Aquele era um mundo quase vazio, onde o tempo não passava; onde apenas a vida passava e esperava.

Era como se aquele mundo se encontrasse em uma plataforma flutuante, desconecta do universo como formalmente é conhecido.

Neste mundo havia uma vida dentro de outra vida. Essa vida era real, mas ela não vivia, pois não tinha qualquer possibilidade de criar consequências para os outros mundos.

Naquele mundo, era como se sua existência fosse apenas uma parte opcional do universo.

Um mundo sem cor, sem luz, sem brilho. Sem coisas claras e transparentes, pois era tudo escuridão.

Um mundo sem cheiros e sem sabores, sem sensações e sentimentos.

Um mundo estéril, onde nem a esperança conseguia sobreviver.

Um mundo onde apenas existia uma voz.

Um mundo onde havia uma lembrança.

Um mundo onde havia uma dor.

-Aoba-san...

O timbre suave o despertou do estado de semi-catatonia no qual se encontrava.

A voz querida e conhecida teria feito com que um arrepio de puro pavor subisse por sua espinha, mas isso apenas seria possível se Aoba ainda fosse capaz de sentir medo.

De sentir qualquer coisa além da aflição de ser mantido vivo.

-Aoba-san. –A voz chamou mais uma vez, como se numa tentativa de resgatar do mais jovem qualquer reação. Mas como era de se esperar, ele não se moveu, seu corpo inerte permanecendo jogado sobre o leito como uma folha seca soprada pelo acaso.

Clear não se importou com aquela indiferença, na verdade ansiava por ela. Aproximou-se calmamente da cama onde jazia como morto o corpo magro e debilitado do jovem desprovido de membros.

-Você está realmente lindo hoje, Aoba-san. –Comentou, a voz suave soando como uma carícia nos ouvidos do menor, semelhante à maneira cuidadosa como seus dedos brancos resvalavam pelos cabelos sem brilho. -Você é sempre lindo, mas parece que tem algo especial hoje... –Continuou, descendo seus dedos pela face dele, tocando-a como se fosse algo frágil e muito valioso. –Não sei o que é, talvez sua pele, sua boca, seus cabelos... –Os dedos resvalaram por uma mecha azulada, tirando-a da frente de onde deveriam ficar os olhos de Aoba, mas que agora se exibiam apenas grandes e profundas cicatrizes. –Será que você não está sabendo de alguma coisa? Estou achando você meio ansioso hoje, não está? –Riu de leve. –Será que algo em mim deixou transparecer, Aoba-san? Eu de fato estava muito ansioso desde ontem, pois eu queria que hoje fosse um dia muito especial para nós dois, afinal, hoje é Dia dos Namorados. –Concluiu com o timbre um pouco mais alegre, dando um beijo estalado na bochecha do rapaz. –É claro que eu não deixaria uma data tão especial passar em branco.

Nesse momento Aoba escutou o som de celofane sendo remexido, e em questão de segundos teve algo pressionado contra seus lábios, entreabrindo-os levemente, juntamente a seus dentes, de maneira que logo se deu o contato entre sua língua e o doce. Clear deixou o pequeno pedaço de chocolate ali, derretendo sobre a língua inerte de Aoba.

-Espero que esteja bom. Foi a primeira vez que eu fiz um presente de Dia dos Namorados, por isso eu estava um pouco inseguro. Mas até que não foi tão difícil. –Comentava com um sorriso no rosto. –É só derreter o chocolate em banho-maria e depois colocar nas formas... Essas formas são em forma de água-viva, acredita? – Perguntou, mesmo sabendo que não obteria qualquer resposta. Ele próprio havia extraído cirurgicamente as cordas vocais de seu amado. –Por algum motivo eu achei que você gostaria de saber. E a embalagem é azul como os seus cabelos, e tem desenhos de pequenos guarda-chuvas amarelos, da cor daquele meu cachecol antigo, você se lembra? – Riu um pouquinho mais.

Se se lembrava? Sim... As lembranças eram as únicas coisas que impediam que sua mente atravessasse de vez a barreira da insanidade.

Era às suas lembranças que ele se apegava toda vez que seus ouvidos eram invadidos por aquela voz monotonamente doce; toda vez que seu corpo era tocado por aqueles dedos frios e suaves.

A lembrança das vezes em que aquela mesma voz o chamara de ‘master’ de forma alegre e empolgada; da vez que os dedos dele, tão quentes, tocaram sua face em uma noite de chuva; a vez que suas bocas se tocaram em um beijo cálido e repleto de paixão.

Um beijo tão diferente do que era trocado agora, em que Clear impunha repentinamente seus lábios contra os do menor, e sua língua buscava roubar da língua de Aoba o sabor do chocolate.

-Você é tão doce, Aoba-san. –Ele disse, mas para Aoba aquele gosto parecia indefinido.

Era algo que ia além do poder de discernimento de suas papilas gustativas, além do tempo em que sua língua não sentia nada além da boca de Clear. A alimentação puramente intravenosa contribuíra não apenas para a atrofia de seus músculos, mas também para o amortecimento de seus sentidos.

Não sentia medo, não sentia gostos, não sentia nada.

Mas infelizmente não podia dizer aquilo para Clear, nem com palavras, nem com gestos, nem com um olhar.

Clear jamais poderia saber que seu intento, que seu maior desejo já havia sido alcançado. E por isso deu-lhe outro beijo, mais intenso e necessitado que o anterior, na urgência arrependida de ter proporcionado a Aoba um sabor diferente do habitual.

Sim, era egoísta pensar daquela forma, mas não queria que Aoba sentisse sequer o gosto do chocolate.

Queria que Aoba sentisse apenas seu gosto, sua pele, seus toques.

Pois Aoba era todo o seu mundo, e ele desejava ser todo o mundo de Aoba também.

Mesmo que este não fosse um mundo brilhante e transparente.

Um mundo preenchido por apenas uma voz cristalina.

-Aoba-san...