O Cheque escrita por Goldfield


Capítulo 1
Capítulo Único




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O Cheque

- Vamos, pegue logo!

Haroldo apanhou o cheque, cujo valor possuía mais zeros que boletim de aluno repetente. A bonita letra do empregador fez sua mente delirar com inúmeros sonhos de consumo.

- Já tem o que quer, agora vá!

O sonhador Haroldo sabia que aquele homem era para brincadeiras assim como o calor é para o inverno. Também tinha pleno conhecimento que os serviços que prestava a ele não eram nada limpos. Era melhor deixar logo o lugar.

Antes de sair pela porta encostada, Haroldo fitou a pistola Smithney calibre 45 pendurada na cintura do empregador, enquanto ele desaparecia na escuridão do cômodo. Depois olhou de novo para o cheque, para todos aqueles zeros... E ganhou o beco deserto.

Já era tarde da noite. Uma oscilante lâmpada iluminava o caminho até a rua. Haroldo foi caminhando disfarçadamente, guardando o cheque num dos bolsos da calça de fibra sintética importada da Coréia do Sul. Seguiu por uma calçada, poucos quarteirões ao sul da Avenida Copacabana. Estava perdido em seus pensamentos, enormemente realizado.

Em sua cintura também havia uma Smithney, que usava em seu trabalho e caso precisasse se defender – já que mesmo a Polícia Unificada patrulhando as ruas, o Rio de Janeiro continuava violento. Passou por uma bela jovem de cabelos compridos, que lhe lembrou Júlia. Ele começou a pensar, coçando o queixo:

Vou comprar uma casa para nós em Cabo Frio... Não, não, no Caribe! Sim, no Caribe, e lá nos casaremos... Ela com certeza vai querer casar comigo quando souber que eu faturei toda essa grana! Ah, sim! Ela nunca me amou, sempre me rejeitou com veemência, disse entre risadas que só casaria com alguém como eu se fosse um grande milionário, e agora eu sou! Nós seremos felizes, e eu finalmente terei alguém!

Passou então a mão pela Smithney guardada no coldre, sorrindo disfarçadamente. Agora Júlia casaria com ele, nunca mais precisaria se humilhar implorando por ela. Ela se casaria com ele porque tinha dinheiro, muito dinheiro...

Mas voltou violentamente ao plano real quando uma viatura da PU passou rasgando pela rua, rápida como uma bala, perseguindo um carro com as sirenes ligadas. Haroldo sentiu medo. E se Júlia o rejeitasse e descobrisse o que ele havia feito para ganhar todo aquele dinheiro? Ela poderia denunciá-lo! Se isso acontecesse, Haroldo seria sumariamente fuzilado em alguma prisão suja e fétida!

Mas o rapaz sabia que isso não aconteceria. As mulheres eram todas ambiciosas, Júlia não abriria mão de se casar com um grande milionário só pela razão de ele ter ganhado o dinheiro matando pessoas...

Haroldo lembrava-se bem daquele dia. Ele havia acabado de sair do apartamento de Júlia no Leblon, após ela jogar um buquê de rosas que havia lhe dado no lixo, e andava tristonho pela rua, quando pisou naquele anúncio misterioso: “Precisa-se de homem emocionalmente estável para serviço. Paga-se muito bem”. Logo abaixo havia o endereço.

Na época Haroldo trabalhava como assistente de escritório, ganhava uma merreca. E Júlia era vaidosa, só aceitava presentes finos e caros, do contrário os jogava no lixo, assim como as rosas. Há tempos o amante desiludido buscava um emprego que lhe desse mais recursos para satisfazer a moça, e parecia que a oportunidade havia chegado. Se tinha um traço de sua personalidade que o agradava, era a frieza quando muitos outros ao seu redor não conseguiam se sentir como tal. Achava-se apto ao serviço.

No dia seguinte ele foi até o endereço, um prédio todo pichado na zona oeste, e entrou, temeroso. Logo tomou conhecimento do trabalho, trocando palavra com um sujeito baixinho atrás de uma mesa que constituiria permanente vínculo entre ele e seus contratantes: matador de aluguel. Aquilo era loucura, mas Haroldo aceitou. Tudo por Júlia. Ela queria um milionário, e o teria. “Os fins justificam os meios”, como bem disse Maquiavel – ou ao menos afirmavam que ele havia dito.

Foram três meses naquele serviço, eliminando principalmente dissidentes políticos da esquerda que haviam escapado incólumes do expurgo do governo na Revolução de 2014. Toda vez que Haroldo apontava sua Smithney para alguém, no momento em que ia apertar o gatilho, pensava em Júlia, cada vez mais próxima de cair em seus braços. Cada disparo era como um futuro beijo da amada. Cada expressão de horror e morte, um sorriso da jovem. Cada gota de sangue vertida, uma gota de alegria quando estivesse junto de sua musa. Ele havia ido até as últimas conseqüências por ela. Seria apenas sua.

E agora ele havia sido pago. O cheque com todos aqueles zeros... E teria Júlia, finalmente. Ela seria seu maior prêmio. Aquela mulher gananciosa e mesquinha, de belo corpo, que ele amaria até os últimos escrúpulos, se ainda os possuísse. Era agora um milionário, tudo que ela queria.

Mas, no espaço de tempo desde que a viatura havia passado fazendo barulho até aquele momento, as ruas haviam se enchido de gente, e aquilo era muito estranho. Já eram altas horas, todos estavam dormindo em suas casas – apenas os traficantes, viciados e PUs vagavam pelo Rio de Janeiro, além dos jovens que voltavam do CPVF, o infame “Centro de Promoção de Valores Familiares”. Aquilo não era comum. Seria mesmo realidade ou alucinação?

Andando mais rápido, face preocupada, Haroldo passou por um traficante de X-Mind na entrada de uma danceteria, esbarrou numa viciada que, sob efeito da droga, caiu no chão e ali permaneceu... O pânico havia tomado sua mente, aquilo era uma paranóia invencível.

Meu cheque, eles querem o meu cheque!

Sim, uma voz incontrolável havia começado a gritar tal coisa na cabeça de Haroldo.

Eles perceberam que estou escondendo alguma coisa, eles querem o meu cheque!

Apavorado, olhando para todos que passavam pela rua, Haroldo passou novamente a mão pelo coldre na cintura. A Smithney ainda estava lá. A usaria se necessário. Mas e toda aquela gente? Eles queriam o cheque, o estavam cercando, e ele não podia ceder! Aquele cheque era tudo, sem ele não teria Júlia, nunca!

A caminhada apressada virou corrida. Haroldo começou a acelerar pela calçada, esbarrando em muitos. Não podia perder aquele cheque, ou nunca mais teria alguma esperança de casar-se com sua amada!

Zonzo, com milhões de vozes ecoando em sua mente perturbada, Haroldo entrou num beco escuro, como se aquele fosse um refúgio inviolável. Pegou com uma das mãos o cheque de dentro do bolso, fitando-o com um insano sorriso, alegrando-se com aqueles zeros...

Mas surgiu um vulto em sua frente, um vulto de mulher. Devia ser alguma prostituta querendo se apoderar de seu tesouro! Haroldo não pensou duas vezes: gritou, sacou a Smithney e disparou contra a sombra. Uma, duas, três vezes, com fúria – os clarões de cada tiro simultâneos às pulsadas apavoradas de seu coração. A mulher tombou, gemendo, seu sangue quente escorrendo para dentro de um bueiro.

Só então Haroldo aproximou-se do cadáver, fitando-lhe com clareza as feições...

Na manhã seguinte, havia a seguinte nota no obituário online da Gazeta Fluminense:

Júlia Cardoso (2008-2028) – Secretária, morta por um conhecido seu, Haroldo Azevedo, num trágico incidente, com três disparos de Smithney, enquanto voltava do cinema. Haroldo suicidou-se em seguida. Os familiares pedem preces.

Luiz Fabrício de Oliveira Mendes – “Goldfield”.


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