Uma Balada para Lionor escrita por Anya Tallis


Capítulo 19
Do Sangue de Corsários


Notas iniciais do capítulo

Voltamos a acompanhar Claire e Wilhem, a partir do momento da denúncia na procissão, embora a história já tenha avançado um pouco mais, no outro núcleo.
Este foi o último capítulo que registrei já com título... a partir daqui terei que criar títulos para os capítulos vindouros, pois foram registrados apenas com o número. Mas não tem problema, farei isso à medida que reviso. Só terei que botar a cabeça pra funcionar mais um pouco. Não havia percebido que havia tantos capítulos sem nome!
Boa leitura a todos, espero que gostem!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/473021/chapter/19

A multidão era um obstáculo a ser vencido, mas Claire abria caminho entre homens, mulheres e crianças como se nadasse desesperadamente no oceano. Quando chegou ao abrigo, estava ofegante, com o coração acelerado. Precisou de alguns minutos para que conseguisse se recompor e adentrar o Consolo dos Desamparados sem que as religiosas suspeitassem que ela andara aprontando.

Já havia escurecido quando a garota passou pelo refeitório, e a luz fraca das candeias não animava quem quer que fosse a prestar atenção em seu rosto afogueado e seus cabelos despenteados. Havia dezenas de pessoas com ar maltrapilho e desamparado, atacando seus pratos de sopa com colheres de metal, com tanta pressa que pareciam temer que a sopa lhes fosse roubada ou que a comida simplesmente fugisse correndo. Claire logo notou que Wilhem não estava entre os famintos, e foi procurá-lo em seus aposentos.

– Aí está você – ela torcia entre as mãos o capuz cinza que estivera cobrindo seus cabelos mais cedo – Não vai acreditar no que aconteceu.

O garoto estava parado em frente ao espelho, de costas para a porta, com a camisa levantada. Fitava a feia cicatriz causada pela lança de Hermes, e viu Claire pelo reflexo.

– Conseguiu falar com a rainha?

– Consegui – ela sentou-se na cama quase num pulo, e o colchão cedeu por causa de suas maneiras brutas – Com todas as lágrimas e ar piedoso que havíamos combinado... mas não consegui falar do vilarejo. Aquela Lionor estava entre os guardas. Era um deles!

Wilhem virou-se para ela, surpreso.

– Uma mulher na guarda? Uma menina! Bem, temos um rei veado, o que poderíamos esperar...

– Wilhem! – Claire levou as mãos à boca, olhando na direção da porta – Não deve xingar aqui!

Uma religiosa havia passado no exato momento em que o garoto falara. Parou por um instante, com as sobrancelhas erguidas ao ouvi-lo xingar o rei, mas nada disse. Seguiu adiante, com os mesmo passos silenciosos de todas as irmãs da instituição. Costumavam passar pelos corredores em frente aos quartos com uma frequência acima da normal, e recomendavam que os hóspedes mantivessem as portas sempre entreabertas quando o quarto contivesse mais de uma pessoa. Pareciam querer evitar práticas ilegais ou sexuais debaixo do teto do Consolo dos Desamparados. Não era de se espantar que alguma delas houvesse flagrado o comentário desafortunado do garoto, mas ele não se importou. Não acreditava ter feito nada grave.

– Wilhem, nossa mãe dizia que não podemos ser punidos por falar a verdade, mas que devemos escolher as palavras certas e os momentos certos de dizer o que quer que seja. E somos hóspedes das religiosas, elas podem nos expulsar se acharem que estamos agredindo a moral e os bons costumes com esse tipo de palavreado.

– Tanta preocupação com uma palavra, Claire – o garoto suspirou – Quando o que realmente importa é que não conseguiu dizer à rainha todas as palavras que havíamos combinado. Há sempre alguém em nosso caminho.

– Shhh! – ela colocou o indicador sobre os lábios, pedindo silêncio. Sussurrou – Podem estar escutando nossa conversa, espreitando atrás dessas paredes... Não devemos falar de nossos planos aqui no aposento. Venha, conversemos ao ar livre.

Era uma noite fresca, com uma temperatura amena. Uma brisa suave tornava o passeio ainda mais agradável. Wilhem raramente saía, mesmo depois do ferimento ter melhorado, e sentiu-se grato pelo céu estrelado substituir o habitual teto branco com teias de aranha nos cantos. Tomou Claire pelo braço enquanto ela narrava detalhadamente os acontecimentos da procissão.

– Posso não ter conseguido a intercessão da princesa ou da rainha pelo vilarejo, mas em compensação, fiz amizade com vários criados do castelo. Podem ser nossos informantes acerca dos passos do Duque, e dos outros dois.

A expressão “fazer amizade com” quase soou como “se insinuar para”, mas Claire teve cuidado em não parecer tão óbvia.

– E depois que tivermos essas informações, o que faremos com elas? Uma emboscada? Não podemos matar o duque, ele vai reconstruir o vilarejo; senão nosso lar será cinzas para sempre. Embora ele tenha dado a ordem para incendiar, quem eu procuro é Nigel Klein.

Fechou o punho. Procuro-o pelo que ele fez com você, pelo que ele fez comigo. Tocou a cicatriz, levemente; a lembrança da dor do murro que levara no ferimento era ainda pior do que a sensação da lança o atingindo. Não mencionou Lionor; para ele, a garota era insignificante, e estava no grupo apenas obedecendo ao duque e ao noivo. Estava cansado de planos que não davam certo. Esperava que pudessem conseguir o apoio das duas, Anna Thereza e Oriana, à causa que defendiam. Esperava que Nigel for punido por uma delas, em vez de padecer em uma emboscada feita por ele juntamente com Claire; desta forma, não seriam ligados diretamente ao que quer que acontecesse com o rapaz. Esperava que ele fosse acusado de tentativa de assassinato e estupro, mas Claire só conseguira proferir metade das acusações, e sequer tinha provas para apresentar à rainha ou à princesa; o testemunho deles deveria valer de alguma coisa, mas se fossem até a corte, seriam reconhecidos. Wilhem esperava, esperava e esperava, mas sua vingança nunca se concretizava. Queria obrigar o duque a recolher pessoalmente os ossos de seus pais adotivos do meio das cinzas fumegantes, para que pudessem ter um enterro digno, e depois faria Lionor viúva antes mesmo de se casar. E esqueceria tudo aquilo. Viveria em qualquer lugar ao lado de Claire, já que não mais tinha raízes em lugar nenhum. Viveriam errantes. Talvez encontrassem um novo lar, e não se importassem mais se o duque estaria vivo para reconstruir o vilarejo, porque já não se importariam mais em voltar para lá.

– Quer saber, Claire? Dane-se a reconstrução do vilarejo. Se o duque morrer, o rei arranjará outra pessoa para a tarefa. E, se não quiser, vou ignorar sua autoridade e pedirei a intercessão da rainha, que sempre me pareceu bem mais condescendente.

– Não poderá pedir a intercessão dela se formos acusados de assassinar um nobre – lembrou Claire, com ar deprimido – Ninguém nos escutará nas masmorras.

– Jamais saberão que fomos nós. Confie em mim. Converse com seus informantes, sem que percebam o que estão fazendo; precisamos saber sobre a rotina das pessoas que procuramos e, principalmente, quando e para onde eles saem sem uma escolta de guardas atrás de si.

Quando subiram novamente para os aposentos, uma senhora muito idosa e curvada interceptou-lhes o caminho. Claire estremeceu, temerosa, mas evitou que seu nervosismo transparecesse. A mulher caminhou devagar e vacilante até uma capela, fazendo sinal para que os dois jovens a seguissem. Centenas de velas davam ao local uma luminosidade amarela e oscilante; o calor e o odor da cera eram aconchegantes.

– Meus filhos, espero que tenham gostado da estadia aqui no abrigo. Acredito que gostariam de seguir viagem, agora que o rapaz já parece ter sido curado de seus ferimentos.

Somente por fora, ele pensou, por dentro a ferida continua aberta.

– Desculpe-me, senhora... está nos sugerindo que nos retiremos? – Claire fingiu não ter compreendido – Somos órfãos, não temos para onde ir. Se nos permite, imploramos a vossa ajuda.

– Serei bem sincera, pois de nada me valerá esconder o verdadeiro motivo – a voz da velha era firme para a idade e aparência, mas ainda vacilava ligeiramente – A criada foi realizar a limpeza habitual nos quartos, e descobriu que guardam ouro e armas nos aposentos que lhes foram destinados. Sabem que poderíamos denunciá-los como saqueadores e ladrões à guarda do rei, e seriam presos antes de conseguir uma explicação plausível, mas... prefiro que não façamos isto. Não aprecio o envolvimento de nossos hóspedes em denúncias. Acredito que tenha sido somente um mal entendido, crianças... espero que tenham o bom senso de deixarem o abrigo ao amanhecer.

Mas Wilhem não queria esperar até a manhã seguinte. Achou que podiam ser denunciados e presos na madrugada. Arrumou seus pertences e os de Claire, sob o olhar estupefato da garota.

– Estamos no olho da rua de novo, irmão! O que faremos? Onde dormiremos?

– Não sei – ele enrolou as armas e o dinheiro em uma manta de tecido grosso, e os enfiou dentro de um punhado de roupas de baixo de Claire, acomodando-os no fundo da sacola – Não sei mesmo, Claire.

Sentia-se injustiçado. Acreditava que só haviam revistado seus pertences após ouví-lo xingar. Como se xingar o fizesse parecer alguma espécie de mau-caráter. Tentou imaginar quantos ladrões, estupradores, incendiários, fugitivos de masmorras e toda a espécie de malfeitores passavam pela instituição todos os dias, e não eram revistados ou inquiridos, somente porque haviam ficado calados. Wilhem sabia que, mais cedo ou mais tarde, teriam que deixar o local, mas não queria que houvesse ocorrido daquela maneira. Deixavam atrás de si a fama de malfeitores.

– Eu carrego as sacolas – Claire se ofereceu, mas Wilhem tomou-lhe a sacola mais pesada. Estavam deixando o prédio sem avisar ou se despedir das religiosas, com a cautela e o silêncio de quem parece fugir.

– De jeito nenhum – o garoto pegou a sacola maior – Estou quase curado do ferimento. Como deixaria uma moça carregar as minhas bagagens?

– Seu cavalheirismo ainda vai acabar com sua saúde – ela resmungou, enquanto passavam pela cozinha e enchiam de pães uma sacola improvisada que levavam consigo.

Quando passaram pelo portão principal do Consolo dos Desamparados, a estrada à frente estava deserta e escura, e nada convidativa. Claire desejou o seu colchão macio de volta; já havia se acostumado àquele lugar, mas devia voltar a encarar a realidade: aquele não era o seu lar. Não tinham um lar.

– Claire... lembra daquela mulher que morava em frente à nossa casa, em Curvavento? Aquela que tinha duas filhas que me odiavam?

– Como esquecer? – Claire fez uma careta. – Ela não parecia gostar de mim também, assim como parecia não gostar das próprias filhas, da enteada, do marido, de todos os vizinhos, do conde, do rei, dos piratas, do além mar, dos céus e dos infernos. Mas por que lembrou tão repentinamente dessa criatura indigna?

Caminhavam por fora da estrada, pelo mal iluminado descampado de grama e pequenos arbustos. Wilhem tinha uma tristeza profunda no olhar quando comentou, mas caminhava à frente da garota para que ela não visse seu rosto.

– Ela vivia dizendo a nossos pais para ter cuidado comigo. Ela dizia que, como tenho sangue de corsários, minha natureza é perversa, cruel... que jamais seria um senhor fino e bem educado, porque meu sangue me inclinaria à esperteza e ao crime – Deu um sorriso triste – Imagine só se ela me visse agora; matei um homem, quase matei outro, continuo planejando assassinatos... fico pensando se não havia um toque de verdade no que ela dissera.

– Claro que não! – Clair falou, brava – Não é um criminoso, Wilhem! O que estamos planejando fazer é justiça! Eu não tenho sangue de corsários em minhas veias, como justificaria o fato de que os mesmos pensamentos de vingança passam pela minha cabeça?

Mas não havia sido ela quem tentara apunhalar Nigel, nem ela que atirara na cabeça do pirata na fortaleza. Ela não entenderia, ainda que ele explicasse mais uma vez que não se tratava dos pensamentos, e sim das ações. Ele já desejara deitar-se com ela centenas de vezes, todos os dias. E nem por isso seus pensamentos libidinosos haviam se transformado em ações. Era o que ele fazia que importava. O que pensava talvez jamais fosse concretizado. Talvez fosse o sangue ruim, como a maledicente vizinha dissera. O sangue de corsários.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Voltaremos à corte no próximo capítulo, não deixem de acompanhar, mesmo que tenham mil motivos para xingar a história e os personagens!