Uma Balada para Lionor escrita por Anya Tallis


Capítulo 16
Do Consolo dos Desamparados


Notas iniciais do capítulo

De volta! Estou confiando nas minhas anotações, que dizem que este capítulo já está revisado (já faz tempo e não me lembro) e, se virem algum erro no texto, não se incomodem em apontar.
Eu achava que tinha agendado todos os capítulos revisados, será que aconteceu algum problema enquanto o Nyah esteve fora do ar? Nunca saberei...
Boa leitura a todos!



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A carroça trepidava na movimentada estrada de terra esturricada. Era o único caminho direto entre Curvavento e a Corte, e levava exatos três dias para ser percorrido. Wilhem estava deitado, a cabeça apoiada na sacola com os poucos pertences dele e de Claire, e as mãos sobre o peito. Não conseguia descansar, com o veículo sacudindo daquela forma.

– São os pedregulhos na estrada – explicou a garota; deitou-se ao seu lado a fim de poder sussurrar-lhe – eu sei que a carroça é velha, mas este senhor foi o único com quem consegui pechinchar. Não está em condições de montar, Wilhem. Se estivéssemos cavalgando, acho que já estaríamos na metade do caminho.

– E o que faremos quando lá chegarmos? Nem eu e nem você poderemos entrar na corte. O duque e aqueles outros dois nos reconheceriam.

Claire se sentou e abraçou-se às próprias pernas, pensativa. Já repassara seu plano em sua cabeça centenas de vezes, e em todas elas ele parecera falho, mas ainda assim o revelou.

– Temos que pegá-los em uma emboscada, os três juntos, passando pela estrada em um passeio, uma caçada ou uma parada. O problema é que não podemos ficar dia e noite à espreita esperando por uma oportunidade, e ademais, não temos garantia alguma de que não passarão acompanhados do rei, da princesa ou de duas dúzias de guardas.

A roda da carroça passou por cima de um pedregulho, e o solavanco fez Wilhem gemer de dor. Como tinha a petulância de ousar planejar uma vingança se mal conseguia caminhar direito? Na estalagem, costumava dar pequenos passos pelo quarto, e já conseguia se vestir sozinho, embora precisasse da ajuda de Claire para se banhar sem molhar o ferimento – com panos molhados, como o cura ordenou a um criado que fizesse, uma única vez. E o garoto sentiu falta da enfermaria pela primeira vez; era extremamente constrangedor tentar esconder de Claire que ela o excitava quando esfregava a poeira e o suor de seu corpo. Também precisava da ajuda dela para fazer o curativo e para ganhar o dinheiro que usavam para sobreviver. As espadas furtadas dos corpos dos guardas na Fortaleza já haviam sido todas vendidas, e Wilhem sentia-se desagradavelmente impotente ao vê-la trabalhando sozinha pelos dois.

– Bem, Claire, somos fugitivos agora. Primeiro salvamos nossas peles dos corsários e arranjamos um lugar para vivermos... depois pensamos em vingança.

Mas avançavam cada vez mais para o sul, em direção à corte, sem nenhuma ideia do que fariam depois que a carroça os despejasse na sarjeta com suas trouxas e sacos de moedas. Claire olhava constantemente a paisagem através de um rasgão na lona verde-musgo, fitando as árvores e as casinhas na beira da estrada até sentir sono, cochilar e voltar a espiar. Quando a carroça parava para que um deles urinasse ou para que pudessem comer com tranquilidade algum dos pães duros que haviam trazido, a garota sempre perguntava ao velho da carroça onde estavam; por vezes, ele mostrava-se confuso e não sabia informar.

Faltava pouco para que chegassem ao destino, quando foi feita a última das paradas. Claire quis ajudar Wilhem a descer da carroça, mas ele fez um gesto delicado para que ela se afastasse. Se eu deixar, ela vai querer me levar ao mato, esperar que eu termine de urinar e ainda querer me ajudar a sacudir, no final, pensou, cansado da superproteção da garota. Escolheu uma árvore bem escondida e olhou para trás antes de abrir a calça.

Foi quando voltou o rosto para a frente que conseguiu avistá-lo. As telhas de barro, os tijolinhos muito iguais, todos da mesma cor do telhado, em quatro torres unidas por muros cheios de limo. Estava a uma distância considerável, mas Wilhem reconheceu aquele lugar das histórias que ouvira e das pinturas dos livros.

– O Consolo dos Desamparados está logo à frente – falou, ao retornar para a carroça.

– É, eu vi – Claire falou, sem dar importância – Passaremos por ele quando estivermos chegando na corte.

– Não passaremos por lá, Claire. Ficaremos hospedados lá.

Ela se sentiu ofendida.

– Wilhem, eu sei que está doente e que as moedas não durarão para sempre, mas eu prefiro servir pratos e bebidas em um bar que pedir esmolas a um bando de velhinhas religiosas. O Consolo dos Desamparados é para quem realmente necessita: mendigos, órfãos, viúvas.

– Órfãos – repetiu o garoto, enfatizando. E Claire não pode retrucar.

O Consolo dos Desamparados era uma instituição religiosa mantida pela rainha Anna Thereza. Havia sido criada pela sua predecessora, a mãe de Miguel, como uma forma de ajudar os pobres e os oprimidos sem ter a necessidade de encontrá-los pessoalmente. Como era uma grande adoradora de farras, luxo, e qualquer coisa que fosse colorida, aveludada ou dourada, tentou se redimir do seu comportamento pródigo direcionando seu ouro a causas nobres. Qualquer um que se sentisse desamparado era bem vindo na casa. Alimento e camas limpas eram oferecidas sem nenhum custo.

De perto, a construção parecia ainda maior e mais imponente. A rainha Perua fez um bom trabalho, dizia o velho, parando a carroça com um sorriso de poucos dentes.

– Coloque uma expressão piedosa no rosto – avisou Wilhem, depois que a carroça os deixou em frente à construção – Elogie a rainha Anna Thereza e também a falecida perua Catarina, quando lhe for perguntado sobre elas.

– Já entendi, Wilhem – ela franziu as sobrancelhas. Bateu à porta, cuidadosamente.

Uma velhinha abriu a porta após uma longa espera. Claire resumiu a história dos dois – somente as partes em que eles não pareceriam assassinos vingativos. O Duque incendiou nossas casas após nossa família ser completamente dizimada pela peste. Meu irmão se feriu acidentalmente, e não tínhamos para onde ir.

– E depois disso vieram de Curvavento até aqui? – a velha piscou os olhos miúdos e lacrimejantes. Não parecia duvidar deles; apenas parecia impressionada.

– Viemos – assentiu Wilhem, mas apressou-se em explicar – Não a pé, naturalmente.

A sopa servida no Consolo do Desamparados era rala e com pouco sal, e a cama tinha lençóis demasiadamente finos para que fossem capazes de proteger alguém do frio, mas nenhum dos dois se atreveu a se queixar, mesmo quando já estavam sozinhos no quarto. Não havia mais nenhum hóspede além deles; a maioria dos desamparados aparecia por lá somente para matar a fome, se banhar ou pedir algum remédio. Ainda assim, era constrangedor dividir as mesas do refeitório e os corredores do prédio com pessoas sujas e maltrapilhas, algumas tão mal-encaradas que Claire tinha medo de descer para tomar água sozinha. Passavam a maior parte do tempo sozinhos, nos aposentos que lhes foram reservados, com a porta entreaberta. Juntavam-se às caridosas religiosas nos momentos de preces, mas somente porque não era necessário que descessem ou subissem escadas para fazê-lo. Todos os dias, uma das irmãs religiosas aparecia para cuidar do ferimento de Wilhem; era sempre alguém diferente, mas o procedimento era o mesmo; curativos, unguentos e preces. E, ao fim de uma semana, o garoto sentia-se quase curado.

– E agora? – Claire penteava os cabelos com os dedos, mas sentiu-os tão embolados que desistiu da empreitada. – Estamos a duas horas de distância da corte.

– Estamos próximos o suficiente – o garoto tinha um livro nas mãos, mas não o lia. Havia sido emprestado por uma das religiosas, e narrava a história dos feriados religiosos do reino. – Amanhã teremos o festival dos Pés Descalços. A corte inteira vai passar pela frente deste prédio, com roupas humildes e pés no chão.

– Se pensa que atiraremos da janela de uma instituição religiosa uma bala na cabeça de um membro da Guarda Real em um feriado religioso, Wilhem, você está pior do que eu pensava – ela se levantou da penteadeira e sentou-se na cama ao lado dele, colocando a mão na testa do garoto como se quisesse ver se ele estaria com febre.

Ele afastou a mão dela devagar.

– Não era bem isso que eu tinha em mente – ele fechou o livro, e sentiu o cheiro de mofo vindo em sua direção - Ainda tem aquele vestido que usou nas masmorras?

– Não sei. Creio que esteja no fundo da sacola. Ou devo ter jogado fora, não me lembro mais. Não compreendo seu interesse naquele trapo encardido.

Wilhem se levantou da cama e encostou a porta, depois de se certificar de não haver ninguém no corredor. Achava difícil que irmãs religiosas pudessem ficar à espreita atrás das paredes escutando as conversas do hóspedes, mas gostava de ser extremamente cuidadoso e não deixar que escutassem as conversas que tinha com Claire.

– Pode usá-lo no Pés Descalços. É bastante apropriado para a ocasião.

– Oh... verdade – ela fez, decepcionada. Por um breve instante, imaginou que ele já havia criado algum plano; não haviam percorrido uma distância tão longa apenas para participar de um festival.

O quarto onde estavam era amplo, e não havia mais nenhum móvel além de uma cama e um armário. Wilhem caminhava em círculos, achando magnífico que, pela primeira vez em tanto tempo, pudesse andar sem sentir dor. Sua mente era uma profusão de ideias que se atropelavam, e ele se aproximou da janela para fitar a estrada larga que passava pela entrada do abrigo de necessitados. Quase podia ver a cena: a rainha, o rei, os membros da corte, vindo em sua direção, sem que ele e Claire precisassem se deslocar para o castelo.

– Acha que pode chorar, Claire? Se eu lhe pedisse?

– Sem motivo? – ela ficou surpresa com a aparente mudança de assunto.

Lembrou-se das montagens teatrais que faziam quando viajara com Wilhem. Fingir jamais fora um problema para ela. Assentiu com a cabeça, sem entender.

– Vou precisar de suas lágrimas – disse o garoto, pensativo – e da melhor expressão de pesar e humilhação que puder fingir, Claire.

E sorriu, lembrando da frase dita por Lionor, quando ela pensara que ele estaria dormindo, e conversara com Nigel na enfermaria. O segredo do jogo é o blefe.


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Notas finais do capítulo

Voltaremos a atenção outra vez para os membros da corte, no próximo capítulo. Já estou revisando para deixar agendado, e já estou curiosa para reler! Nem acredito que eu esqueci tanta coisa sobre uma história que eu mesma escrevi... até mais!