Caçador escrita por Lian Black


Capítulo 51
Estou ficando alérgico à Wendigos




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Me levanto lentamente. Megan vai em silêncio em direção a Jene. Eu deixo as duas se virarem e vou em direção à porta. Me escondo atrás do balcão e fico esperando.

Consigo ouvir nitidamente alguém tentando arrombar a fechadura. A maçaneta treme ruidosamente, e ouço um ou outro palavrão quando ela não abre tão fácil. Então com um clique a porta se destranca. Depois de alguns segundos ela se abre ligeiramente. Uma cabeça espreita para dentro, então a porta se abre completamente e um vulto entra.

Por causa da luz atrás dele não consigo ver o rosto, apenas o contorno. Espero ele dar alguns passos, passando da altura do balcão, então pulo silenciosamente por cima do balcão.

Mesmo eu não fazendo nenhum barulho, o vulto parece me notar e começa a se virar. Mas eu já estava no ar, então caio pesadamente por sobre ele, jogando-o de cara no chão. Fico agachado em suas costas, segurando o ombro com um joelho e colocando meu punhal em sua garganta.

Ele pragueja, e eu reconheço a voz. Nesse momento Jene e Megan aparecem, iluminando-o com as lanternas.

— Joe! — Eu exclamo, saindo de cima dele.

Joe se levanta com um resmungo, tentando endireitar a jaqueta. Ela olha para mim.

— Quase me escapelou!

Eu rio. Megan e Jene se aproximam, e Jene entrega para Joe o boné que voou com a queda.

— Obrigado. Bom ver vocês. — Apesar do plural, Joe fala olhando apenas para Jene. Ela parece satisfeita com isso. — Então também estão nessa encrenca?

— É. Um maldito demônio conseguiu nos dopar e trazer para cá. Já vou avisando: Se ele encostar um dedo que seja no meu carro... — Eu ameaço.

Megan revira os olhos.

— Nós estamos sendo obrigados a lutar até a morte e você se preocupa com o seu carro?

— Ei, eu concordo com o Lian! — Jene se manifesta. Joe também acena com a cabeça. Megan fica nos olhando como se fossemos loucos. Bom, talvez um pouquinho.

Eu vou até a porta e olho para fora, verificando se a barra está limpa. E está. Fecho a porta e tranco de novo. Então me viro para eles, que ainda estão parados ali me olhando.

— O que fazemos agora? — Joe perguntou. Nossa, como eles gostam de me deixar no comando. Não sei se fico lisonjeado pela confiança ou irritado pelo trabalho extra.

— Agora, nada. Precisamos saber exatamente onde estamos e em que pé estão as coisas. Quantos Caçadores estão aqui, e quantas criaturas. E isso podemos fazer muito bem de manhã.

— Hã... Falando nisso, acho que achei uma coisa. — Jene comenta, então fica sem jeito quando nós três olhamos para ela. — Por aqui.

Ela vai até o corredor onde estava. Nós a seguimos curiosos. O que ela achou agora? Se for um rato, eu vou dar um ataque.

Jene se agacha no meio do corredor e tira uma das tábuas do soalho para o lado, e ilumina com a lanterna para o buraco.

— Só pode estar brincando! — Eu exclamo em deleite, me ajoelhando ao seu lado. — Isso é uma maravilha!

Em uma caixa aberta, debaixo do soalho, vejo armas. Armas e munição. E bastante. Corro de volta até onde deixamos as mochilas e pego o pé-de-cabra. Começo a forçar o buraco.

Megan resgata a barra de ferro, Jene trabalha com a faca e Joe usa um martelo que achou ao lado do balcão. Trabalhamos por alguns minutos, desmontando o chão do mercado.

Quando terminamos, quase não consigo acreditar no que vejo. Um verdadeiro arsenal para Caçadores. Tem de tudo ali. Dinamite, munição, espingardas, escopetas, facas, punhais, facões, tacos de basebol, garruchas, pistolas, metralhadores, granadas de mão, um machado de lâmina dupla e vários galões. Olho dentro de alguns. Água, provavelmente benta. E um cantil que cujo conteúdo tenho certeza ser sangue de demônio.

— Esse mercado devia ser de um Caçador. — Eu falo, vasculhando o arsenal a procura de armas. Me ergo de novo com um sorriso enorme e uma MK47 na mão esquerda e uma Winchester .44 na direita. — Simplesmente adorei o lugar.

Megan ri. Joe e Jene estão ocupados demais procurando eles mesmos.

— Alguns desses cartuchos são de sal. — Joe fala vasculhando as caixas de munição. — E saca só: Chumbo de escopeta caseiro com estilhaços de vidro. Isso vai fazer um estrago danado. E olha isso: Pó de prata em algumas das misturas. Esse cara é mais viciado em armamento que você, Lian.

Jene se ergue levantando um rifle e assoprando a poeira dele. Meu queixo cai.

— Impossível! Essa arma... Não pode ser. Isso é... — Fico sem conseguir falar, enquanto observo a arma. — Não é possível. Eu tenho que estar sonhando.

Os três me olham preocupados e surpresos, como se eu não estivesse falando coisa com coisa. Talvez não esteja mesmo, mas é que essa arma...

— O que foi cara? Isso é só uma Winchester Henry .44, se acalma. O cara deve ter mais umas cinco como essa.

Eu balanço a cabeça.

— Vocês não entenderam. Esse é o primeiro Winchester Henry .44. Essa arma é lendária, mais famosa que o Colt. — Eu balanço a cabeça de novo, ainda sem palavras. — O criador dessa arma... Superou Samuel Colt. Ele estudou a criação do Colt, e então fez melhor. Conseguiu, sabe-se lá como, um pedaço da foice do próprio Morte, e com esse pedaço forjou uma arma. Essa arma que você está vendo. E essa madeira é de uma árvore do Jardim do Éden, mais exatamente, a árvore. Essa arma — eu faço uma pausa para dar ênfase —, deve ser capaz de matar Lúcifer. Deve ser capaz de matar Deus e até o próprio Morte. É um poder devastador, que supera o da Primeira Espada de Caim.

Eles se entreolham chocados.

— E o que uma arma dessas está fazendo aqui? — Megan pergunta. Está mais para uma pergunta retórica, mas respondo mesmo assim.

— O antigo dono do mercado devia ser um grande Caçador, e conseguiu a arma. É a única explicação. — Pego cuidadosamente a arma das mãos de Jene, examinando-a. — É, a descrição bate certinho. — Desengatilho a arma e verifico o tambor. Faço uma careta desanimada, então me animo de volta. — Vamos procurar as balas.

Joe começa a vasculhar o arsenal novamente. Depois de alguns minutos ele ergue uma caixa preta. Um W floreado está desenhado na tampa, e dezenas de Chaves de Salomão e de pentagramas estão entalhadas na caixa. Também vários hieróglifos da Linguagem Enoquiana. Estremeço ao reconhecer alguns deles. Então estremeço de novo e mais ainda ao reconhecer hieróglifos feitos pelos Necromantes, e o que eles representam... Bom, digamos que alguém queria evitar que demônios, fantasmas, ou qualquer ser vivo ou morto abrisse essa caixa.

Mas eu me arrisco. Não acontece nada ao eu abrir a caixa, o que é ótimo, diga-se de passagem. Dentro estão vinte balas de um material negro como a noite, embora aja lugar para 30 balas.

— Precisamos vasculhar esse lugar, ter certeza de que era de um Caçador.

— Por quê? Já não temos a arma? — Megan pergunta. — Que diferença faz quem era o antigo dono?

— A diferença é que não podemos levar essa arma conosco agora. E a diferença é de que se for de um Caçador, então podemos deixar a arma aqui e ela estará segura até voltarmos para pegar.

Eles concordam, ainda em dúvida. Passamos um pente fino bem mais cuidadosa, raspando a tinta das paredes e limpando a poeira do chão. O que encontramos é realmente assustador.

Um grande pentagrama ocupa a sala inteira. Temos Chaves de Salomão por todo o lado, desde os pequenos até os grandes. E são muitos, a ponto que perdemos a conta. Vejo outros símbolos de Enoque e símbolos de Necromantes. Esses eu reconheço, e parece que o antigo morador conhecia vários feitios que ele não devia conhecer.

Por fim eu fico satisfeito o bastante com as proteções dali. Deve ser realmente a prova de qualquer coisa. Concertamos o que conseguimos do soalho após tirar as armas que iríamos usar, e colocamos o Winchester de novo ali dentro. Sério, eu achava o meu Colt .45 e o meu punhal ótimos para Caça. Mas tendo essa arma agora... Acabamos de nos tornar praticamente os maiores exterminadores da face da terra. Essa deve ser a arma mais poderosa do mundo.

Claro, eu também fico pensativo do tipo “será que não deveríamos destruí-la por ser poderosa demais e perigosa caso caia em mãos erradas” e etc. Mas na verdade, eu confio em mim mesmo. E o rifle vale o risco.

Ficamos com poucas armas, já que não vamos conseguir usar todas, e agora é melhor trocar de lugar. Eu pego o cantil de sangue de demônio, e cada de nós fica com dois frascos de água benta. Pegamos, cada um, um facão, e uma escopeta cano serrado. Joe pega também duas pistolas para ele, que ao contrario de nós estava sem nenhum arma.

Carregamos as armas e pegamos o máximo de munição que conseguimos carregar, tirando tudo que for dispensável das mochilas e enchendo com munição. No fim a divisão dos mantimentos fica assim: Jene e Megan ficaram, cada uma, com uma mochila cheia de comida e artigos úteis, como lanternas, corda, caixa de fósforos e dois pequenos frascos cheios de gasolina. Que foi? Coquetel molotov improvisado.

Joe e eu ficamos com a carga mais pesada. As mochilas cheias de munição. Além delas ainda pegamos uma mala, como a daquelas em que os jogadores de basquete carregam as roupas nos jogos, e enchemos de munição reserva. Não vai ser muito cômodo em combate, mas pode vir a ser útil. E como somos quatro...

Já passa do meio dia quando terminamos os preparativos. Comemos rapidamente, alguns biscoitos e água, e nos preparamos para sair. Observo cuidadosamente a rua do lado de fora, para ter certeza que a barra está limpa. Então saímos.

Tenho o cuidado de trancar de novo a porta. É melhor que ninguém entre ali e acabe achando aquilo. Andamos rapidamente pela rua, tentando não chamar atenção, mesmo com ela vazia. Nosso alvo é uma igreja no fim da rua. Deve ser um bom lugar para acamparmos. Da torre do sino deve ser possível ver grande parte da cidade, e tem também o cemitério. Eu posso tentar conseguir informações com algum fantasma.

Conseguimos chegar lá sem problemas. Megan usa um clipe de papel para destrancar a porta, e nós entramos.

A igreja está vazia, e empoeirada. Os fachos de luz solar que entram pelos vitrais no alto mostram a poeira no ar. Os bancos enfileirados parecem não ter sido usados a anos. Mas não damos bola. Ela vai servir para o que queremos.

Montamos acampamento no altar. É um lugar elevado dentro da igreja, e de lá podemos ver a entrada e ainda fugir pela sacristia.

— E então — Joe se senta ao meu lado perto da imagem da cruz. — Acha que essa história é séria, sabe, de Caçadores uns matando os outros?

Olho para cima, pensando no que ele disse.

— Imagino que sim. O demônio não está deixando muitas escolhas, e a maioria dos Caçadores vai fazer o que for preciso. Sem escrúpulos, lembra? — Eu sorrio fracamente. — E se tentarem nos matar, vou garantir que morram antes. Apenas isso.

Depois disso, Joe fica em silêncio. Nós quatro ficamos ali, sem falar muito, apenas esperando o tempo passar, com a tensão tangível. Eu aproveito o tempo para pensar direito. Ainda não tive como fazer isso, já que desde que acordei fui movido pela adrenalina e pressão.

Sei perfeitamente que não podemos ficar apenas assim por muito tempo. Em breve teremos de atacar, partir para a ofensiva. E vai ter que ser logo.

Tenho de bolar uma boa estratégia. O nosso grupo vai ser grande, então não vai conseguir passar muito despercebido. Em geral os Caçadores andam em duplas, ou sozinhos. Um trio é tremendamente raro, a não ser quando dois grupos diferentes acabam Caçando a mesma coisa por acidente. Posso apostar que vão rolar alianças aqui, alianças que serão desfeitas no fim. Isso vai ser perigoso. Tenho de calcular muito bem o que vamos fazer.

Tump!

Acordo com um sobressalto. Nem tinha percebido que dormi. Olho em volta, tentando localizar a origem do ruído. Megan, Joe e Jene também começam a se levantar.

A porta da igreja é aberta num rompante, e um Wendigo entra por lá.

Praguejo em voz baixa. É claro. Me esqueci por um momento que o demônio disse que outras criaturas estão por aqui.

Joe corre para onde deixamos a mala com as armas. Jene se afasta lentamente, indo para o outro lado do altar. Megan e eu nos entreolhamos por um breve momento, e ela assente.

O Wendigo começa a correr na nossa direção. Nós dois não esperamos por ele. Vamos para cima.

Na metade do caminho, o Wendigo muda de direção pulando para cima de Megan. Ela se abaixa e manda um chute com toda a força na barriga do Wendigo, interceptando-o no meio do salto. Ele cambaleia por um momento, e então agarra Megan pelo ombro. Ela enfia a faca no braço dele, fazendo com que ela a largue com um rosnado.

Sem tempo para sacar qualquer tipo de arma, pulo em suas costas. Puxo seu corpo para trás, mas ele tenciona os músculos e fica parado no lugar. Solto um grunhido e aumento a força. Ele começa a se virar para me enfrentar, mas Megan enfia a faca em sua garganta. Com um jogo de ombro, atiro o Wendigo para o lado e vou para o lado de Megan, dando cobertura para ela.

O Wendigo puxa a faca de sua garganta e a atira para o lado, soltando um rugido. Com sua velocidade sobre-humana ele me contorna e tenta atacar Megan novamente. Ah não, nem pensar. Ergo o braço esquerdo e seguro sua garganta, pondo força e erguendo ele no ar. Então atiro seu corpo em direção à parede.

Entendam, um Wendigo é muito forte, mas eles são bem leves. Então o que fiz não é muita coisa não.

O Wendigo se ergue, olhando cauteloso para nós, com um rosnado escapando pelos dentes cerrados. O pescoço já tinha se curado da facada, mas agora está com uma queimadura do formato de uma mão. Consegui usar o mesmo truque que fiz alguns meses atrás contra aquele zumbi estuprador. Parece que quando Megan está em perigo consigo usar algum poder que causa necrose onde eu toco.

O Wendigo se prepara para atacar de novo, e eu me preparo para enfrentá-lo, mesmo estando em desvantagem. Não vou morrer aqui.

Bem no momento em que o Wendigo vai saltar, ouço o som de um disparo de escopeta e a cabeça do Wendigo explode, esguichando sangue para todo lado. Ele recua vários passos.

Olho para o lado e vejo Jene recarregando a escopeta cano serrado. Ela se aproxima a atira a queima roupa no peito do Wendigo. A carga de chumbo com cacos de vidro acerta em cheio, sem ter tido tempo para se dispersar demais. O Wendigo é atirado para trás, com o peito destruído quase se desmontando em um punhado de carne sangrenta. É sério, a cena não é nem um pouco agradável.

— Se ferrou, desgraçado. — Jene fala descansando a escopeta em cima do ombro.

Engulo em seco ao me aproximar.

— Admito que isso não é exatamente o que eu faria. Bem pensado.

Jene agradece o elogio com um aceno de cabeça. Então suspira e começa a recarregar a escopeta. Entendo por que. Alguns ferimentos já estão começando a cicatrizar, e o vidro e o chumbo estão sendo expelidos da carcaça. Merda. Ele se cura muito rápido.

Mas antes que Jene possa atirar de novo, Joe se aproxima gritando:

— Afastem-se!

Nós fazemos exatamente isso, pois Joe vem correndo com um lança-chamas na mão. Ele para na frente da carcaça semi-destruída do Wendigo, mira, e aperta o gatilho. Uma longa língua de chamas engolfa o corpo, que pega fogo imediatamente. Joe permanece mais alguns segundos com o gatilho pressionado, então tira o dedo e larga o lança-chamas no chão.

Ele recua, enxugando o suor causado pelo calor. Nós três nos aproximamos, vendo a carcaça queimar.

— De onde você tirou o lança-chamas? — Megan pergunta.

— Ah, bom, é que, tipo assim — eu começo, culpado. — Sabe como é, tinha no arsenal. E nós pensamos que poderia ser útil. Sabe como é né, algumas criaturas só morrem queimando.

Megan revira os olhos e bufa, mas me da um beijo então imagino que as coisas vão ir bem. Jene balança a cabeça e vai até a mala, largando a cano serrado lá dentro, então se espreguiça e balança o corpo, como um cachorro tirando água do pelo. Ops, acho que ela pegou essa mania comigo.

Bem nesse instante, alguém entre pela porta. Por causa da luz forte do sol a pino, só conseguimos ver a silhueta.

— De novo não. — Eu reclamo empunhando o Colt. Todos nos viramos para a porta, alertas para o inimigo.


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