Tales - Não Acredite Neles escrita por Thiago Nolla


Capítulo 1
Capítulo 1 - Cinderela




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Um grito alto e contínuo pode ser ouvido por todo o Castelo. Os guardas sobressaltaram-se, empunhando suas lanças à medida que o som estridente invadia seus ouvidos. Os criados deixavam bandejas e roupas espalharem-se no chão polido dos corredores e se perguntavam o que estava ocorrendo.

O barulho provinha de dentro dos aposentos da Rainha Yvonne, os quais se localizavam na extrema direita da Torre Oeste. Um médico, contratado pelo Rei Vermont VI, realizava o parto de sua mulher. A cama estava banhada de sangue, enquanto as mãos fortes de Yvonne amarrotavam os lençóis de seda antes branquíssimos. O dossel estava parcialmente aberto, protegendo a criança que vinha do sol que transpassava o vidro das janelas. Vermont caminhava, ansioso e preocupado, de um lado para o outro, tamborilando seus dedos pelos cômodos de madeira e checando a esposa de cinco em cinco segundos.

– O que está acontecendo? - ele perguntou, juntando as mãos. Gotas de suor escorreram por sua testa e se misturaram ao líquido férrico.

– O bebê está preso. Pelo jeito está sufocando. - o médico tremulou as mãos, pegando uma tesoura de prata. Uma incisão teria de ser feita no cordão umbilical do infante.

– Por favor, salvem meu filho - a rainha murmurou, utilizando suas últimas forças para suplicar ao doutor o salvamento de sua criança. A hemorragia era incontrolável, e o rosto pálido da mulher tornara-se inexpressivo após algum tempo. A dor transformara-se em um formigamento que se alastrara por todo seu corpo. Seus olhos azuis percorreram o quarto mais uma vez antes dela soltar um suspiro fúnebre. Tinha completa noção de que não sobreviveria.

Depois de mais alguns momentos de pânico, o médico esboçou um sorriso, afastando o pano ensaguentado que usara para poder puxar o bebê. - Aqui está! É uma menina! - ele exclamou, felicitando ambos os pais. Um infante rosado com manchas vermelhas abria os olhos, perguntando-se onde se encontrava. Yvonne sorriu, suas lágrimas misturando-se ao sangue. A criança começou a chorar, contorcendo-se nas mãos grossas do doutor.

– Dê-me ela. Por favor. - a rainha murmurou, estendendo os braços com dificuldade.

Assim que pegou a filha, aninhou-a em seus braços, colocando o seio direito para fora. Afastou os cabelos castanho-claros para o lado e limpou as lágrimas que insistiam em gotejar na testa da menina. Passou as mãos brancas nos ralos cabelos negros da filha, a qual abocanhou o peito da mãe e começou a mamar, e então voltou a chorar. - Cin... Cinderella... Será o seu... Nome... - ela ofegou.

E então seus olhos se fecharam e seus braços caíram vagarosamente ao longo do corpo. O rei, vendo a cena, correu para a mulher. Seus olhos marearam e ele pendeu a cabeça aos ombros agora frios de Yvonne - Cinderella – ele grunhiu, olhando para a filha.

Há muito tempo que Vermont VI esperava que sua mulher engravidasse. Mas de um homem. Um herdeiro para quando falecesse. Um herdeiro para tomar conta de todo o reino quando a hora de deixar seu posto na terra chegasse. Mas uma filha não poderia realizar tal coisa. Até imaginava o que seus Representantes e Ministros diriam caso soubessem que sua mulher morrera antes de lhe dar um herdeiro.

Ele se levantou, deixando a filha largada no corpo vazio da mãe, sugando as últimas gotas de leite. O médico seguiu o corpo pesado e carrancudo do rei atravessar o quarto oval e se dirigir à porta talhada em carvalho. - O senhor vai deixá-la aqui? - ele perguntou, correndo para apanhar a criança que escorregava pelo tecido da roupa branca da mãe.

– Entregue-a para alguma das criadas - ele murmurou, antes de sair pelo quarto - Ela não é a minha filha.

*

Dezoito anos se passaram desde o nascimento de Cinderella. A criança ganhara um esbelto corpo. Cabelos castanho-claros, como os da mãe, caíam sobre os ombros largos em ondulações, as quais acabavam na altura dos seios bem desenvolvidos. As feições do rosto eram bem desenhadas em linhas perfeitas: lábios carnudos e avermelhados, bochechas com um leve tom róseo, olhos verdes penetrantes e sensuais.

Mas ainda era considerada um fardo para o pai. Desde o momento que nascera.

Ela não entendia o porquê, e nunca se atrevera a perguntar. Tivera uma educação longínqua da figura paterna, visto que ele fizera questão de ocupar todo o seu tempo com aulas e mais aulas. As refeições foram propositalmente marcadas para não serem junto às do pai. As criadas eram a sua única visão de família.

Principalmente Felicity.

– Você está deslumbrante hoje! - ela exclamou, ao irromper o quarto da garota pela primeira vez naquele dia, segurando uma pilha de toalhas de algodão brancas. O aposento era quadrado, e possuía uma cama redonda, coberta com lençóis de seda azul-marinho e protegida por um dossel vermelho com bordagem dourada. Duas janelas grandiosas davam uma vista panorâmica dos jardins do palácio e do mar cristalino daquele dia ensolarado. Um guarda-roupa de carvalho gigantesco guardava os vestidos da princesa, dados de presente por seus parentes - mas nunca por seu pai. Aliás, em dezoito anos de vida, nunca ganhara um real presente dele.

Uma escrivaninha de calcária estava embutida na parede cor de pêssego. Alguns livros localizavam-se na estante acima da escrivaninha, e ao lado dela, uma penteadeira rósea comportava os perfumes e as maquiagens da princesa. - Obrigada, Felicity - ela disse, escorando-se no parapeito da janela e sentindo a brisa nórdica percorrer-lhe os cabelos. Ela se voltou para a amiga e andou até ela para lhe dar um abraço. - Mas você sempre diz isso - ela riu, sentando-se numa poltrona de feltro azulada localizada em cima de um tapete salmão.

– E por acaso estou mentindo? - ela perguntou, abrindo o armário da princesa e colocando duas toalhas lá dentro.

– Ai, ai... É hoje... - Cinderela suspirou, enrolando alguns fios do cabelo no dedo.

– Eu sei - Felicity cantarolou - E é por isso que eu tenho... Um presente para você! - ela arrancou uma caixinha vermelha do bolso e a mostrou para a amiga.

Cinderella parou de ondular os cabelos e se levantou, amarrotando seu vestido púrpura. - Você não fez isso! - ela exclamou, ficando boquiaberta. Felicity assentiu nervosamente com a cabeça, sorrindo.

– Você merece! Não é todo dia que se completa dezoito anos, sabia!

– Por favor, não me diga que você gastou suas moedas para comprar esse presente - ela disse, juntando as mãos.

– Não importa como eu comprei, Ella. - ela abriu a caixinha. Um lindo colar de ouro com um diamante pregado na ponta reluzia aos raios que invadiam o quarto da princesa. - E sim o porquê de eu ter comprado isso.

Cinderella pegou o presente cuidadosamente, colocando-o no centro das mãos em forma de concha. - Meu Deus, Felicity - ela sibilou, deixando que o metal frio percorresse seus dedos singelos. - Quando foi isto? Eu preciso lhe pagar!

– Deixe de besteiras, Ella! - ela abraçou a amiga e lhe deu um beijo na bochecha. - Feliz aniversário.

– É a coisa mais linda que já vi na vida - Felicity pegou o colar e o colocou no pescoço de Cinderella. O diamante cintilou uma vez mais, antes de ambas ouvirem passos ecoarem no corredor. - Você sabe que eu te amo demais, certo?

Felicity riu - Só ouço isso umas dez vezes por dia! - elas se abraçaram uma vez mais e, no momento em que a porta se abriu, elas se soltaram e a criada já estava se reverenciando para a princesa. - Se precisar de meus serviços é só me chamar, Vossa Alteza.

Ela saiu pela porta, lançando um sorrisinho na direção da amiga.

E então ela se virou para o intruso em seu quarto.

Seu pai.

– O que deseja, Vossa Majestade? - ela se reverenciou, sentindo cada músculo de seu corpo se contrair de ódio.

– Só vim avisar-lhe que vou sair em uma viagem para a Ilha Plissan. E que não devo estar de volta tão cedo.

– Por que está se preocupando tanto assim de me informar? Evita-me faz dezoito anos. Aposto que nem sabe que hoje é meu aniversário - ela cruzou os braços, caminhando até a penteadeira e puxando um pente de ferro.

– Sei muito bem que dia é hoje! - ele bradou, inflando o peitoral - É o aniversário de morte de sua mãe!

Cinderella de virou bruscamente para o pai - Faz questão de me lembrar disso o tempo todo, não é? Eu não sou culpada pela morte da minha mãe! E ela também não é por não ter-lhe dado um herdeiro. - ela cerrou os olhos e o pulso direito - Contente-se com o que possui.

Vermont VI a pegou pelo braço e a arrastou até perto de seu rosto com a barba grisalha por fazer. Os olhos cinzentos perfuraram sua alma. Ela sentiu o hálito ardido invadindo suas narinas e sentiu as palavras entrando em seu cérebro e se alojando numa parte extremamente sensível - Eu nunca poderia me contentar com você. Preciso de um filho. Você não passa de um estorvo para mim, Cinderella - ele proferiu a última palavra como se fosse uma erva daninha.

E, empurrando a filha no colchão, ele deixou o recinto e caminhou de volta para baixo, fechando a porta com um estrondo. Ela juntou as mãos sobre o colo e, de repente, uma lágrima amarga desceu por seu rosto e se alojou na pele suave de suas mãos.

Do lado de fora do quarto, Vermont VI parou em frente o quadro da esposa, posando magnificamente com um ar de superior e, ao mesmo tempo, com a simplicidade de seu ser. - Por que me deixou, Yvonne? - ele perguntou, passando a mão pela figura ainda não esquecida da rainha.

Foi quando uma ideia passou por sua mente. Ele não tinha mais sua esposa do seu lado. E ainda precisava de um herdeiro para substituí-lo ao trono. Olhando para trás, pensou em sua filha pela primeira vez. Uma mulher esguia, que agora não era mais uma criança.

Um filho dela...

Ainda tinha chance de ter um herdeiro masculino. Mas sua filha o odiava. A não ser que ele se convertesse e se redimisse de tudo o que havia feito com ela. Como faria, não tinha a mínima ideia.

Mas o seu plano já estava formado.

Teria um filho com Cinderella.


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