Uma Balada para Lionor escrita por Anya Tallis


Capítulo 34
De pequenos dramas pessoais


Notas iniciais do capítulo

Olha, confesso que morri de vergonha por Lionor no fim do capítulo anterior e também neste que trago hoje. Não são capítulos de ação, são focados na relação de Nigel e Lionor, e acho que são muito raros os momentos em que o assunto principal é o relacionamento dos dois. E, de uma forma inexplicável, não se trata de romance. Aliás, eles não são um casal muito romântico, eu acho. E Nigel precisa aprender a ser mais simpático...
Continuamos acompanhando o restante do desenvolvimento dos acontecimentos do capítulo anterior. Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/473021/chapter/34

O gosto amargo e enjoativo da poção ainda estava na língua de Lionor, e ela se arrependeu de ter se arriscado a experimentar; cuspiu no chão três ou quatro vezes antes de entrar na casa. Vicente colocou a chave na porta mas, antes que girasse, alguém a abriu pelo lado de dentro.

Era Nigel, e trazia a arma erguida na mão direita. Olhou para Lionor e para Vicente, e depois novamente de um para o outro.

— O que está fazendo com a minha mulher, hein, garoto?

— Eu... eu... — ele gaguejou, apavorado, com os olhos fixos na arma.

— Ele não teve culpa, Nigel, eu que pedi para que ele me acompanhasse...

E começou a explicar o que havia ido fazer no vilarejo, aflita, quando viu Nigel soltar uma gargalhada.

— Seus tolos, estou brincando com vocês. — passou a arma para a outra mão, para que pudesse puxar Lionor para si a fim de beijar seus lábios.

A garota virou o rosto, com medo de que ele sentisse em seus lábios o sabor da poção que acabara de experimentar. Nigel estranhou, mas não insistiu, temendo que a houvesse chateado coma brincadeira com a arma.

— Hermes disse para não tocarmos na pistola. — ela recordou, apreensiva.

— Hermes não está — explicou o rapaz — ele foi treinar o arco com Cádiz nos fundos da casa.

Estendeu a arma à garota, com um olhar convidativo.

— Tome, sei que quer segurar também.

Ela hesitou, mas acabou segurando a arma e olhando-a com curiosidade. Parecia uma criança com o brinquedo novo de outrem, o medo de deixar o objeto cair fazendo-a fechar os dedos fortemente ao redor do objeto.

Hermes entrou silenciosamente na sala, seguido pelo arqueiro, e parou a poucos metros da garota, a observar a cena.

— Eu disse a vocês que não queria ninguém tocando na arma. — não havia raiva em sua voz, apenas um tom de ressentimento.

— Foi culpa dele — Lionor sentiu-se traída, e estendeu a arma de volta para Nigel, mas o duque se aproximou e tomou o objeto de suas mãos.

— É, tudo é sempre culpa minha — o rapaz retrucou, parecendo sentido.

— Vocês dois deviam tentar agir como adultos, agora que são casados. Até meus filhos pequenos eram mais maduros que vocês dois.

Mas estão mortos, e nós não somos seus filhos. Os filhos do duque tinham menos de doze anos quando a peste os atingiu, e ele costumava tocar no assunto com uma incômoda frequência, antes de se casar com a princesa. Era a lembrança mais amarga de sua vida. Lionor teve vontade de explicar que não havia sido culpa sua, mas o duque subiu as escadas até seus aposentos, com o costumeiro ar sério de quem estava pensando em algo que não valia a pena ser expressado em voz alta. Nigel subiu as escadas atrás dele.

— Hermes... — mas não conseguiu terminar a frase sem que o Duque lhe adivinhasse as intenções.

— Sei o que vai me pedir. Quer que a arma fique com você. A resposta é não.

— Prometo que não vou atirar e nem mesmo aponta-la para ninguém.

Só então Hermes o encarou, parando no topo da escada, com uma das mãos no corredor, um pesar na voz.

— Desde quando suas promessas tem algum valor?

Desapareceu da mesma forma silenciosa que surgira. Nigel continuou fitando o topo da escada, como se ainda lhe fosse possível argumentar com o duque. Tinha uma tristeza no semblante quando voltou a encarar Lionor.

— Temos que recuperar a confiança dele — ele disse, mas estava apenas divagando.

Já não sabiam como Hermes poderia confiar novamente neles, acreditar que fariam algo que não fosse desobedecer suas ordens ou atrapalhar seus planos. Haviam cometido tantos equívocos que Hermes parecia sempre propenso a recrimina-los antes mesmo de lhes ouvir as justificativas.

Para piorar, já havia se passado cerca de uma semana sem que encontrassem um rastro sequer dos fugitivos. Em nenhuma aldeia haviam sido vistos, como se houvessem repentinamente desaparecido no ar, tornando infrutífera a empreitada diária daquela procura vazia e sem resultados. Por mais que perguntassem e que divulgassem a sentença, Claire e Wilhem pareciam ter ido para fora de seu alcance. O reino era grande demais e, caso houvessem saído da estrada principal, talvez nunca mais fossem encontrados, sempre mantendo distância segura dos membros da guarda do rei. Era impossível se embrenhar pelos bosques e florestas atrás deles; mesmo que fossem cinco — Hermes, Lionor, Nigel, Vicente e o arqueiro que não se ferira, Cádiz — e os fugitivos apenas dois, ainda assim eram apenas cinco. Poderiam procurar os dois irmãos no norte quando estavam no sul, e no sul quando estavam no oeste; procurá-los-iam em Curvavento quando estariam na Colina, ou no Água de Carpas quando estivessem em Prainha. Quando chegassem ao Córrego, eles voltariam a Três Corações, e jamais se veriam novamente. Já havia passado a hora de mudarem a tática de procura, mas Lionor não conseguia pensar em nada. E Nigel não fazia o menor esforço para ter alguma ideia; para ele, se a liderança da empreitada era de Hermes, que o duque pensasse em tudo sozinho.

E o duque parecia mesmo empenhado em pensar. Naquela noite, trancou-se em seus aposentos e, como não descer à hora costumeira, o restante do grupo começou a cear sem ele. O arqueiro saíra para a taverna; havia encontrado uma mulher interessante e convidativa na noite anterior, e desejava conhece-la melhor. Vicente preparara uma grande panela de carne de porco com batatas cozidas, e um pirão grudento, mas era muita comida para apenas três pessoas. Comia com Lionor e Nigel e, enquanto guardava uma parte da comida para os ausentes, viu Hermes descendo as escadas. Era curioso como o homem usava aqueles pesados casacos negros mesmo quando estava em casa. Tinha um aspecto peculiar desde que raspara uma parte do cabelo, por cima da orelha, de um lado só, onde a bala lhe atingira de raspão, a fim de colocar um curativo no ferimento. O resto do cabelo ainda caía-lhe pelos ombros, negro e brilhante.

— Crianças — ele falou, à guisa de cumprimento, inspecionando as panelas com curiosidade — Odeio carne comprada na feira. Deveríamos caçar qualquer dia desses.

— Estamos muito ocupados caçando gente — lembrou Nigel, abocanhando um naco de carne e deixando o caldo escorrer pelo seu queixo.

— Por pouco tempo — Hermes puxou uma cadeira para se sentar — Foi muito bom trabalhar com todos vocês. Esta brincadeira de gato e rato acaba agora; irei partir para Curvavento, para a reconstrução do lugar, e dar por finda essa busca infrutífera. Divulgaremos uma recompensa para a captura de Wilhem e Claire, e não falemos mais nisso.

Enquanto servia um pouco de pirão e batatas para o duque, Vicente atreveu-se a retrucar.

— Perdoe-me, senhor... mas se um grupo grande e bem preparado como o de Sua Alteza e seus nobres companheiros não conseguiu captura-los, como devemos crer que alguns camponeses com enxadas o consigam?

— Eles tem uma arma a menos, e isso, no caso deles, significa metade do arsenal — lembrou o duque — Além disso, se não tiverem munição, como suspeitamos, não conseguirão comprá-la. Em suma, estão desarmados, além de difamados por todo o reino. Até você os conseguiria capturar. Por mim, seria dada a ordem de trazer as cabeças dos dois até o castelo, para serem penduradas nos Postes dos Condenados, mas Miguel tem o vício da complacência.

Lionor brincava com o pirão, mexendo os talheres no prato e desenhando rostos felizes na comida. Diante da insistência de Vicente, comeu um pouco do porco e das batatas, mas seu estômago dava voltas e cambalhotas desde cedo. Pensou nas cabeças arrancadas, a carne putrefata se desprendendo do crânio, o rosto disforme de cada um dos condenados torcendo-se de forma macabra sobre os Postes dos Condenados, grandes mastros de dois metros e meio de altura que se erguiam ao alado das forcas e da guilhotina, para guardar as cabeças dos que não tiveram uma execução pública mas precisavam ser expostos ao povo para que sua morte servisse de exemplo. Sentiu o gosto do vômito no fundo da garganta, mas estava preso lá no fundo, torturando-a.

Embora parecesse ter pensado em dizer qualquer coisa, Nigel manteve-se calado, ocupado em devorar um segundo prato de pirão e muita carne. Súbito, ele parou, com a boca aberta e a mão segurando um pedaço de carne a poucos centímetros do rosto.

— E qual é a recompensa?

— A Casa da Colina. Já que a recusaram, e está vazia...

O duque não conseguiu terminar a frase. Nigel jogou a comida de volta no prato, aborrecido.

— Não recusei coisa nenhuma — olhou para a garota, com ar desconfiado — Escreveu ao rei dizendo que recusávamos, mesmo que eu tenha discordado, se aproveitando do fato de que eu não podia ler a carta? Diga-me que não fez isso, Lionor...

Ela se levantou-se bruscamente, desculpando-se. Não queria que Nigel pensasse que ela fugia da mesa para evitar que fosse obrigada a responder aquela pergunta, mas já não suportava o mal estar e receava vomitar sobre a travessa de carne.

— Se sente bem, Lionor? — Hermes franziu o cenho, preocupado.

— Sim — ela mentiu, mas tossiu e quase vomitou ali mesmo, na sala de jantar. Correu para os fundos da casa, enojada, enquanto Nigel tentava decidir se a seguia ou não.

O duque descansou as mãos sobre a mesa, com os dedos entrelaçados, voltando-se para Nigel.

— Conte-me sobre o motivo do mal estar da garota. Não pode ter sido a comida de Vicente, ou teríamos todos vomitado.

— Não tenho participação nisso — ele se defendeu, abocanhando mais um pedaço de carne e falando com a boca cheia — Se eu a engravidei pela manhã e ela já estiver sentindo enjoos, então essa criança vai nascer daqui a uma semana.

O olhar de recriminação do duque fez Nigel se arrepender da piada, mas ele não admitiu. Hesitante, Vicente inclinou-se sobre a mesa.

— É que... Lionor comprou uma poção daquelas... como as que a namorada do Conde costuma tomar...acho que ficou curiosa e resolveu provar um pouco.

Parecia envergonhado por revelar o segredo que a garota o fizera prometer que não contaria, mas já havia aprendido a ser mais leal a quem lhe pagava. Hermes resmungou algo que pareceu um grunhido. Namorada, jamais. Caridad era amante de Alonzo, nada mais que uma concubina, visto que ele sempre seria casado com a irmã de Lionor. Desde tempos imemoriais, o casamento era indissolúvel nas leis do reino. Mas não valeria a pena corrigir Vicente.

— Ela fez isso? — Nigel estava aliviado, mas não desejava demonstrar na frente de Hermes. — Quero dizer, eu não a obriguei a nada. Nem mesmo sugeri.

— Seu rosto diz o contrário de suas palavras — observou Hermes — Pode mentir para o seu escudeiro, mas não consegue mentir para mim.

— Ah — o rapaz ergueu os ombros — Que seja. É apenas uma infusão de chás, não é um veneno, Hermes. E eu não quero ter filhos.

— Então por que se casou?

Nigel não tinha uma resposta convincente para aquele questionamento, e limitou-se a balançar a cabeça lentamente. Hermes deveria saber por que os dois haviam se casado: em nome de uma suposta honra, uma promessa que havia sido feita à família da garota, e toda aquela ladainha já repetida centenas de vezes. Havia amor entre eles, e uma paixão intensa, mas ainda poderiam viver estes sentimentos em castidade, se houvessem conseguido resistir à tentação, até que se casassem em um momento mais propício, com uma festa apropriada e cumprindo todos os ritos necessários, recebendo sorrisos, cumprimentos e presentes, além de abraços e bênçãos. No final das contas, haviam se casado no meio de uma missão apenas pelo sexo, simplesmente, mas seria desrespeitoso confessá-lo.

— Lionor... se sente mal? — Nigel fingiu que nada sabia, quando a viu retornando à sala, pálida.

Mas ela havia escutado toda a conversa. As paredes da casa eram finas, e qualquer som transitava entre um cômodo e outro como se quase não existissem divisórias, especialmente quando as portas que separavam os cômodos estavam abertas. Lionor estava magoada por Vicente ter revelado o seu segredo, e não conseguiu encarar Hermes depois de encontra-lo propenso a passar-lhe um sermão. Pensou em dar-lhe alguma explicação, conversar, pedir desculpas mais uma vez — aquilo parecia ter se tornado uma rotina. No entanto, quando puxou a cadeira para se sentar, sentiu o sangue morno entre suas coxas. Não sabia que aquele era o efeito da poção. Jamais haviam lhe contado. O rubor tomou conta de sua face e ela caminhou de costas, tensa, indo se trancar em um dos quartos do térreo. Estava em uma casa cheia de homens, seria uma vergonha imensa caminhar com o vestido manchado de sangue. Mas, de alguma forma, Hermes pareceu adivinhar o que acontecera.

— É este o motivo pelo qual não temos o costume de trazer mulheres em nossas missões — Hermes fez um gesto vago para a porta que a garota fechara. Depois apoiou a testa no punho fechado, o cotovelo descansando na beira da mesa - Sinto-me cansado de tantos contratempos por motivos pessoais. Namoricos, casamentos... Quero que leve Lionor para a casa da irmã, a Condessa, e deixe que ela lá descanse. Você vai retornar ao castelo e pedir autorização para Miguel para que possamos oferecer recompensa pela cabeça d...

— Não a minha casa — objetou Nigel — A casa da Colina é minha. Minha casa é um preço muito caro por aquelas duas cabecinhas ocas de cabelos vermelhos. Que você e Miguel acertem outro preço qualquer.

— Que seja. Vá até o castelo, acerte o preço com o rei, e retorne com um grupo pequeno para substituir o arqueiro que foi baleado e a garota que vai embora. Ah, e não traga nenhuma mulher; caso você queira dormir com alguém de sua equipe, não irá ficar preocupado em evitar filhos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Pois é, não quero ser acusada de estar dizendo que uma mulher atrapalha uma empreitada de heróis, viu? Se quiserem xingar alguém, podem começar por Hermes. A única coisa que posso dizer para concordar com ele é que realmente atrapalha quando você tem um relacionamento amoroso ou sexual com alguém da sua equipe. Sempre tem alguma coisa que incomoda quando isso acontece... pelo menos acontece nas histórias que escrevo.
Próximo capítulo será de Claire e Wilhem. Até mais!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Uma Balada para Lionor" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.