Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 15
Hurt


Notas iniciais do capítulo

Me desculpem se ficou muito abstrato, sei lá. Me perdoem mesmo por tudo.
Vim postar num processo relâmpago, se tiver erros eu vou consertar, tá?

Espero que gostem, como sempre. Boa leitura. Amo vocês!



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Abri meus olhos. Eles estavam pesados e eu, claro, mal estava pronta para me olhar no espelho como em todos os dias anteriores, me assustando com aquele reflexo desleixado de mim mesma por alguns longos segundos. Por isso continuei encarando o teto do meu quarto e um tipo de luz que surgia de lá de fora pela janela, ainda deitada e enrolada numa das cobertas da cama. Estava tudo certo, sempre. Era mais um daqueles dias normais, como todos os outros. Mas, dessa vez, eu sentia um cheiro diferente. Um calor diferente. Uma coisa diferente.

Minha mente ficava dando voltas e voltas o tempo todo como se eu realmente tivesse perdido tudo da vida. Como se eu tivesse vida. Como se eu realmente tivesse vivido por algum tempo, por um bom tempo, ou, quem sabe, por mais de dias. Como se eu realmente não me lembrasse de nada do que eu deveria me lembrar. Como se eu olhasse pro lado e não encontrasse a cama de Carly vazia. Como se eu, depois disso, não sentisse uma imensa vontade de chorar comigo mesma. Como se eu não me sentisse culpada. Como se eu não segurasse o choro sempre. Como se eu não voltasse a pensar no pianista de novo e de novo, desejando que o tempo passasse o mais rápido possível. Como se eu não sentisse ainda mais saudade. Como se eu estivesse situada, mentalmente, no mesmo lugar em que eu estava fisicamente. Como se eu não sentisse falta daquelas músicas fúnebres, ou de ouvir sobre os tipos mais extintos de "álgebra". Como se eu não sentisse falta do que eu tinha ou do que eu poderia ter, se tudo acontecesse de um jeito diferente. Como se eu não sentisse falta nenhuma dos dias em que eu deixei de existir um pouco. Como se eu não sentisse falta de viver pela primeira vez. Primeira e última.

Como se tudo, finalmente, fosse diferente. Mas esse dia... Ele nunca chegaria, ou chegaria? Era tudo igual. Só igual.

Porque entre "ter uma vida", "existir" e "viver" havia uma grande diferença.

Porque naquela hora eu percebi que nem os sinônimos são completamente iguais. E nem a intenção deles.

Então, bem, por que alguém teria que comparar suas próprias atitudes ou sequer seus próprios sentimentos com os dos outros? Eu fazia isso o tempo todo e ninguém me dizia que eu deveria parar de fazer. Ninguém me disse, porque eu descobri sozinha. Eu descobri tudo sozinha, exatamente porque ninguém se importava. E eu nunca me senti numa solidão tão profunda, nunca me senti num silêncio tão vago quanto naquela manhã. E o porquê disso... Bem, o porquê disso era óbvio: eu me sentia sozinha porque sabia o que era sentir o contrário.

Porque, naquela altura, eu já sabia o que era estar com alguém.

E eu sentia que lembrava, literalmente, de nada — um nada cheio de tudo. E minha cabeça doía muito.

Em algum lugar eu ouvi que nem todos que vagam estão perdidos. Talvez eu só precisasse me encontrar dentro do silêncio, ao invés de me perder nele.

Eu fechei meus olhos na tentativa de pegar no sono de novo, e observei mentalmente cada parte do quarto que estaria no meu campo de visão: a luz que, na verdade, me incomodava muito; as paredes revestidas por uma cor parda e totalmente sem vida, que transpareciam frieza; os pôsteres de umas bandinhas que eu nem me recordava o nome, mas que eu ouvia quando me sentia mal de verdade; uma garrafa d'água jogada no chão com as outras centenas de objetos que eu deixava ali por deixar; um ou dois livros da Carly numa prateleira; sapatos e algumas roupas jogadas do mesmo jeito que os objetos; quadros que eu nunca entendi de verdade. O passado continuava latejando como o silêncio. O silêncio realmente falava — e como falava.

Mas, quando me virei pro lado, quis, também, me lembrar da parte do quarto onde Carly dormia antes — sendo por isso a parte que eu mais evitava olhar. Eu sabia exatamente o que iria encontrar além disso: a porta do banheiro, a porta do quarto. Da porta do quarto eu veria a cozinha inexistente e uma parte da sala.

Eu só veria a sala.

Mas, não. Não estava certo. Nunca esteve certo.

Eu abri meus olhos e vi o pianista ali, deitado ao meu lado, como naquelas cenas de filme em que alguém lembra de uma pessoa e a imagina bem ali enquanto lembra. E parecia mais real do que as outras tentativas do Universo de me pregar peças — o Universo estava cada vez melhor nisso. Cada vez melhor.

Eu pisquei uma boa quantidade de vezes e Freddie estava sorrindo, me olhando, e parecia querer dizer alguma coisa. Foi aí que eu pensei que eu realmente tinha bebido muitas no outro dia pra estar tão sentimental ao ponto de achar que aquilo poderia ser fruto da minha imaginação. Maldito Universo. Maldito Universo! com ponto de exclamação.

— O que aconteceu com você? — ele perguntou.

Como assim o que aconteceu?

— Pra ser sincera: eu realmente não me lembro de nada. — Eu passei a observá-lo e, céus, ele nunca esteve tão lindo. Eu estava com tanta saudade dele. Muita saudade. Eu queria muito, de verdade, poder dizer isso sem ter que perguntar o que tinha acontecido no outro dia. Ou sem ter que conversar sobre o que ele escondia de mim.

Aqueles olhos castanhos me encarando na mesma intensidade que eu queria encará-los. Ele estava diferente. Não estava com aquelas roupas executivas de pianista — deve ser desconfortável usar esse tipo de roupa dormindo. Eu sorri um pouco, ri um pouco e ele também sorriu. Aquele sorriso que eu não via há tempos e que, céus!, eu realmente queria ver pra sempre.

Então o clima ficou tenso, muito tenso. Eu perguntei o que tinha acontecido umas novecentas e cinquenta vezes e parecia até que ele não queria me dizer. Mas Freddie tinha que dizer tudo, no final das contas. Quando perguntei, pela milésima vez, o que é que tinha acontecido, ele respondeu:

— Aconteceu você.

Eu fiquei em silêncio, esperando que ele completasse. Não sei por que ele ficou um bom tempo sem dizer nada. Eu arqueei minhas sobrancelhas. Porra, Freddie, você tinha mesmo que demorar tanto formulando um diálogo decente? Acho que ele fazia isso pra me deixar mais calma, e nunca deu certo. Porra, Freddie...

— Aconteceu você, Samantha. Você me ligou bêbada na quinta-feira dizendo que me amava, assim, do nada. Dava pra ver que você não estava sóbria, sabe? E no dia seguinte você vai procurar um marginal sozinha. — Eu tentei me justificar, mas ele não deixou. — Por quê? Por que você não me disse que queria passear num beco às onze da noite?

Nessa altura nós dois já estávamos de pé.

— Ele estuprou a Carly! Ele é um estuprador. Um estuprador que... — Eu não consegui terminar.

Eu ainda não lembrava de nada, só lembrava que tinha ido tirar satisfações com o Paul. Eu não queria lembrar de alguma coisa. Eu só queria...

— Você não entende que eu poderia ter te perdido? — Ele me abraçou.

— Eu posso ter sentido saudade de você — eu falei, passando a mão no cabelo dele.

— E por isso foi se encontrar com um estuprador, como você mesma disse?

O abraço se desfez.

Muito tempo se passou enquanto eu explicava o porquê de ter decidido ir me encontrar com o Paul, do bilhete, da Carly, do estupro. Outro tempo se passou com Freddie explicando tudo que tinha acontecido depois disso.

Ele me contou que estava me procurando por causa do dia anterior e acabou me achando naquele beco. E eu lembrei da vela. Daquela vela. Do Derick. E eu senti tanto medo que precisei abraçá-lo de novo. E de novo, e de novo — depois de um tempo eu fiz porque queria mesmo. E foi aí que ele me contou o resto.

Eles queriam me torturar naquele banheiro e em seguida usar a minha fragilidade de algum jeito, como fizeram com a Carly. Eu ficava tão entretida com o meu próprio pensamento que esquecia onde estava, quem eram eles, pra onde poderiam me levar, e tudo, então seria fácil fazer alguma coisa com o meu corpo, sei lá, eles poderiam se aproveitar de mim de todas as formas e, bem, eu poderia estar morta. Mas eu tive forças pra gritar por muito tempo. Então foi aí que Freddie ouviu meus gritos altos e completamente desesperados e foi lá ver o que estava acontecendo — ele reconhecia os meus gritos porque eu já tinha gritado com ele. Muitas vezes.

Eu estava desmaiada quando Freddie chegou, e eles já estavam me arrastando pra outro cômodo. Ele tinha um revólver, mas não atirou — não foi preciso atirar. Porque, antes disso, eles me soltaram.

Eu realmente gostaria que ele tivesse confiança em mim — confiança suficiente pra me contar que anda com um revólver, por exemplo.

— E por que eu não lembro de nada que aconteceu, depois que desmaiei? — Ele me olhou nos olhos e arqueou as sobrancelhas. Já estava na hora. Malditas sobrancelhas!

— Porque você... Você tem um trauma, Sam. — Eu revirei os olhos.

Pior jeito de responder uma pergunta.

— Isso me faz diferente, não faz? Não é por isso que você fica dizendo que eu sou diferente? — eu perguntei num tom alto.

Eu me deitei na cama e me afundei nas cobertas de novo. Péssima ideia.

— Sam, eu nunca te vi daquele jeito. — Daquele jeito como?

— Freddie, vai embora, tá? Eu já sei o que aconteceu. Sei que você me salvou, e obrigada. — Eu o encarei pela última vez e voltei a me deitar.

— Quer realmente saber o que aconteceu?

— Faça o que quiser da vida.

— Vou te dizer o que aconteceu: eu te trouxe pra cá.

Nessa altura eu já queria que ele parasse.

— Eu te trouxe pra cá e quando você finalmente abriu os olhos — ele hesitou —, eu entendi que você não estava sendo você. Eu entendi que você não lembraria de nada depois. E você realmente não lembra.

— Freddie, vai embora. Por favor. — Eu quase chorei. Quase chorei. Mas não chorei porque consegui segurar o choro, mas tive que aguentar a dor dentro de mim.

Eu não queria machucar o meu pianista. E eu também estava machucada.

E ele não foi embora.

"Quando eu vi que os dois estavam te arrastando daquele jeito, eu não sabia o que fazer. Eu queria estrangular aqueles marginais e te abraçar o mais forte possível. Eu queria você comigo, Sam, e não com eles.

Eu vi que você estava machucada e que havia uma grande quantidade de cicatrizes espalhada pelo seu corpo, e imaginei que eles tinham feito aquilo. Mas depois eu pensei bem, e não era isso. Aquelas eram as cicatrizes que você sempre teve, só que mais profundas. Você mesma tinha se machucado. E logo tudo aquilo fez sentido pra mim: eles te trancaram no banheiro com o seu pior medo e você mesma fez o resto.

Quando eles te largaram eu te segurei e você estava gelada, com frio. Eu juro que pensei que ia te perder. Eu juro que tentei pensar que ia ficar tudo bem, e até fiquei repetindo isso pra você, porque você precisava ouvir isso. Mas não deu, Sam, eu não consegui. Você gritava o nome dos seus pais e aquilo nunca doeu tanto.

Seus olhos estavam inchados e você parecia ter chorado por horas, suas mãos tentavam segurar as minhas. Estavam fracas, Sam. Muito fracas. Eu não podia te abraçar com força porque eu tinha medo de te machucar por fora. Eu tinha medo de te machucar por fora, quando eu sabia que você já estava machucada o suficiente por dentro.

Você dizia que queria que eu ficasse, por isso eu dormi com você. Você me chamou de amor, Sam. Você nunca esteve tão frágil e tão mal. E eu nunca me senti tão culpado."

Eu me virei e queria dizer alguma coisa pra ele, mas antes disso ele saiu e bateu a porta com muita força. E eu — não me importando com o que eu poderia estar vestindo — saí correndo atrás dele. Porque eu não podia passar mais uma eternidade ou o resto dos meus dias só existindo e, mesmo que eu só existisse, eu precisava existir com ele.

O Universo me devia uma. Freddie não podia estar descendo de elevador, não podia.

Saí descendo as escadas até conseguir vê-lo descendo também. Depois eu só me joguei e quase rolamos pelo resto dos degraus. Mas não nos levantamos dali. Éramos só nós dois naquele corredor.

Minha respiração nunca esteve tão pesada — nunca tinha descido tantos degraus e tão rápido, quer dizer, praticamente correndo. Mas, eu sorri, desviando o olhar. Seria tão constrangedor encarar aqueles olhos castanhos depois de praticamente me atirar neles.

Ele estava com um semblante fechado e isso me fez hesitar.

— Você pode me abraçar agora, Freddie. Eu não vou me machucar. E também não vou ficar chateada.

Aquilo foi o bastante para que ele me abraçasse de um jeito diferente e eu retribuísse, dessa vez. Também retribuí de um jeito diferente. E depois nos beijamos de um jeito diferente. Porque, bem, nunca fomos iguais, e aquele dia também não era igual, mas também não era errado. Era só diferente.

Eu deslizava minhas mãos pelo cabelo dele enquanto nossos lábios se movimentavam no mesmo ritmo. E meu coração — de um jeito diferente — nunca esteve tão acelerado antes.


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