava. Sabia que aquele tempo juntos tinha sido terrivelmente longo, porém, igualmente feliz. Se vampiros ainda podiam sentir alguma coisa – e ela queria que a resposta para essa indagação fosse um retumbante sim—, Florence sentia que amava August.

— Primeiro, ele abrirá as portas do Outro Mundo. Depois, todos ouvirão O Chamado dos Primeiros. Aqueles que atenderem irão guerrear contra os humanos resistentes. Quem não atender será caçado e destruído. Diante desse quadro, não tenho o direito de sentir ciúmes ou saudades do nosso hóspede.

Embora sinta, quase acrescentou. Realmente sentirei.

— Quando as trombetas soarem, toda a magia que aqui nos encerra acabará. Será o fim da nossa Idade Média – disse ele. – Minha época preferida, realmente uma pena. Talvez o Renascimento fosse um pouco mais interessante pela alta produtividade dos humanos, mas a Idade Média foi a melhor época para ser vampiro. Idade das Trevas não poderia ser um termo mais adequado.

— Onde erramos da última vez? – perguntou ele.

— Tentamos ajudá-lo demais.

— Nenhuma ajuda é demais, Florence... Ajudamos da forma errada, suponho... Precisamos fazer tudo da forma correra desta vez... Tenho tudo para acreditar que é a última tentativa – sussurrou ele.

Os olhos de Florence se estreitaram dentro das órbitas. August bebeu mais um gole do vinho, parecia distante.

Florence sabia que os poderes do amo  iam muito além de controlar o tempo ao seu redor – assim como desconhecia totalmente a extensão dos mesmos. Todo poder tem um limite, ele dizia, mas é importante que o inimigo o desconheça. Assim, ela ainda tinha dúvidas do quanto ele escondia.

— O que fará se Simon falhar em sua missão? – perguntou ela.

Lord August permaneceu calado. Sim, havia essa possibilidade. Sempre há. Mas não queria pensar nisso. Queria acreditar, por um segundo que fosse, que estava fazendo a coisa certa desde muito tempo. Desde que ele mesmo falhara em sua missão. Por isso, preferiu o silêncio, embora soubesse exatamente o que faria caso tudo saísse terrivelmente errado.

Florence não insistiu.

— Por que não toca alguma coisa para nós? Nem me lembro quando foi a última vez que ouvi a Moonlight Sonata.

Florence levantou-se com um sorriso no rosto e foi para o piano. Começou a tocar, enquanto Lord August se servia de outra taça de vinho, e mantinha aquele olhar melancólico que o tomara por completo nos últimos dias.


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