Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 28
Alleyways, shirtsleeves, bloodstream


Notas iniciais do capítulo

Eu meio que emendei grandes e significativas partes nesse capítulo. É o penúltimo, e eu tô perto de terminar o último.

Os três títulos em um são músicas que não têm muito a ver com o capítulo, mas as palavras têm.



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Pág. 15
Dinheiro, era o que eu queria. Queria roubar os Shay. Decididamente, as pessoas ricas estavam dum lado enquanto os privados do luxo arrebatador se postavam no outro. Mas encontrei, ou melhor, tive uma recaída com algo bem mais produtivo que dólares. O piano de cauda no meu quarto era bem maior comparado àquele de armário do orfanato. Extremamente adorável. Ninguém parecia ter tocado nele antes, ao mesmo tempo era dono de um prestígio absoluto tal qual já tivesse presenciado milhares de palmas frenéticas em zilhões de concertos majestosos. O difícil foi tocar direito aquelas teclas duras e extremamente rígidas, era preciso tamanha habilidade para manusear e produzir alguma nota que fizesse sentido... a primeira canção que toquei nele, fresquinha, teve sucesso. Por alguns segundos, esqueci todos os papéis de fuga e furto que tinha desenhado e escrito e pregado no pequeno quadro de avisos, sem nenhuma preocupação que os lessem. Porque ninguém além de mim entenderia... se não fosse eu os interpretando, contando vinte e tantos códigos que criei e encaixei dentro daqueles planejamentos ambiciosos, seria impossível constatar algo. Não se tratava do passatempo de todos os garotinhos da minha idade, certo. Mas qualquer um deles, tire suas próprias conclusões, adoraria sair dali.


Pág. 46
Dinheiro realmente parecia funcionar como um antídoto, uma coloração a mais para a confraternização de matizes que é a vida. Afinal, não seria impossível comprar os matizes todos com ele e colorir o capitalismo com um pouco de soberba a menos... e não falo apenas acerca da aquarela, no sentido pitoresco. Estive de cara com toda a mordomia existente ali no grande casarão equipado da família que tinha me adotado com a intenção de receber crédito por isso — talvez nunca tiveram um descendente talentoso antes, quem sabe, ou apenas um que se empenhasse pela vida dos pais que nunca conheceria —, algo percebido mais tarde. Meu plano não deu certo, não.


Pág. 48
Havia um sorriso inesquecível na casa deles. De uma garota, sua filha, e era bonita. Tinha cabelos castanhos lisos que caíam muito discretamente pelas suas faces rechonchudas e consequentemente coradas sempre que eu passava perto dela, receando que finalmente dissesse alguma coisa. Entenda ou não, nunca fui o tipo de garoto que todo mundo gosta de saldar. Nem mesmo um 'oi' saiu dos seus lábios. Uma incrível pena, mas ainda não lamentava. Os pais sempre alertavam que eu precisava de espaço, por ora, e foi só quando deixaram bem clara essa proibição que ela também deixou... quero dizer, automaticamente, Carly deixou de dar ouvidos para me visitar ansiosa quase o tempo todo, no quarto, e perguntar o que é que um ex-órfão encarcerado a infância toda, esperançoso de ser adotado, fazia trancado voluntariamente durante vinte e quatro horas, às vezes. E acontece que, bem, nunca fui esperançoso de ser adotado pelos Shay embora não me desse a honra de magoar um sorriso tão delicado.


Pág. 51
Um dia, saímos nós quatro: os Shay, sua filha caçula e eu, o mais novo adotado. Ao atravessar a rua acabamos lado a lado, ao passo que a mulher mais velha se apressou a alertar asneiras como "irmãos não se dão as mãos", o que eu e minha propriamente lembrada 'irmã' simplesmente achamos a maior bobagem comprovada nos últimos bilhões de anos desde o grande incidente da formação da Via Láctea. No dia em que fui embora para sempre da casa, três meses depois, porém, eu e ela já éramos mais do que bons amigos. Pedi um último favor: que me ajudasse a juntar coisas para pular o muro médio da casa, algo que poderia ter feito sozinho antes se não achasse tão absurdamente necessário calcular, chance por chance, a possibilidade de ter ou não o dinheiro exorbitante da família nas mãos, objeto estimado pela nação, a felicidade... para isso, houve uma despedida em que demos nossas mãos, selando a irmandade sobrevivida durante noventa dias consecutivos.


Pág. 68
De que viveria um lutador de box sem a sua luva? Das mãos.
De que viveria um caçador sem a sua espingarda, um homicida sem a sua pistola? Das mãos.
Porque, mesmo que a luva ou a arma ainda estivessem disponíveis, ambos ainda seriam dependentes de suas mãos para manuseá-las.
Mas e um pianista, de que viveria um pianista sem o seu piano? Porque, acredite ou não, quando um músico decide fazer música, este não usa só as mãos.
Um músico também precisa de linha de partida e chegada; de início, meio e fim. Não pode estar disperso na estrada, tocando pelas beiradas e becos, esperando ingenuamente que o incluam num concerto por milagre. Nem se trata de parar na praça, arrumar um chapéu e bater em panelas. Um músico, como qualquer outro trabalhador, precisa de capital. De alguém que confie e invista nele.
A diferença é que, na música, você mesmo pode ser o seu próprio investidor, se tiver sorte. Pode provar a quem quiser assistir que é bom no que faz facilmente, sem exigir mais de um instrumento no qual sobressaia a emoção mais forte que carrega. Ainda assim, quase todos de nós preservam humildade, e é pertinente.
Encontrar a emoção mais alta e melodiosa que você carrega, seja no subconsciente ou na alma, é a parte complexa. Entender o que é que você quer tocar. O que quer soar. Em que quer crer. Ou, ainda, o quanto está vivo. Muitas vezes, repetidamente, as notas não descrevem um alguém. Muitas vezes, você está ali para tocar o seu medo. O seu pavor. A sua intimidade, e você abre mão dela... isso é justificável. É justificável, porque a dor, geralmente, como em séculos antes, no Romantismo, ainda ganha ênfase no cenário atual e vai ganhar por muitas eternidades.
Deve-se premeditar: se a dor é reproduzida nas teclas do piano, não é certo que vá se transformar, melhorar. Diminuir, na mínima das hipóteses. Talvez queira dizer que a sua felicidade é inalcançável, e digo isso em razão de — pelo menos não quando toquei grandes músicas exatamente da maneira que minha experiência orientava — nunca ter visto uma maravilha sequer acontecer ao redor. É sempre tragédia, desastre. Não creio que me arrisco em dizer que eu, deliberadamente, também sou feito disso. Pode ser cada vez mais inacreditável, no máximo hipócrita: a música nunca foi transparente, apesar de transparecer. Sua aparência é considerada indefinida. Foi justamente a minha aparente hipocrisia o que deu a ela uma textura.


Pág. 77
Comecei a tocar em funerais, não contra a vontade. Não queria ser aplaudido. Não me sentia aberto a mais nada que fosse feliz. Não tinha dinheiro e nem comida. Andava sujo por aí, pairando em epitáfios. Parando em postos de gasolina uma vez ou outra. Ninguém me ajudava naqueles vendavais de liberdade. Eu tinha um par de pernas, e era só. E mãos. E tudo aquilo dentro de mim não importava desde o momento em que minha roupa não estava lavada.
Eu era só um adolescente egoísta, a ponto de descobrir por que sua mãe o abandonou. Começou num beco usual. Começou com cigarros acesos. Todo dia, começa de novo. Acho que nunca vão apagar.

Foi o primeiro livro que realmente li. E eu estive sentada, agarrando o casaco, apertando o livro no colo dentro de um beco. Repassei a mim mesma a porcentagem daquela cadeia de confissões que assimilei: ele não me amava como amava o piano. Ele simplesmente fazia a mesma coisa que eu: intercalava um desejo. Não um desejo carnal, mas sim um desejo perverso. O desejo de que nós dois durássemos tão logo seu vício desaparecesse.

O destino cruel que pertence a cada um na Terra dentre milhões. O destino cruel que apenas dezenas esperam. Nossos pais, nossa família, as pessoas por quem fomos amados... todos eles estão escondendo a verdade, tapando buracos, remendando rasgos, consertando peças defeituosas para voltarem a se encaixar.

Nenhum deles sobreviveu para enganar a mim ou ao pianista.

A ironia é que tínhamos nós mesmos, e deixamos impulsos atrapalharem a realidade, funcionarem como a saída do labirinto. Nada cai do céu. É tudo provisório. E se por um acaso ele quisesse me dizer o contrário, jamais acreditaria nele.

Só que a simplicidade não nos dava brecha. Eu fui embora, evitei acreditar, e mesmo indo embora aquela última frase dele parecia ter sido injetada em mim. Nas veias, no sangue. Na hemoglobina. No meu ferro dissolvido em líquido, talvez o ferro mais fibroso que eu viria a ter dentro de mim. Decepção. Um tempinho a mais pensando e cheguei à conclusão de que era ele, e não o que ele tinha dito.

E eu sentia o calor. Minhas unhas passavam por onde o calor deixara rastros.

Foda-se se era coisa do psicológico, a porra da saudade... tinha o frio dele também, o frio me queimando. Espadas atravessando minha pele enregelada.

Num passe de não-mágica, parecia que meu coração era feito de gelo derretido, meu casaco encharcado. Mas eram só as lágrimas de novo. E eu já ansiava por algo mais afiado que unhas crescidas quando enxerguei um para-quedas. Mas a queda, ela é livre. Alguém só abre o para-quedas no seu lugar se já tiver treinado isso antes, conclusivamente, ou ela continua sendo livre a sete palmos do chão.

"Sim."

Eu só precisava ter dito isso, concordado, afirmado, dado certeza, garantido, explicado, explanado. Porque era um "sim, eu me sinto uma psicopata agora, doutor" e ele me ajudaria, e eu teria minha vaga no isolamento.

Matar.

Eu precisava matar.

Como quando supostamente matei Grace.

Eu precisava matar um ser vivente qualquer, e era no Derick que meu pensamento homicida divagava.

Por ele mesmo, por quem eu sentia um nada que se tornaria ainda maior caso fosse eliminado.

O elemento nulo. Acrescentar ainda mais vão ao vão.

Quando ele pôs a arma entre nós, no banheiro, eu estive tão perto... perto de sentir aquela sensação de novo.

A sensação de que eu tinha vencido, de que não precisaria voltar de lugar nenhum para assombrar ninguém. Já assombrava na Terra.

Ficava tudo sob controle, e não era ódio. Ódio é capaz de levar o seu controle a uma infinidade de outros odiosos crescentes. Ódio era o que eu sentia pelo pianista naquela hora, esfregando as unhas na clavícula. Arranhando a lateral do rosto, das têmporas ao queixo. Passando novamente a pele morta de célula morta por debaixo da roupa e sentindo arder viva.

Mas havia uma coisa maior do que isso, já que a queda não era de altura. Um para-quedas não pôde impedir um choque no para-brisa. Queda e brisa, simultaneamente. Nenhum parou. Possivelmente o "para" era fragmento disfarçado de destino, preposição, porque foi exatamente onde eu senti meu rosto machucado bater.

Existe aquele quando as rodas giram em sua direção, mas seu mundo não é quadrado nem cúbico nem porra nenhuma elevada à quarta. Porque você é um oceano e ele se separa, contrariando a imensidão que sobra. Em todo lugar pelo qual passa ao redor do mundo, deixa alguma coisa ou arrasta outra. Esse é Oceano feito de tudo quanto é forma e cor e espessura e medida.

Eu apertei as pontas dos dedos com força nas pálpebras durante pouco mais de trinta segundos e, quando abri, aquilo era mais turvo do que seria se eu tivesse dinheiro. E morfina. Só ouvia buzinas aceleradas, luz ficando mais próxima e distante gradualmente. Gente falando, e eu não podia ouvi-las ou ia querer matá-las mais do que já quis desde que descobri que não foi Deus quem criou o fogo.

Muito menos o Universo.

A visão turva foi se perdendo e várias massas pararam. Eu deixei de parar... porque não podia arrastar a avenida de uma vez. Dei mais passos em sequência e escutei sons se agravando.

Era um sinal fechado, e era um para-brisa em cerca de milésimos.

Em centésimos, era outro que me fazia sucumbir ao desejo de matar.

O cara que tinha estuprado minha melhor amiga, dando um sorriso bobo de marginal com um braço pendurado no volante e o outro apoiado no encosto que servia pro braço dele. Só que Paul nunca serviu para Carly.

Atirei meu corpo para o lado, agarrei o retrovisor, massageei o rosto e soquei o vidro da porta que dava acesso ao banco do carona. Não me importava com as buzinas, com o sinal aberto ou com todo mundo que olhava. Precisava matar aquele homem. Não podia fazê-lo enquanto minha cara estivesse amassada no vidro dianteiro dele, por sinal.

Quando meu pé alcançou uma distância mínima em relação à roda do carro, ele fez menção de ganhar velocidade. Soquei muito forte o vidro, sentindo uma dor se espalhar pelo meu pulso. Meus fios de cabelo atrapalhavam a visão. Mal podia ver suas expressões vulgares, e mesmo assim queria tirar a vida dele. Tijolo por tijolo.

Quando a porta destravou, foi ele quem se atirou para mim.

Eu o soquei.

Quando ele agarrou meu pulso, senti como se algo além se deslocasse. A dor passou.

— Dirige essa lata, seu filho da puta! — o insultei.

— Sai do meu carro. Tenho uma arma aqui. Posso matar você.

— Na frente de toda essa gente? Não acha melhor dirigir, fazer a merda toda num terreno baldio? Não é de surpreender que tenha sido uma marionete esse tempo todo.

— É melhor você calar essa tua boca. — Ele ultrapassou o sinal justamente quando fechou, a uma velocidade crescente. Como que para me assustar. Perdi um tantinho o equilíbrio, mas continuei o encarando na mesma raiva. O carro devia ter sido roubado ainda naquele dia, pelo estado sobressaltado e o mau cheiro. Não duvidava que o idiota tinha sido instigado a deixar o cadáver no porta-malas, algo do gênero. — Me diz onde tá aquela tua amiguinha...

Paul pegou o que parecia muito com um cinto de segurança e ameaçou me bater com aquilo. Reprimi uma risada debochada. Então ele guardava uma arma no porta-luvas e decidiu me ameaçar com um cinto de segurança naturalmente... será que uma criança pequena acreditaria naquela conversa fiada?

— Eu não sei — menti, usando a voz mais fraca. Investindo em toda a submissão que eu era capaz de fingir.

Ele era tão despeitado e burro (se achava o máximo por me ter sob sua demanda) que nem sequer fez mais perguntas a respeito de Carly. Só seguiu, voando por todos os redutores. Controlei meus instintos até a última gota de suor e o último nervo pulsante, a estrada pareceria um borrão mesmo se o carro não estivesse em movimento.

Forcei a vista no objetivo de conseguir gravar algo que me ajudasse. O celular vagabundo dele ficava pendendo do bolso da frente, na calça jeans manchada. O rosto, também sujo, fixo na estrada. O vento batia frio no meu cabelo, que grudava na minha face. Eu suava e sentia meu corpo esquentar e esfriar a cada dois segundos, como se a maresia obstruísse minhas artérias.

Maresia não obstrui. Maresia corrói.

— Pra onde eu... pra onde nós...

Uma olhadela em direção ao espelho, uma pisada no freio. Eu de volta ao para-brisa. Minha cabeça latejante de dor.

Tínhamos saído da lata velha, tudo que antes estava nela e que pertencia ao ordinário encontrava-se fora também. Havia mato por todos os cantos. Paul tinha, além do celular, um verdadeiro revólver no bolso direito da calça manchada. Porém agia como se fosse inútil tê-lo ali.

Mas ele bambeava, receoso. Sabia que não haveria nada mais com o que voltar se "queimasse" o carro, então provavelmente se decidia entre ele e a palha crescida... só que, provavelmente, tinha recebido ordens bem claras sobre o processo.

Naquele intermédio, eu me despi e prendi o cabelo. Terminei vestida apenas por roupa íntima, e gritei:

— Você estuprou a Carly! Por que não mereço ser estuprada, Paul? O que ela tem que eu não...

— Facilita mesmo, vadia.

Ele veio e me jogou no chão. Nessa hora, o revólver e o celular caíram. Deitei por cima dos dois, fazendo impulso para frente. Paul tentava abrir minhas pernas, sem dizer nada, apenas sendo sujo... o cheiro dele me fazia querer vomitar o estômago. Mas não pretendia chegar ao extremo de ter que beijar aquela boca podre, então pensei em qualquer outra coisa.

— Por que a gente não faz de um jeito... melhor? — improvisei. Minha voz saiu trêmula, mais que o previsto.

Ele passou a mão por todo o meu corpo. Numa oportunidade, olhei repulsivamente nos olhos dele. Foi aí que deduzi o mais importante: Paul não precisava ser o único culpado do estupro de Carly... nem efetivamente foi, e isso o salvaria.

Quando forçou a cintura contra a minha, calculei mentalmente aquela posição e o chutei. Chutei bem forte, ele caiu para o lado se contorcendo. Urrou de dor. Apontei o revólver na direção onde se debatia, andei de costas até o lugar em que deixei a roupa. Guardei o celular num dos bolsos, porém, sem que percebesse.

De relance, era uma figura acovardada esparramada no chão, não um criminoso. Era um filho da puta cretino, ainda. Só senti pena dele... um crédito. Mas permanecia culpado por fazer tudo que tinha se permitido fazer com alguém que mudou completamente sua visão de mundo em consequência desse feito. A vida é uma troca.

Todo o tipo de química reagiu em mim, naquela hora. Paul desenterrou a cara do chão, cuspiu verde e começou a falar mais fraco do que eu jamais conseguiria fingir.

— Essa é a arma daquele infeliz, acha mesmo que o infeliz nunca quis te matar com ela?

"Infeliz."

Engoliu em seco. Suas ameaças se esgotaram sem nenhum superior para retomá-las, delimitando o fim.

— Mais uma palavra sobre ele e você morre, seja de quem essa porra for. Se é sua, se é do meu primo que dá uma de seu namorado... se é da sua avó, eu quero é que se foda — respondi enquanto cerrava os punhos, enchendo a boca de saliva.

Cuspi na cara dele.

Paul enrugou a testa. Brinquei com a arma nos dedos. Ficou tão quieto ali que, se tivéssemos algum espectador, este iria embora. Este iria, previamente, concluir não haver nada pelo que continuar ali. Não era comum do cenário de um assassinato.

Nunca neguei o quanto me via precisando dele. Precisava da verdade dita, nada suposto, e o tinha aos meus pés. Só que, fugindo da decência de enfrentar um homem sagaz, nem sequer haveria o risco do jogo virar novamente.

— Você vai me dizer qual era o plano do Derick, vírgula por vírgula, interrogação por interrogação. Agora. — Me aproximei de Paul vestida apenas com a calça jeans, sem o suéter.

Ele não conseguia parar de olhar meus seios. Ri quando arregalou os olhos, o revólver colado na cabeça dele.

— Continua achando que mulher é pra ser fodida, hein? — perguntei. — É incrível! Um único suéter a menos pode fazer um imundo desses viajar... com um único chute no saco, posso reverter toda uma situação... Mas, hm, não vejo algo de relevante que um fracassado possa fazer.

Andei. Me pus de costas. Voltei, já vestida completamente. Paul me encarava com uma expressão que mesclava tanto o medo e a confusão quanto a raiva e o desgosto. Sentiu-se humilhado o suficiente para começar:

— Derick é capaz de infernizar qualquer um do beco por sua causa, pra vingar a tua vidinha. Achamos que fosse só mais uma puta. Achei que fosse simples, que você tivesse roubado algum dinheiro dele... então descobri que ele é maluco. Mas já tinha entrado nessa... — Ele parou, tomou fôlego e cuspiu mais uma vez no chão. Tentou se levantar, fiz menção de pressionar o gatilho. E continuou: — Eu até gostava da infeliz da tua amiguinha, era inocente e tava na minha. Nada a ver. Só que Derick pediu o nome dela, a idade e mandou investigar. Descobriu a ligação com você, e eu tentei pedir pra ela se afastar. Deu no que deu porque a virgem não quis dar o fora. Fugi com ela, e devia ao Derick alguma coisa. Todos do beco devíamos — acrescentou depressa, perante meu olhar malicioso — e ele sempre dava o exemplo de como você ia pagar pela morte de uma velha qualquer, uma tal de...

Grace.

Lembro exatamente de ter ouvido Grace falar que Derick era maluco, corrigindo que era seu maluco favorito. Lembro exatamente de ter ouvido Grace falar que Derick gostava de ter pesadelos, corrigindo que era corajoso. Grace sempre se corrigiu a respeito de Derick e, provando o imaginado, diante de meus olhos proferia-se o quanto Paul se corrigia por temer a morte. Entendi mais do que nunca: existe um prazo para aquele tipo de veneno surtir efeito. Sempre existiu. E se não surtir, a causa é outra.

Eu nunca matei Grace.

A causa era Derick. Durante a infância, já era capaz de planejar toda uma trajetória mortífera para alguém de quem nunca gostou. Se meus pais tinham matado a eles mesmos, ou se foi incêndio espontâneo, ou por uma briga, esse era o único aspecto que me fazia duvidar a respeito do dedo de Derick na história. Era novo demais, tinha pouco mais da mesma idade que eu... mas ele, sim, matou Grace. Como eu vivia sob o teto dela e vivia sendo torturada por ela, logo fui dada como assassina. Saí da casa, fui para Seattle. Ele não tinha nada contra mim, mas esperou ter. Esperou que eu e Carly estivéssemos próximas, para fazê-la se apaixonar por Paul e este ser orientado a estuprá-la em troca de maconha. E aconteceu assim.

Eu me culparia pelas mortes de Grace e Carly pelo resto da minha vida. Mas a segunda não aconteceu e, agora, levo comigo bem mais do que um pleno raciocínio.

A única coisa que distanciava a possibilidade de meu próprio primo ser um psicopata passava a ser o amor que sempre fingiu sentir por Grace. O único amor que todos podiam ver, e era mentira. Era mentira. Era mais fácil pensar que ele tinha feito tudo aquilo por amor. Era difícil ter razão em rotular um consanguíneo como psicopata.

Salvando todas as respostas com base numa reflexão primitiva, não julguei mais necessária a confissão do imundo do Paul. O que havia de primitivo na cabeça dele, por outro lado, nem chegaria a uma reflexão, então entrei ligeiramente na lata velha e girei a chave encontrada, por sorte, num ponto do gramado cinzento.

Aprendi a dirigir naquela noite, tentando lembrar detalhe por detalhe das observações que fiz anteriormente, estando sentada no banco do carona. Concentrei minhas atenções na pista. Contudo, ao mesmo tempo que fazia a curva, decidi dar uma continuidade ao futuro planejado por Derick e à minha ligação com Carly: ele estava esperando que eu realmente me importasse com alguém para ir lá e ferrar com a vida da pessoa, consequentemente ferrando com a minha vida.

Quase, por umas reticências, esqueci uma grande nuvem que pairava. Essa nuvem era o fato de ter conseguido me arrastar até seu esconderijo por meio do estupro, do Paul. Mas algo o interrompeu na sua tortura. Algo o interrompeu na tentativa idiota de atear fogo em mim com uma única e inútil vela que, eu garanto, se ficasse me encarando exatamente naquela noite, meses depois, teria determinação o bastante e apagaria. O algo que o interrompeu: oito letras, um revólver (que voltou para o meu bolso) e dois Universos.

Sim, o pianista, que era um só.

O pianista me salvou mais vezes do que a álgebra é capaz de presumir.

Uns minutinhos e era o acostamento. Era eu digitando o número dele.

E eu daria tudo, tudo elevado à trocentos, para que fosse ele atendendo em seguida.


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Notas finais do capítulo

Procura-se uma população de leitores desaparecidos.
Contatar: (88) 8888-8888.

Agradeço a contribuição, e feliz páscoa atrasada.



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