Uma Balada para Lionor escrita por Anya Tallis


Capítulo 3
De tentações e facas afiadas


Notas iniciais do capítulo

Atualizando, como prometido!
É incrível como, ao reler as histórias antigas, percebo como os capítulos eram razoavelmente curtos! A história que escrevo hoje tem capítulos muito grandes. Mas, de qualquer forma, Uma Balada para Lionor foi feita para ser uma história curta. Acabou tendo trinta e oito capítulos, no final das contas!
Reler a história para revisar está sendo uma atividade muito curiosa, pois não me lembro de muita coisa, e acabo curtindo algumas cenas como se a história não fosse minha. Eis uma vantagem de ter uma memória que não é tão boa assim.
Boa leitura a todos!



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À noite, a estalagem enchia-se de música, vinho e risadas. Homens batiam as canecas na mesa, pedindo que as moças de vestidos decotados providenciassem mais e mais bebida, e petiscos, e mais mulheres para que eles se divertissem. Algumas jovens dançavam sobre as mesas enquanto os músicos cantavam paródias de canções célebres, a maioria delas falando mal da família real, contando como o rei se alegrava com o álcool ou como o filho da rainha não se parecia fisicamente com o marido dela. Hermes, Nigel e Lionor preferiram ignorar as cantigas, embora estivessem se sentindo ofendidos, pois a família real os tinha como amigos muito queridos, e era estranho não poder defendê-los. Mas o duque recomendara que evitassem ao máximo se identificar como membros da corte, a fim de evitar atentados, saques e raptos.

– Vou cantar alguma coisa. Não é só a minha irmã que é musicista na família – Lionor piscou um olho para Nigel e Hermes, e foi falar com os músicos, correndo faceira.

– Vai receber um não – disse Nigel, tomando os últimos goles de vinho da caneca – E nem sei se ela sabe cantar, eu nunca a vi cantar sequer uma frase ...

– Ela deve saber, ou não se ofereceria – observou Hermes.

Após alguns cochichos com os músicos, alguém anunciou uma convidada especial. Lionor Braga Klein. Nigel cuspiu o vinho, engasgado.

– Ela disse Klein – ele sentiu um frio no estômago – Por que ela disse isso?

– Deve estar obrigando você a se casar com ela – Hermes deu-lhe um tapa nas costas, e ergueu a caneca para que alguém viesse encher.

Uma menina ruiva com um lenço no cabelo apareceu com uma garrafa de vinho, enchendo os copos dos dois rapazes, enquando Lionor começava a cantar uma divertida cantiga, mas usando a letra original e não a paródia. E até tinha uma boa voz, e uma interpretação cativante, embora errasse algumas palavras da cantiga. Nigel aplaudiu a apresentação da garota, prestando o máximo de atenção até notar que a garçonete estava com os seios encostados em seu ombro enquanto servia bebia a Hermes.

– Com licença – ele fez um gesto discreto para afastá-la de si.

Em vez de se afastar, ela simplesmente recuou um pouco e inclinou-se para sussurrar-lhe ao ouvido.

– Gosta de jogar cartas?

Ele não entendeu, ou pensou que não entendeu, e pediu que repetisse. A garçonete era graciosa, e voluptuosa: embora tivesse aparentemente a mesma idade de Lionor, tinha seios fartos e quadris largos, e uma cintura larga rodeada por uma tira larga de tecido. Os cabelos eram avermelhados e longos, e algumas sardas discretas pintavam-lhe a face. Apontou para um canto escuro, onde um rapaz estava sentado sozinho a uma mesa, com algumas cartas em uma das mãos.

– Meu amigo deseja jogar com você.

– O que ele quer apostar?

– O que você pedir – ela piscou um dos olhos e se afastou.

Após um instante de hesitação, Nigel se levantou e foi ao encontro do amigo da garçonete, deixando Hermes bebendo sozinho. O duque gostava de cartas, mas não tinha costume de jogá-las, e preferiu permanecer assistindo a apresentação de Lionor.

– Boa noite – Nigel estendeu a mão ao desconhecido, assim que se aproximou da mesa. Apresentou-se, e mal escutou o nome do rapaz, cujo rosto estava parcialmente escondido pela penumbra da taverna mal iluminada, mas lhe parecia curiosamente familiar. Nomes e fisionomias não lhe importavam; que fossem direto ao jogo.

Nigel estava acostumado a jogar com grupos grandes, normalmente com os outros guardas do castelo. Jamais jogara com somente um adversário. E o desconhecido era bom, estava ganhando. Com a mão no queixo, o garoto pensava bastante antes de uma jogada. Nigel nunca ganhava partida nenhuma, mas era bem mais fácil disfarçar sua incompetência quando estava em um grupo maior de pessoas. Ao jogar com seus companheiros da guarda real, costumava bagunçar as rodadas acidentalmente ou sair antes do fim da partida, com uma desculpa qualquer,.

– O que apostaram? – a garçonete trouxera uma jarra de cidra, e debruçou-se sobre a mesa, com aqueles seios fartos distraindo os dois rapazes.

Encheu os copos e se afastou para buscar mais. Sem querer, Nigel acompanhou-a com o olhar, e o seu adversário riu. E, repentinamente, achou que o conhecia. Nigel tinha certeza de já haver visto aquele rosto antes, o que era estranho, pois quase não conhecia ninguém na redondeza do Água de Carpas.

– Achou-a bonita?

– Eu... eu estou com minha noiva – Nigel gaguejou, baixando o olhar para as cartas. Uma péssima mão, com certeza iria perder. Sentia-se feliz por não ter apostado nada. – Mas não posso negar que ela seja uma dama muito... bem, muito bonita.

– Quer subir com a gente por um instante?

À distância, Lionor cantava e dançava, enquanto os homens e mulheres nas mesas mais próximas batiam palmas e acompanhavam as cantigas com vozes desafinadas e embriagadas. A garçonete servia as taças e canecas rebolando nos estreitos caminhos entre as mesas.

– O que quer dizer com “subir com a gente”? – Nigel não sabia se havia entendido direito.

– Quero dizer exatamente o que disse: ir lá encima com Claire Díaz e comigo. – o rapaz olhava para as cartas em sua mão – Se ganhar, te dou o direito de se negar; mas se perder, virá conosco.

“Ir lá encima” poderia ter muitas interpretações, mas o olhar que a tal Claire Díaz lhe lançou quando voltou a se aproximar e se sentou ao lado do garoto na penumbra não deixou dúvidas sobre o significado da proposta. A bela garçonete descansou uma mão na coxa do garoto das sombras e outra na de Nigel.

Baixou as cartas sobre a mesa, vencido. Uma péssima mão, jamais ganharia. Dito e feito. E subiu com os dois, para pagar o que devia por ter perdido o jogo. Não pensava em demorar muito; se divertiria por uns vinte minutos, meia hora, arranjaria uma desculpa e voltaria para a taverna no térreo. Ponderou sobre o que Lionor diria daquilo – se percebesse sua ausência, naturalmente. Hermes não seria capaz de denunciar a sua mentira.

– Como disse que se chamava? – perguntou ao garoto; estava quase se lembrando de onde o conhecia, forçando a mente para recordar.

– Wilhem – ele respondeu, abrindo a porta de um aposento espaçoso que ficava no andar mais alto da estalagem, no fim do corredor, em um lugar tão distante da taverna que mal podiam ouvir a música.

Havia uma mesinha de madeira no meio do aposento, uma cama grande e um armário a um canto. A janela do fundo estava perigosamente voltada para a correnteza do rio; Nigel sentiu um calafrio ao imaginar que seria fácil para alguém se suicidar pulando por aquela janela – ou jogar um corpo por ali para que desaparecesse no leito do Água de Carpas. Desconfiado, recuou quando Wilhem tentou desatar de seu quadril o cinto em que se encontrava a bainha da espada de um lado e um punhal do outro. Segurou o pulso do garoto e afastou-o devagar.

– Deixe isto onde está.

– Não vamos te roubar – Claire Díaz riu – Se quiséssemos dinheiro, poderíamos ter apostado nas cartas. Wilhem nunca perde. A única coisa que queremos é que fique à vontade.

– Eu estou à vontade – ele falou, mas mentia; estava desconfiado. Seus olhos fitaram a janela mais uma vez, e sentiu um calafrio ao imaginar alguém atirando seu corpo no Água de Carpas. Bobagem; aqueles dois desconhecidos não teriam motivo aparente para fazer aquilo, pois nem mesmo havia trazido uma moeda sequer no bolso.

Sentou-se em uma cadeira de madeira, e apoiou um dos braços sobre a mesa. Claire Díaz parecia ainda mais sensual, vista de cima, ajoelhada em sua frente, os cabelos ruivos caindo-lhe sobre os ombros quando ela inclinou-se para desatar os nós de sua calça, devagar, com aquelas mãos muito brancas e rechonchudinhas, e unhas longas. Nigel tentou não pensar em Lionor naquele momento. Ela não precisava saber, não mesmo. Não estava fazendo nada de mais, apenas pagando uma aposta. Percebeu que Wilhem estava em pé, atrás de sua cadeira. Sentiu uma das mãos do rapaz sobre seus ombros, e depois por dentro de sua camisa, mas não viu onde estava a outra mão. Deveria estar alerta, mas em vez disso, fechou os olhos e jogou a cabeça para trás, encostando-a em seu novo companheiro de jogos. Foi quando sentiu uma dor lancinante na mão que deixara repousando sobre a mesa. Abriu os olhos com um grito abafado, e viu um punhal espetado em sua carne. O xingamento mais ofensivo que pronunciara não foi capaz de minimizar a sua dor ou sua raiva. Havia sido burro, muito burro.

Em um segundo, tirou o punhal que o feria com a outra mão e apontou-o para o pescoço de Claire, prendendo-a entre suas pernas. Mas sentiu uma outra lâmina em seu próprio pescoço. Ergueu os olhos para o rapaz atrás da cadeira, viu os cabelos ruivos por debaixo do boné, e lembrou-se subitamente de onde o conhecia.

– Eu incendiei o seu vilarejo... – Nigel compreendeu o punhal em sua garganta, tarde demais para se desvencilhar. Era refém.

– Solte-a. – ordenou Wilhem.

– Se querem me roubar ou abusar de mim, fiquem à vontade, acho que sou rico e interessante demais para passar despercebido. – Nigel não soltou Claire – Mas se pretendem se vingar pelo que fiz, devem ser justos e escutar a minha explicação, e me dar a chance de um julgamento. E, se ainda assim acharem culpa nos meus atos, que eu possa lutar em uma peleja justa, com chances de defesa.

– Fala demais para alguém com uma mão vertendo sangue e um punhal prestes a cortar sua garganta.

A lâmina afiada foi empurrada contra sua pele, e um filete de sangue desceu até a gola de sua camisa. Instintivamente, inclinou ainda mais a cabeça para trás.

– Se pretende me matar, faça isso bem rápido, pois enquanto me restar um fio de vida, corto a garganta dela – e ouviu Claire choramingar; não era, afinal de contas, tão corajosa quanto parecera.

Tentava não demonstrar o quanto doía o ferimento na mão. Uma pequena poça de sangue já se formava no tampo da mesa, e começava a pingar lentamente no assoalho. Pareceu-lhe que podiam permanecer daquele jeito durante horas, Wilhem ameaçando Nigel, e este ameaçando Claire, sem chegarem a um consenso. O garoto ruivo estava hesitante, receava pela vida da falsa garçonete.

– Largue a arma e eu largo a minha – decidiu Wilhem.

– Por que eu acreditaria? – Nigel estreitou o olhar – Já blefou uma vez.

Com um súbito gemido de dor, Wilhem deixou cair a mão que segurava o punhal, e desabou no chão. Claire Días soltou um grito agudo, e Nigel olhou para trás quase instintivamente, inclinando a cadeira para trás, a tempo de ver Hermes à porta do quarto com uma lança ensanguentada nas mãos, antes que o gesto brusco derrubasse sua cadeira e ele fosse obrigado a usar, sem querer, a mão ferida para se apoiar. Soltou um lamento, enquanto a garota que o enganara rastejava no chão para um canto do quarto, soluçando, o rosto vermelho e coberto de lágrimas.

– Ele poderia ter me matado! – berrou Nigel, se levantando com dificuldade – E se ele o tivesse visto abrir a porta e se aproximar?

– Eu devia ter te deixado morrer – sentenciou Hermes, muito sério - E depois deveria mandar procurar seu corpo esfaqueado no fundo do Carpas.

Nigel não respondeu. Hermes tinha toda a razão. Salvara sua vida.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler,e aguarde as próximas cenas de Lionor, com seus ciúmes, seus conflitos e esse noivo impossível...