Hereafter escrita por DimitriRoltz


Capítulo 3
Capítulo Três


Notas iniciais do capítulo

Hey, hey. Novo capítulo. Está aqui como prometido. Espero que gostem



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Capítulo

três

Dois dias se passaram.

Apesar de provavelmente não ter sido nada demais para os vivos, esse espaço de tempo foi extraordinário para mim. Até então, nunca tinha achado nenhum motivo para contar a passagem dos dias. O nascer e o pôr do sol não tinham me afetado em nada, a não ser pelo fato de ficar mais escuro a noite. Não precisava dormir, e minha solidão durante os dias não mudava com a chegada do crepúsculo. Quando os pesadelos começaram (me arrancando da minha existência éterea para me lançar naquele horror inconsciente e então me jogar de volta naquele estranho cemitério), eu tinha toda a vontade de marcar o tempo.

Até então.

Agora, não conseguia parar de contar cada minuto da solidão que passava.

Naquela primeira noite, enquanto via a ambulância indo embora, cheguei a pensar por um instante em segui-la a pé. Mas acabei desistindo da ideia. Por mais que pudesse me locomover de forma quase instantânea pelo tempo e espaço durante meus pesadelos, não tinha descoberto como fazer isso quando acordava. Eu ainda caminhava como qualquer ser humano normal e poderia levar dias até encontrar o hospital para onde a ambulância tinha levado aquele garoto.

Nem me dei conta, até o último carro ter ido embora da margem do rio, de que poderia ter me enfiado em algum banco de trás vazio e talvez ido com o motorista até o hospital... mas e depois? A ideia de pegar uma carona clandestina com algum estranho vivo só para poder chegar ao hospital e depois vagar pelos corredores à procura de outro estranho... bom, eu me senti boba e irracional, só por pensar nisso.

Mas claro, vagar pelo local onde eu tinha não me parecia lá muito racional.

Da margem do rio, fiquei assistindo enquanto a polícia montava uma barricada para tampar o buraco aberto na ponte acima de mim. E continuei lá enquanto uma equipe de bombeiros, totalmente alheia à menina solitária na margem, içava o carro lamacento do garoto para fora da água. Enquanto tudo isso acontecia, nem questionei meu desejo de estar ali (afinal quem não se interessaria por aquelas coisas?).

Mas depois de toda a agitação acabou, cada momento que eu passava naquele lugar fazia me sentir cada vez mais tonta.

Por um instante, tentei justificar minha necessidade de ficar ali. E me convenci de que só precisava de um pouco de tempo para reorganizar minhas ideias antes de voltar às minhas andanças sem rumo.

Mas, no fundo, eu sabia a verdade. Sabia muito bem por que ainda estava ali.

Eu não queria mais andar sem rumo. Queria encontrar um local muito específico. Queria encontrar alguém.

Alguém que quase tinha morrido (ou talvez até tivesse, não tinha como saber) naquele rio. Alguém que, com isso, acabou mudando minha existência para sempre.

Notei também outros sinais, fora minha relutância em ir embora, de algo tinha mudado. Primeiro, comecei a ter o que vim a chamar de "flashbacks". EU estava andando pelo bosque ao lado do rio, ou ao longo da margem, e um flashback acontecia. Uma imagem (nítida, colorida, cheia de aromas e sabores) vinha à minha mente e então sumia tão rápido quanto tinha surgido.

Como os pesadelos, esse flashbacks apareciam de repente. Mas em vez de cheio de medo e angústia, eles me traziam uma coisa infinitamente melhor: fragmentos do que eu só podia concluir que eram memórias da minha vida antes de morrer.

Nada muito significativo tinham aparecido ainda: uma fita preta tremulando ao vento; o som dos pneus derrapando pelo asfalto; o cheiro da terra depois de uma tempestade de primavera. Nenhuma pessoa, nenhum nome, nenhuma cena substancial que me desse alguma pista de quem eu era ou porque tinha morrido. Os sabores e cheiros que eu vivenciava também eram distantes. As coisas que aconteciam nos flashbacks me lembravam mais de fantasmas dessas sensações. Mas isso já era bom o bastante.

A simples lembrança de sua pele contra a minha me dava arrepios. Só que não eram arrepios fugidios e distantes (era uma sensação mesmo). Uma sensação física de verdade. O que já era uma mudança milagrosa na minha existência.

Isso me deixou no mínimo surpresa. Eu estava há tanto tempo desesperada por uma sensação real, física. Queria sentir alguma coisa, qualquer coisa. Mas por mais que eu pusesse a mão em qualquer objeto ou me apertasse contra algo, não adiantava. Não sentia nada. Nada além de uma leve pressão que só me impedia de continuar fazendo força.

Não conseguia atravessar paredes, nem flutuar como um espectro de uma sala para outra. Os vivos que chegavam perto de mim não passavam direto pelo meu corpo; em vez disso, apenas desviavam de caminho por algum motivo, sem me dar atenção, como se eu fosse um obstáculo qualquer.

A única coisa que eu conseguia sentir, que me afetava, era eu mesma. Podia tocar meu cabelo, no meu vestido, na minha própria pele. Mas depois de um tempo, essa exceção deixou de me trazer qualquer conforto. Na verdade, isso acabou virando uma grande piada de mau gosto: eu estava presa em uma cadeia individual. Era como se eu só existisse na minha própria dimensãozinha, sem ser vista, nem ouvida por mais ninguém mas como uma enlouquecedora consciência do que havia à minha volta.

Estava pensando na pele dele de novo quando outro flashback aconteceu. De repente, um cheiro me envolveu, me capturando por completo. Fiquei paralisada no lugar onde estava, cheirando um ramo de amoras do fim do verão que pendia de uma árvore na floresta. Eu me inclinei para mais perto, sorvendo o aroma daquelas frutinhas arredas e passadas sob o sol do meio-dia. Por mais que o cheiro logo tenha se esvaído e a dormência de sempre voltado a me engolir, acabei rindo alto.

Essa foi minha segunda risada do meu pós-vida, e eu queria mais. Sem nem pensar em nada, subi correndo a encosta íngreme e coberta de grama até a ponte.

Transportando colinas altas com um fôlego só, Ou sem fôlego nenhum. A "Super-menina morta"! Ri de novo da minha desgraça, toda empolgada assim que cheguei ao alto da colina e comecei a correr pela grama.

No entanto, quando cheguei ao encostamento da estrada, tive um momento de hesitação: com um pé no asfalto e o outro na grama, e meus braços esticados como se eu fosse trapezista.

Estrada Ponte Alta

Essas palavras ecoaram como uma ameaça dentro da minha cabeça, e fui tomada na mesma hora por um desejo urgente de ir embora daquele lugar. Senti uma coisa estranha no fundo da minha mente, uma comichão subindo e descendo pela minha pele.

Seria aquilo o começo de outro pesadelo? Não, parecia ser algo totalmente novo, uma coisa que eu nunca havia sendo antes.

Balancei a cabeça. Estava sendo ridícula. Afinal, eu estava morta. O que poderia ser mais assustadora do que eu mesma?

Forcei meu pé a sair da grama e o outro a ir mais adiante no asfalto. E cada passo meu ao longo do acostamento da estrada disparava calafrios desagradáveis pela minha espinha.

Isso é idiotice, pensei, endireitando as costas. Eu me recusava a esgueirar pelo acostamento feito um cachorro assustado com o rabo entre as pernas.

– Vamos! –gritei para mim mesmo. Marchei adiante cheia de determinação, ainda que sem muito jeito.

Foi então que ouvi um grito, um barulho medonho e escandaloso que irrompeu atrás de mim, me dando um susto. Então, percebi (logo após soltar um palavrão que nem sabia que existia) que aquele barulho terrível na verdade não tinha sido um grito, e sim o som de pneus derrapando para frear de repente. A poucos metros de mim, um carro preto havia parado, e sua porta então se abriu.

Relaxei na mesma hora. Meus instintos étereos entraram em ação e me dei conta de que não precisava correr, nem ter medo de nada. Porque qualquer um que pudesse dirigir um carro não teria como me machucar ou me ver.

Mas obviamente, apesar do que gritava no meu coração, meus instintos haviam esquecido da única exceção a essa regra.

Um garoto desceu pelo lado do motorista e bateu a porta. Pelo perfil, pude ver que tinha lábios carnudos e um nariz fino com uma leve (quase imperceptível) curva, como se já tivesse sofrido alguma fratura, mas se recuperando bem. Ele tinha os cabelos negros-azulados e olhos mais escuros que a noite. Quando se virou para mim, me peguei pensando, sem nem perceber, que ele agora estava com uma cor bem mais saudável do que da ultima vez que o vi.

– É você! É você! –gritou apontando para mim.

Sem pensar em mais nada, me virei e saí correndo.


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Notas finais do capítulo

Gostaram? C:
Reviews? :3
Recomendações? *o*



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