Em Família escrita por Aline Herondale
Notas iniciais do capítulo
Voltei!
Eai, como foi o feriado de vocês?
Viajaram, ficaram em casa, foram para algum interior?
Particularmente até gostei desse capítulo.
Aquele lugar era arrepiante. Com as paredes expostas, cheias de mofo, lodo e sujeira, imaginei que ninguém ia ali desde o meu nascimento. As tubulações e canos cobriam todo o teto do sótão e não havia janelas ou buracos para a entrada da claridade externa. Apenas um abajur no teto, cheio de teias de arranhas. Puxei a cordinha e andei até a dobra do corredor, onde havia outro abajur e o liguei. O freezer ficava num cômodo onde a porta estava sempre aberta – junto a outros objetos que não usávamos mais.
Abri o freezer, joguei os potes de sorvete de qualquer jeito e me apressei em sair dali. Não me lembrava da última vez que havia sentido tanto medo.
Mas bastou eu chegar de volta à cozinha e me virar para encostar as costas na porta que encontrei Charlie me observando, com um facão em mãos.
Ele picava cebolinha.
– Muito frio lá em baixo? – Perguntou e identifiquei resquícios de deboche na sua voz. Fechei o semblante e respondi um mentiroso “Não” antes de caminhar para fora da cozinha. O escutei soltar um riso e voltar a bater a faca na tábua de madeira.
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– Sabe...Houve um tempo em que o Bryan preparava refeições assim. – Minha mãe quebrou o silêncio que havia se instalado desde que nos três havíamos sentamos à mesa, para jantar. Ela limpou a boca com o guardanapo e olhou para mim. – Não era, Evie?
Não tive oportunidade de responder um “não”: - Oh, desculpe. É claro, isso foi antes de você nascer. – Disse bufando e me lançando um olhar de desdém. Ignorei-a e cortei o último pedaço de carne do meu prato.
– Aonde aprendeu a cozinha assim, Charlie? – Ela quis saber.
– Com a chef Madame Jaqué. Ela dirigia um restaurante, nos arredores de Toulouse, chamado La Institución.
– Oh, uma chef mulher? – Ela destacou, pendendo a cabeça para o lado; um já conhecido sinal de que estava jogando charme.
– Na opinião dela, não há nada que um homem faça com perfeição que uma mulher não possa fazer melhor.
– O que quer dizer? – Perguntei, decidida a, também, participar da conversa. Charlie olhou para mim, virando o rosto lentamente.
– Que fica melhor em francês. – Minha mãe o cortou. Charlie não respondeu mas continuou me encarando. Olhei para meu próprio prato e, suspirando alto, coloquei o último pedaço de batata na boca.
– Ah...Charlie – ela cantarolou seu nome, esticando o pescoço para olhar seu prato. – Você nem tocou na comida. –Observou e não deixei de verificar ser verdade. O prato dele estava intacto. – Colocou veneno na comida só para as garotas? – Lena perguntou presunçosa, bebendo mais um gole do vinho.
Pela primeira vez o vi rir de verdade e então ele disse olhando para meu prato: - Mas a Evie comeu tudinho. Praticamente lambeu o prato.
Olhei para baixo e, infelizmente, encontrei meu prato totalmente limpo. Enfureci por dentro e reprimi um grito de raiva. Lancei-lhe um olhar sério e soltei com grosseria os talheres que segurava, fazendo-os bater no prato e cantar alto. Foi a melhor forma que encontrei de demonstrar minha aversão à verdade dita por ele.
Charlie não deixou-se abalar e sorrindo disse: - Que bom que você gostou. Agora, aceitam mais alguma coisa? Talvez um pouco de...sorvete? – Terminou a frase olhando de relance para mim, que havia esbugalhado os olhos com a singela lembrança daquele porão assustador.
– Não. – Respondi friamente. Minha mãe ao meu lado fez um tipo de guincho e me corrigiu.
– Não, obrigada.
– Quer dizer, não obrigada. – Forcei um sorriso no rosto e assim que minha mãe virou o rosto tratei de faze-lo sumir.
– Você gostaria de tocar para a gente, após o jantar? – Minha mãe me perguntou.
– Acho que não. – Respondi dura.
Minha mãe nunca pedira para eu tocar antes. Se quer gostava de ter o piano ali, mesmo sabendo tocar lindamente. Porque isso agora? Eu não suportava como soava falsa. – E você? – Provoquei.
– Evie! – Ela soou como se tivesse sido molestada. Tive vontade de revirar os olhos.
– Ah, é verdade. Não, obrigada. – Corrigi-me e lhe mostrei um sorriso. Claramente, estava sendo irritante.
Ficamos em silêncio por dez segundos e quando tive a certeza de que Lena não tinha mais idéias para o início de uma conversa me pronunciei: - Porque não me contou que eu tinha um tio?
Ela balançou a cabeça, respondendo de forma defensiva: - Por que eu também mal sabia da existência do Charlie. Ele tem viajado pelo mundo desde que conheci seu pai.
– Ele sempre me dizia: “Que tipo de família, é a família que não se leva para casa?” – Charlie disse olhando para o vazio.
Minha mãe se remexeu na cadeira e pediu licença levantando da mesa às pressas, alegando não suportar falar sobre o falecido, levando um dos guardanapos contra o rosto e a taça de vinho nas mãos. Provavelmente dormiria quando estivesse tonta o suficiente.
Charlie, que havia se levantado ao mesmo tempo que minha mãe, tornou a se sentar de forma lenta e cruzou os braços sobre a mesa, jogando o corpo para frente.
Sem muitas opções peguei a garrafa de vinho que estava à minha frente e comecei a ler os dizeres. Era quase palpável seu olhar azul acinzentado sobre mim. Parei quando li o ano do vinho e aproximei meu rosto, franzindo o cenho, para ter a certeza de não estar confundindo os números. Levantei de forma preguiçosa meu olhar até o rosto do meu tio.
– 1995. – Como se lesse meus pensamentos, Charlie disse empurrando sua taça de vinho para mim. – O ano em que você nasceu.
Receosa, peguei a taça com o vinho e a levei até perto da boca. Demorei um segundo para decidir se bebia ou não, e pendi a cabeça até sentir o líquido doce tocar meus lábios e encher minha boca. Dei dois goles e coloquei a taça de volta à mesa. O gosto era bom, muito bom, na verdade, e lambi os lábios para não perder nenhuma gota daquele líquido escarlate.
Relembrei de que meu tio estava sentado à minha frente. Levantei a cabeça e encontrei seu olhar sobre mim. Mas não era um olhar comum, estava mais intenso; o cinza havia lhe tomado toda a órbita e ele parecia se deliciar com a minha imagem. Parecia maravilhado.
Precisei respirar fundo para dizer a frase pressa na minha garganta.
– O que quer de mim? – Perguntei.
– Ser seu amigo. – Ele respondeu, simplesmente. Um sorriso maroto esculpia seus lábios finos.
Raciocinei as entrelinhas daquela resposta e empurrei de volta a taça para ele.
– Não precisamos ser amigos. – Ele observou a taça se aproximar de si, levantando uma sobrancelha.
– Somos parentes. – Completei e cruzei os braços sobre a mesa, na mesma posição que ele. Seus olhos brilharam e, por mais que tenha tentado, não consegui evitar que um dos cantos do meu lábio se elevasse num singelo sorriso, quando o vi mostrar um sorrir satisfeito para mim.
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XOXO