Uma Balada para Lionor escrita por Anya Tallis


Capítulo 11
De Feitiçaria


Notas iniciais do capítulo

Demorei muito para revisar este capítulo, mas agora tentarei postar com mais frequência! É que havia deixado vários capítulos já agendados, acabei ficando muito tempo sem revisar...
Embora eu não defina esta história como "fantasia", há, no enredo, alguns elementos fantasiosos que começam a ser explicados a partir daqui. Este é um capítulo complicado para postar, porque resume acontecimentos de uma história anterior que eu não postei; é a história sobre Alonzo e sua esposa, a Condessa Antonieta Joaquinna, a Nina, que toca harpa no prólogo desta história!
Falarei basicamente do segredo de Hermes e de como ele adquiriu tal dom. Espero que fique claro o suficiente, mesmo sem a leitura da história anterior. Um dia, quando terminar de revisá-la, a saga poderá finalmente ser lida na ordem correta. Boa leitura!



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Quando Nigel vira Lionor pela primeira vez, ela não era nada mais que “a irmã da mulher de Alonzo”. Conhecera a garota através do portão ricamente decorado da mansão, no dia em que escoltara a Condessa Antonieta Joaquinna do castelo até a casa de sua família. Na época, a garota lhe parecera tão delicada, perfumada e prendada que jamais imaginara que, um dia, estaria cavalgando com ela por estradas ora empoeiradas, ora lamacentas, sem ouvir uma reclamação sequer. Em vez disso, a menina parecia estar se divertindo, como se o trajeto da Fortaleza até a Corte fosse uma aventura. Havia sido da mesma forma quando haviam partido do castelo para Curvavento, mas Lionor parecia ainda mais eufórica com o retorno. Mesmo quando a chuva os obrigou a passar a noite em um lugar conhecido como Cabana da Bruxa – uma casa de madeira em ruínas, com cogumelos crescendo nas paredes e mofo por todos os cantos – ela não pareceu ter achado desagradável. Na verdade, estava encantada, apesar das goteiras e dos estranhos bonecos de pano que pendiam do teto.

O restante do vilarejo onde se encontravam era ainda pior do que a própria cabana, com casas construídas pela metade ao lado de casas destruídas pela metade. E havia uma grande quantidade de gente pobre, crianças sujas com ar faminto, velhos com poucos dentes, que não tinham nenhum pudor em olhar para os visitantes com olhos curiosos e inquisitivos. Não os abordaram diretamente, mas comentavam coisas como “é o duque”, e se afastavam com ar temeroso.

– Aqui vivia uma bruxa – Nigel sussurrou a Lionor, como se contasse uma história de terror. Estava sentado no chão da cabana, com a garota reclinada sobre seu peito, enquanto ele acariciava seus cabelos – Ela prometia uma dádiva a cada pessoa que lhe pagasse algumas moedas de ouro. É por isso que Hermes sobreviveu à peste. É por isso que ele não pode morrer.

– E onde ela está agora? – Lionor indagou, com voz preguiçosa – A feiticeira?

– Hermes e eu a matamos – concluiu o rapaz, com um sorriso.

Lionor levantou a cabeça somente para encará-lo, estreitando o olhar.

– Está mentindo. Nunca esteve aqui nesta cabana antes.

– Por que eu mentiria? – Nigel fez um gesto exagerado para mostrar o quanto se sentia injustiçado – Se quiser, pergunte a Hermes.

O falcão do duque havia voltado de um passeio pelo vilarejo com uma ratazana no bico, e desde então todos haviam se afastado do animal, enojados, com exceção do dono, que ignorou solenemente o acontecimento e tentava encontrar um canto menos úmido para estender uma esteira e descansar sozinho. Parecia sempre bastante solitário e misterioso, e Lionor não se atreveu a abordá-lo para questionar o que Nigel lhe contara.

– O que quer dizer com “ele não pode morrer?

– Não pode ser morto. Envenenado. Adoecer. Apenas morrer de velho, um dia. E esse dia deve estar longe... acho que ele ainda deve ter mais ou menos o dobro da sua idade.

Hermes havia se enfiado debaixo dos cobertores, e Lionor observou-o de longe, a silhueta forte encolhida devido ao frio, um dos braços sobre os olhos para se proteger da tênue claridade da lamparina. A garota balançou a cabeça, incrédula.

– Se ele ganhou uma dádiva tão especial da feiticeira, por que a mataram? Se é que a mataram mesmo, não é? – Lionor nem mesmo sabia se deveria acreditar.

– A dádiva de uns é a maldição de outros. Ele perdeu toda a família e vizinhos no surto de peste. Ficou sozinho, sem a mulher e os três filhos – Nigel encolheu-se – Deve ter sido triste, muito triste. Não consigo nem mesmo imaginar uma dor como essa...

– Pois eu gostaria de ser invencível – ela retrucou, com ar sonhador – Faria muitas coisas improváveis e desafiaria a morte. Não seria cautelosa, e lutaria para proteger os fracos.

Não queria parecer que criticava Hermes. Não o achava acomodado, somente não compreendia o motivo que levava o duque a se enfiar debaixo de cobertores enquanto podia estar vivendo aventuras, sem o receio de uma morte prematura.

– Tem uma cabecinha oca, minha doce Lionor... – Nigel deu-lhe um cascudo, de leve, seus lábios tocando uma das orelhas da menina, quase sem querer – Nada de desafiar a morte. Pensa que é forte, mas é apenas uma garotinha.

Abraçou Lionor com força, como se ela fosse escapar de seus braços. Bobagem, ela não iria a lugar nenhum. E era jovem, e saudável, e cautelosa. Aquelas ideias de aventuras, de desafiar a morte, ele sabia que ela só dizia da boca para fora. É mais provável que eu morra antes, ele pensou. Vivia metido em encrencas.

Dormir na cabana, com o som das goteiras nos baldes, tornava-se ainda mais difícil com os espirros causados pelo cheiro de mofo do lugar. Lionor sentia o nariz coçar horrivelmente, e quando seu corpo sacudia com o espirro, acabava acordando também Nigel, que dormia abraçado a ela. Resmungando, o rapaz a largou e foi se deitar a dois palmos de distância. A garota se apoiou nos cotovelos, fitando Hermes à distância, a falta de sono fazendo com que ruminasse a conversa que tivera antes de dormir. Quase odiou os dois companheiros por terem matado a feiticeira. Se fosse verdade, ela iria pedir para ser invencível. Mas era somente uma menininha, como Nigel fazia sempre questão de lhe lembrar.

Lionor jamais acreditara em feitiçaria. Não por achar que não existisse, mas apenas por jamais ter visto pessoalmente algo que pudesse considerar sobrenatural. Mas, forçando a memória um pouco, pareceu-lhe recordar que sua irmã mais velha, Condessa, lhe contara algo sobre uma feiticeira. Dissera-lhe, certa feita, que iria a algum lugar com o marido, o rei e alguns companheiros, mas na época a garota não lhe prestara muita atenção. De qualquer modo, pensou, Nigel não teria motivos para mentir para mim.

Sem sono, levantou-se cuidadosamente para andar pela cabana, nas pontas dos pés, a fim de que o barulho de seus passos não acordasse o restante da comitiva. Começou a vasculhar as prateleiras, sob as quais haviam sido enfileiradas inúmeras garrafas empoeiradas, com unguentos e óleos misteriosos em seu interior. Haviam potes largos e outros menores, com conteúdos quase endurecidos pelo tempo e pela falta de uso. Alguns deles tinham uma macabra coloração em um tom vermelho escuro. Teias de aranhas eram encontradas por todos os cantos, e algumas baratas minúsculas corriam pela madeira, exalando um odor desagradável. Lionor não se atreveu a tocar qualquer daqueles objetos, enojada, mas os fitava com intensa curiosidade. A luz das candeias fazia com que seu corpo lançasse uma sombra fantasmagórica à sua frente, onde quer que fosse, e ela decidiu segurar uma pequena lamparina para conseguir enxergar mais claramente.

Ouviu alguém se mexer atrás de si, um suspiro de alguém que parecia ter acabado de acordar, e tratou de ser mais cautelosa e silenciosa. Sem perceber, prendia a respiração, e seus movimentos eram mais lentos. Ergueu um pé para evitar que uma barata subisse por ele, sentiu um arrepio quando uma goteira caiu pesadamente sobre o alto de sua cabeça, assustando-a. Ao desviar da água que caía do teto, sua lamparina iluminou o meio da sala, onde se via uma macabra mancha que se assemelhava muito a sangue envelhecido. Sentiu um arrepio, e se aproximou para ver melhor. As pontas de seus sapatos tocaram a área em que houvera com certeza uma poça de sangue. Nigel Klein e Hermes assassinaram a feiticeira, Lionor pensou, com terror, é verdade...

A sua sombra se projetava tortuosamente na parede, e pareceu desobedecê-la por um instante. Lionor estava imóvel, com as duas mãos na base da lamparina, mas a sua sombra pareceu crescer, crescer assustadoramente, com os braços pendendo ao longo do corpo, uma mão que parecia prestes a tocá-la. Ela viu um vulto com o canto do olho e virou a cabeça bruscamente, soltando um grito agudo e assustado.

Seu coração parecia querer saltar pela garganta. Era Hermes, somente Hermes com sua inconveniente mania de surgir de repente. Levou uma mão trêmula ao peito, respirando fundo para se reestabelecer do susto. Alguns dos guardas que haviam acordado com o grito resmungavam e soltavam murmúrios de descontentamento, e Nigel praguejou, meio sonâmbulo. O Duque não ousou se mexer até que a menina parecesse ter se recuperado.

– O que fazia vasculhando a cabana? Procurando alguma coisa?

– Eu só queria... estava sem sono – ela resumiu. Apontou para o chão – Então é verdade que estiveram aqui... você e Nigel... e que mataram uma feiticeira...

– É verdade sim, e é uma história triste. Escutei sem querer quando Nigel lhe contou.

A garota assentiu com a cabeça, e ele prosseguiu.

– Você gostaria de ver, Lionor?

Ela não compreendeu, nem mesmo quando ele a levou para fora, para baixo da garoa, e lhe entregou a espada que trazia à cintura constantemente, até mesmo quando dormia. Lionor o encarou, com ar interrogativo, e ele fitou o vazio, repetindo.

– Gostaria de ver? De tentar?

– De tentar... o que? – ela segurou a espada, e pareceu-lhe imensamente mais pesada que costumava ser, como se houvessem amarrado a ela uma bola de chumbo. Fechou os dedos das duas mãos ao redor do cabo – O que quer que eu faça com isso?

– Quero que tente me matar! – Hermes não acreditava que precisara explicar com todas as palavras o que desejava.

Ela recuou, balançando a cabeça negativamente.

– Hermes, não me peça uma coisa dessas.

Dava um passo para trás a cada vez que Hermes avançava em sua direção, até sentir a parede de madeira tocando suas costas. Lionor sabia que, se o pedido houvesse sido feito a Nigel, ele o faria sem hesitar, a sangue frio. Mas ela não era como Nigel, jamais seria. Como o próprio rapaz insistia em dizer, ela não passava de uma garotinha. E, agora, era uma garotinha assustada. Tirou uma das mãos do cabo da espada e colocou-a no peito do Duque, sem empurrá-lo, apenas para que ele compreendesse que deveria se afastar, mas ele não o fez. Em vez disso, segurou a outra mão da garota com força, pelo pulso, e encostou a ponta da espada no próprio peito. Ela tremia, o suor frio fazia o cabo da pesada espada quase escorregar pela sua mão; sou uma garotinha, somente uma garotinha, não posso enfiar uma espada em alguém de verdade.

Quando ela pensou que ele iria finalmente se afastar, Hermes jogou o peso do corpo em sua direção, sobre a lâmina, que se enterrou até a metade em seu peito. Lionor soltou um gemido, mas não gritou, apenas sentiu as lágrimas banharem a sua face, e os soluços vieram sem que ela sentisse. Estava tão próxima de Hermes que o sangue que pingava do ferimento caiu sobre os pequenos seios da garota.

Com uma careta de dor, ele deu um passo para trás e arrancou a lâmina do peito, atirando-a ao chão molhado. Arfava, curvado pela dor, mas estava vivo, e em pé. Era impossível saber quanto sangue já havia corrido do ferimento, pois Lionor já não sabia se era a chuva que molhava as roupas negras do Duque.

– Compreende agora a minha maldição, Lionor?

Ela enxugou as lágrimas de seus arregalados olhos azuis com as costas das mãos, sentindo a cabeça rodar. Apoiou-se na parede para não desmaiar no chão enlameado. Desejava ser uma mulher forte.

– Eu... – ela começou, quando sentiu que conseguiria voltar a falar – Compreendo agora a sua bênção.


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Notas finais do capítulo

Espero que gostem. Se algo não ficou claro, podem perguntar à vontade! Sugestões e questionamentos são sempre bem vindos!
No próximo capítulo, voltaremos a acompanhar Claire! Até lá!