You Only Live Once escrita por Vero Almeida


Capítulo 8
Traga-me paz, cante pra mim


Notas iniciais do capítulo

Esse é o meu capítulo favorito até agora, espero que gostem.
(O nome tá uma bosta porque eu imaginei ele em inglês e em português fica estranho, mas enfim)



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PDV da Alícia

Graças a Deus, eu já estava de volta à favela popularmente conhecida como programa de artes da Calloun. E quer saber? Eu não poderia querer lugar melhor para ficar, apesar da ruiva psicopata.

No fim, o almoço não me rendeu muitas descobertas além do nome do bonitão, mas me rendeu um encontro na cidade no próximo fim de semana, e eu não sabia como me sentir sobre isso.

Eu tenho que ir, e não tenho nada a perder. Na pior das hipóteses descubro alguma coisa comprometedora sobre Josh, na melhor, ele me faz desistir de vez dessa idéia retardada de espiã e perseguição e eu tenho um encontro de verdade.

Claro que isso não seria justo com ele, já que eu estava realmente tentada a aparecer naquele restaurante amanhã para almoçar como quem não quer nada e talvez dar umas piscadinhas pro bonitão... Landon.

Mas enfim, nada disso importa agora porque eu estou numa sala de instrumentos MUITO LEGAL, esperando o Noah aparecer. Nós vamos tocar! Cara, eu to tão animada quanto uma criança que ganha um brinquedo novo.

Foi meio difícil convencer Noah a vir. Mandei mensagem pra ele assim que saí do restaurante, e ele ficou fazendo cu doce dizendo que não podia ouvir então não tinha como me ajudar muito, aí eu mandei ele a merda porque ele toca bateria sem ouvir droga nenhuma e ainda se faz de desentendido. Depois comecei a dizer palavras aleatórias em espanhol só para irritá-lo, obviamente ele não entendeu muita coisa e ficou puto com isso. Foi vencido pelo cansaço e topou, dizendo que eu era muito insuportável pro meu tamanho.

E agora eu estou aqui, sentadinha no palco pequenino que tem na sala (tão eufórica que meus pés estão balançando freneticamente), esperando-o chegar.

Cara, o meu violão fuleiro ia se sentir humilhado dentro dessa sala, juro. Tipo, tem uns 3 violões de ultima geração aqui, além da bateria, teclado, baixo, guitarra, e até uns instrumentos que eu conheço de vista mas não lembro o nome. Aqueles de música clássica. Não acredito que posso usar tudo isso... Parece um sonho!

– Quer que eu pegue um balde pra baba? – Sobressaltei-me. Droga, que susto.

Virei-me na direção dele (ou seja, pra direção da porta), e observei-o se aproximar, fuzilando-o com o olhar.

– Ha ha ha, engraçadão você. – Respondi, sem muito entusiasmo.

– E aí, o que achou daqui? Bem legal né?

– Legal? Isso aqui é incrível! Essa sala deve valer mais que a casa dos meus avós lá na argentina. Olha só esse teclado! – Levantei-me do palquinho, correndo até o teclado. Sempre quis aprender a tocar, mas nunca passei de “Do ré mi fá” e “La cucaracha”. Posicionei-me atrás do instrumento, e deixei meus dedos deslizarem por todo ele mesmo sem saber que raios de notas eu estava tocando. Ergui os olhos para Noah, sorridente, mas aparentemente o garoto não compartilhava do meu entusiasmo. O característico sorriso travesso que sempre estava em seus lábios tinha abandonado seu rosto, agora tinha uma expressão que eu não sabia direito identificar.

– Olha, será que nós podemos não tocar teclado hoje? – Perguntou, com os olhos fixos em meus dedos, ainda nas teclas. – Aliás, Ryan pode te ajudar mais com esse tipo de instrumento, eu fico mais com a batera e as cordas mesmo...

– Tudo bem. – Assenti. Franzi a sobrancelha, estranhando sua reação. Nunca tinha o visto assim. Saí detrás do teclado, mas seus olhos se mantiveram ali mesmo quando eu não estava mais lá. Sua respiração estava lenta e pesada, podia ver pelo movimento dos ombros e tórax. – Noah... O que foi?

– Eu sinto falta do som das teclas... – Um sorriso mínimo se formou no canto de seus lábios, mas os olhos ainda estavam cheios daquela emoção que eu não reconhecera anteriormente, e agora sabia que era dor... Saudade. – Quando eu morava com meus pais, antes de vir pra cá, meu pai costumava almoçar em casa todos os dias. Geralmente quando eu chegava da escola ele já estava lá, dedilhando o piano velho que era da minha avó, enquanto esperava minha mãe terminar o almoço. Eu sentava no sofá e ficava ouvindo-o tocar. Não era perfeito nem nada, as vezes errava, as vezes improvisava, e sinceramente os improvisos dele eram bem ruins. – Riu fracamente. – Mas eu adorava ouvi-lo tocar. Ele tinha um sorriso nos lábios e uma expressão tão serena...

Fez uma pausa.

– Eles tiveram que se livrar do piano depois do acidente... Eu não conseguia olhar pra ele. O colocaram no sótão, e eu não subi mais lá. Depois, quando passei no processo seletivo da universidade eles acharam que eu ficaria melhor em um ambiente novo, e de fato foi bom pra mim. Eu melhorei, bastante. Descobri que ainda posso tocar bateria e violão, mesmo precisando de ajuda para afiná-lo e pra algumas outras coisas. Mas ainda não me dou muito bem com pianos e teclados.

– Me desculpe. – Murmurei, indo até ele rapidamente e pousando minha mão em seu ombro. Sinceramente, não passou pela minha cabeça que Noah tivesse algum tipo de problema com a surdez, ele parecia muito bem resolvido, adaptado. Nunca tinha visto uma sombra de tristeza naquele garoto, só sorrisos e piadas.

– Não, não faça isso. – Murmurou, tirando minha mão de seu ombro , meio bruscamente até, mas ignorei isso. – Não tenha pena de mim.

– Pena de você? – Sorri para ele, bagunçando seus cabelos já desajeitados. – Você é a última pessoa desse mundo de quem eu teria pena. Noah, você lida com as coisas bem demais pra quem teve uma mudança de vida tão brusca há tão pouco tempo. – Me lembro dele dizendo no primeiro dia em que cheguei que tinha acontecido há cerca de um ano. – Será que eu posso perguntar... Como foi que aconteceu?

– Um dia, não hoje. – Sorriu para mim, me puxando pra um abraço de urso. Beijou minha testa em seguida. – Me desculpa interromper seu treino, mas será que eu posso ficar sozinho uns minutos?

– Claro... Mas não vai se livrar de mim tão fácil.

Beijei-lhe o rosto rapidamente e deixei a sala, dando a ele o momento de que precisava.

_/_/_

PDV da Marie

Ah, estava com saudade das aulas de Ballet! Eu não parava de dançar durante as férias, mas não era a mesma coisa. Gosto de aprender coisas novas, de ter alguém que deixe a rédea mais curta, e alguém que me bajule também, ninguém é de ferro, e eu adoro elogios. Minha mãe devia ter ficado ali para ouvir a Sra. Sanders dizer o quanto eu melhorei. Fiquei tão feliz por ter gostado da minha performance que quase esqueci o incidente desagradável do vestiário.

Mas lembrei assim que vi a pilha de hambúrgueres que Ana colocou em cima da mesa da cozinha. Brilhavam de tão gordurosos.

– E tratem de fazer logo a porcaria do quadro de tarefas, se não quiserem que eu cuide disso. – Esbravejou, sentando-se na mesa com seu hambúrguer já em mãos e a boca bem cheia. – Não sou cozinheira nem faxineira de ninguém!

– Nós cuidamos disso, pode deixar. – Acrescentei rapidamente, rindo da postura corcunda e do jeito animalesco com que comia.

Definitivamente não deixaríamos que ela dividisse as tarefas. Semestre passado ela me botou pra lavar os banheiros e tirar o lixo. A minha sorte é que Noah é um cavalheiro e trocou comigo. Abençoado seja.

– Não vai comer?

– Não, obrigada. – Eu olhava para o prato no centro da mesa e enxergava os kg que ganharia se comesse.

– Ok, sobra mais. – Deu de ombros, indiferente. – Hey, amanhã depois da aula é a primeira reunião sobre a peça desse semestre. Eu vou dirigi-la, parece que o velho carrancudo ganhou muitas turmas novas e não vai dar conta. – Ela estava falando do velho Sr. Milton, ele dava aula de teatro, e trabalhava nossa expressão corporal (coisa que Ana também fazia nas aulas de dança contemporânea, mas ele não gostava da maneira como ela trabalhava, e vice e versa). – Eu não devia favorecer alunos, mas foda-se. Apareça lá, aliás, apareça em todas as reuniões e quando eu marcar o bendito teste, estude feito louca porque eu tenho uma personagem principal que nasceu pra você.

Dei um gritinho histérico, batendo palminhas.

– Pode me dizer qual vai ser a peça, pra eu adiantar meu lado ou seria muita falta de ética até mesmo pra você?

– Ah, não sei não... – Ela deu outra mordida no hambúrguer, mastigando por um longo tempo. E então sussurrou, de novo com a boca cheia. –mwhuas miwha

– Que?

–mwhaus miwa

–Ana, engole primeiro.

– Mamma mia, porra!

– Hey, eu adoro essa peça! – Alícia entrou na cozinha, toda saltitante como sempre. Ana sussurrou um “Shiu” bem impaciente e sinalizou para que ela falasse baixo.

– Calem a boca as duas! – Deu um tapa na cabeça de cada uma. – Posso perder meu emprego.

Ué, Noah saiu daqui meia hora atrás dizendo que ia encontrar Alícia na sala de instrumentos... O que raios ela estava fazendo aqui?

– Hey, Noah está te esperando.

Ela foi até a pia para lavar as mãos, Ana pegou mais dois hambúrgueres e colocou no seu prato, só por precaução.

– Eu já o encontrei. Ele ficou meio chateado quando toquei o teclado. – Deu de ombros, secando as mãos no pano de prato e sentando-se à mesa para comer. – Acho que entendi porque não tocam isso na banda.

–Teclado é? – Arqueei a sobrancelha. Noah tinha um longo histórico de amor e ódio com teclados.

– É, pediu pra ficar sozinho, então eu voltei pra cá.

– Largou ele sozinho lá? – Perguntei, mais alto do que deveria, levantando num pulo. – Ah não, ah não, não não.

– Ele pediu pra ficar sozinho, criatura.

– Ele vai surtar! – Gritei, já correndo em direção a porta da frente.

Noah não é do tipo que se chateia, poucas coisas o abalam. Mas já o vi ter outras crises antes, e no geral elas sempre começam do mesmo jeito.

Ele lida muito bem com as coisas com as quais já está adaptado, mas sempre que encontra algo que ainda não pode fazer, ele explode. E nada o machuca mais do que não poder ouvir o piano.

E tem também o lance de ficar sozinho. Noah foge da dor fazendo justamente o contrário. Geralmente quando algo acontece e ele pede pra ficar sozinho, é porque vai se entregar a ela.

Saí da república toda esbaforida, descendo os degraus da varanda num pulo e correndo no meio da rua. Virei a primeira a esquerda, passando por duas repúblicas gêmeas, dois chalés amarelos e enormes um de cada lado da rua. Quase esbarrei em um coitado que tocava violão sentado na calçada.

– Desculpe! – Gritei, já virando a esquina novamente. Agora podia ver a pequena pracinha de pedra cercada pelos prédios onde estudávamos e treinávamos.

Apertei o passo, correndo o mais rápido que podia. Meus pés tinham alcançado o solo de pedra quando pude escutar o som frenético do teclado.

Quando finalmente entrei na sala dos instrumentos, diminui o passo, indo em direção a ele devagar.

Ele estava sentado num banco, de frente para o teclado. Seus dedos martelavam as teclas com força, ia acabar quebrando-as. Podia sentir sua frustração em cada um de seus movimentos, as lágrimas jorravam feio cachoeira por seus olhos. Meu coração se partiu em um milhão de pedaços.

Observei seus dedos se fecharem em torno de sua mão e esmurrarem as teclas, um grito de dor escapava de sua boca hora ou outra. Seus músculos estavam todos tensionados, os olhos bem cerrados, os pés chutavam o chão com uma força impressionante. Não parecia inteiramente ciente do que estava fazendo, ia acabar se machucando.

Corri até ele, agachando-me em sua frente. Levei minhas duas mãos ao seu rosto, acariciando-lhe as bochechas com o polegar. A essa altura, meu rosto já estava tão encharcado de lágrimas quanto os dele.

– Noah, olha pra mim, amor. – Murmurei, sabendo que não me ouviria já que seus olhos estavam bem cerrados. As mãos ainda martelavam as teclas, mas seu rosto agora estava virado em minha direção, bem preso entre minhas mãos. Acariciei-lhe os olhos, num pedido mudo para que os abrisse, e ele o fez.

– Eu não consigo... Não consigo... – Disse, entre soluços. Fechei meus olhos tentando evitar que mais enxurradas de lágrimas caíssem por eles, sem sucesso. Eu tinha que me manter forte, ele precisava de mim. – Não importa quão forte eu bata... Não consigo ouvir.

– Está tudo bem... – Sentei-me ao lado dele no banco, sem tirar minhas mãos de seu rosto nem por um segundo. Deixei meus dedos deslizarem por seu cabelo, enquanto encarava seus olhos cor de mel. – Eu estou aqui, não vou sair daqui.

Ele soluçava em meus braços, e eu me sentia horrível, inútil. Deus, como eu queria poder fazer a dor sumir.

– Nós vamos encontrar uma maneira, juntos. – Colei nossas testas, sem pensar direito no que estava fazendo, só queria fazê-lo parar de chorar. – Você consegue fazer tantas coisas, não é? Nós vamos dar um jeito nisso.

Minha voz estava trêmula, e falhava algumas vezes. Queria ter certeza de que conseguiríamos dar um jeito nisso, queria ter certeza de que eu poderia cumprir minha promessa, mas no momento não podia garantir nada.

– Consegue ver quão maravilhoso você é? – Perguntei, mantendo meus olhos fixos nele, tentando fazê-lo pensar só em mim, esquecer o resto. Todo o meu peito doía, cada soluço, cada grito doía em mim de uma maneira que eu nunca saberia explicar. Eu sabia o quanto ele sofria, sabia o quanto estava se contendo para não levantar daquele banco e quebrar tudo. Podia ver suas orbes vidradas em mim, arregaladas, assustadas, e via também o que se passava dentro da cabeça dele. Era como estar perdido num pesadelo por toda a eternidade, sem nunca poder acordar. – Você é incrível, tão forte e determinado. Pessoas se entregam, se doem e reclamam por problemas muito menores que os seus, Noah. E você se levanta, todo santo dia e segue sua vida. Você precisa se lembrar disso.

Senti seus braços me envolverem pela cintura, e então sua cabeça se apoiou em meu ombro, ainda soluçando muito. Meus dedos continuaram acariciando-lhe o rosto e os cabelos. Suas mãos e pés aos poucos se acalmaram, mas o choro não diminuiu. Beijei-lhe a testa demoradamente. Podia sentir as lágrimas dele molhando minha blusa, mas não me importava com isso.

Então, sem pensar direito, talvez seja o tal do instinto materno que dizem que as mulheres tem, comecei a cantarolar uma música baixinho. Sabia que ele não podia me ouvir, mas de alguma forma aquela melodia me reconfortava.

Minha mão deixou o rosto dele por uns minutos, passei a acariciar-lhe o braço, deslizando meus dedos por toda a extensão dele e então fazendo movimentos circulares nos ombros.

Um arrepio percorreu minha espinha quando senti seus dedos deslizarem por meu pescoço e estacionarem nos meus cachos loiros, caídos sobre o ombro oposto ao qual ele estava apoiado. Parei de cantar, surpresa.

– Continue. – Pediu, ainda chorava, mas pelo menos os soluços tinham acalmado. – Posso sentir a vibração do seu pescoço.

Ri fracamente.

– Posso sentir a risada também. E a respiração. É reconfortante.

Sorri, erguendo minha mão livre até meu rosto para secar as lágrimas. Então recomecei a cantar, apertando-o mais rente a mim.

Ficamos assim por bastante tempo, não sei precisar quanto. Aos poucos ele foi se acalmando, seus dedos ainda brincavam com meus cachos, e afagavam meus ombros vez ou outra.

– É sempre você, não é? – Murmurou, erguendo a cabeça e fitando-me, com os olhos já secos. – É sempre você que vem me acudir e presenciar essa cena patética. – Riu, sem muito entusiasmo.

– Não tem nada de patético nisso. – Seus olhos fitavam meus lábios atentamente. – Não tem absolutamente nada de patético em você.

Não conseguia parar de olhar pra ele, eu ainda o sentia frágil em meus braços, apesar de não chorar mais.

Minha mão voltou a seu rosto, acariciei-lhe os cabelos, depois a sobrancelha e as bochechas, e então a nuca.

Não sei exatamente como aconteceu, juro que não sei, mas num minuto eu olhava para ele, e no segundo seguinte senti a pressão de seus lábios nos meus. Meus olhos se arregalaram surpresos.

Ainda estava surpresa quando tentou aprofundar o beijo, não tive tempo de pensar, simplesmente segui os meus instintos e permiti.

Se estivesse no meu juízo perfeito, provavelmente o empurraria. Isso não podia acontecer, não estava certo, ele estava frágil. Aposto que nem sabia o que estava fazendo. Mas não pude afastá-lo... Ao invés disso apertei minhas duas mãos em sua nuca, puxando-lhe pra mais perto.

Beijar Noah era provavelmente a melhor coisa que eu já tinha experimentado na minha vida. Eu sentia algo dentro de mim derretendo e escorrendo, algo quente, que se espalhava por todo o meu corpo. O beijo era lento e delicado, nenhum dos dois tinha pressa, e eu definitivamente não queria que acabasse.

Eu sentia uma de suas mãos na minha nuca, alternando entre arranhá-la de leve e acariciar meus cabelos. A outra estacionara em minha cintura, mantendo-me grudada a seu corpo.

Foi bom, incrivelmente bom, foi maravilhoso. Mas quando finalmente nos separamos em busca de ar, pude olhá-lo novamente, e então tomei consciência do que tinha feito. Pelo amor de Deus, eu tinha acabado de me aproveitar de um cara fragilizado. Isso me tornava praticamente uma cafajeste do sexo feminino.

Arregalei os olhos, assustada, e levantei-me do banco rapidamente, resistindo ao impulso de beijá-lo de novo.

– Marie... – Murmurou, olhando-me confuso. Não respondi, apenas corri em direção a mesma porta por onde entrei.

– Desculpe. – Eu disse, sumindo porta afora.

_/_/_

PDV da Stella

– Ryan não está com fome, querida? – Marion ergueu os olhos com as lentes fajutas pra cima de mim. Não entendia como alguém com olhos tão bonitos se prestava a esse papel ridículo. Os olhos cinza eram tão visivelmente falsos quanto meus cabelos ruivos, a diferença é que meu cabelo combinava comigo, tingido ou não.

– Ah... Não, ele disse que queria ficar lá embaixo uns minutos. – Respondi, cínica. Ah, não era tão ruim vai, eu o deixaria preso durante todo o almoço e depois desceria lá para libertá-lo. Esperava que ninguém checasse embaixo do sofá, escondi as roupas dele lá.

Estávamos sentados á mesa. Eu estava de frente à diabinha irmã do Ryan, ela mostrava a língua para mim ora ou outra, eu nada respondia, teria a semana inteira para fazê-la sofrer. Marion estava na ponta da mesa, o lugar de Ryan estava posto ao meu lado, e o de Charles (ou Larry, mas ele não gosta muito de ser chamado assim, lembranças ruins) na outra ponta. A governanta comia sentada ao lado de Bridget, sempre quis fazer isso com Joe, mas nunca deixaram.

Amo a família de Ryan (até a diabinha, mas não espalhem) porque nesta casa existe amor e respeito. Os funcionários são parte da família, e, talvez por Joe sempre ter sido a pessoa mais importante da minha vida, eu tenho uma empatia tremenda por funcionários. Embora eu admita que essa empatia não se estende a muitas pessoas mais.

– Boa tarde, família! Perdão pelo atraso. – Escutei o estrondo da porta sendo aberta sem a menor delicadeza (igualzinho o Ryan, é engraçado como são diferentes fisicamente mas tão parecidos nas manias e trejeitos), e depois o som da maleta caindo sobre o sofá. Não via a hora de ficar sozinha com ele, faria com que me contasse tudo sobre o que quiser que estivesse fazendo no trabalho. Ele produz umas bandas muito fodas cara, talvez me deixe estagiar com ele essa semana. Aí eu voltaria pra faculdade semana que vem com créditos extras e esfregaria na cara daquela baixinha do inferno. Seus passos ecoaram pelo corredor até a cozinha. – Olha só, se não é a futura estrela do Rock, digníssima Stella Windsor comendo na minha cozinha!

Ah, eu definitivamente amo esse cara.

Ele adentrou a cozinha, beijando a bochecha de Bridget de maneira doce e beijando Marion nos lábios (ugh), depois veio até mim, beijando-me da mesma maneira que beijara a própria filha.

– Cadê o meu garoto? – Perguntou, sumindo no mini banheiro que existia no corredor entre a cozinha e a sala. Ouvi o barulho da torneira aberta.

– Se trancou naquele seu porão. – Queixou-se Marion, visivelmente frustrada. – Nunca vem em casa, e quando vem não quer almoçar conosco. Nem se deu ao trabalho de explicar o motivo da visita.

Me encolhi na cadeira. Tinha certeza que não me botariam na rua, todos ali gostavam de mim. Mas claro que eu teria que ouvir um sermão de duas horas sobre como evitar uma suspensão e fingir que me importo enquanto isso.

– Vou lá chamá-lo. – Observei com horror enquanto Charles deixava o pequeno banheiro e sumia no corredor, rumo à escada que descia até o porão.

– Não! – Gritei, levantando-me o mais rápido que pude e me atrapalhando com a cadeira. – Eu vou!

– Sossega garota, só vai levar um minuto.

Gemi baixinho, já imaginando minha cabeça servida numa bandeja de prata pro enorme são Bernardo que eles tinham nos fundos.

Enfrentei quase um minuto de silêncio desagradável e conflitos internos. Correr até lá ou não? Já levar as roupas ou não? Será que adiantaria dizer que não fui eu? Claro que não, quem mais seria. Os pais geralmente não gostam de ver seus filhos seminus dentro de suas casas, e quase unanimemente detestam que seus filhos transem em suas casas. Tudo bem que não chegamos a esse ponto (dessa vez) mas foi preciso alguma atividade para deixá-lo daquele jeito. Rezei para que pelo menos ele já tivesse dado um jeito de acalmar o Jr.

– Er, Stella... – Charles me chamou de lá de baixo. – Pode vir aqui um minuto?

– Algum problema querido? – Marion pescoçou o corredor, sem levantar-se da cadeira.

– Não, só preciso da ajuda dela pra resolver uma coisinha aqui.

Argh droga! Se os filhos tivessem alguma privacidade nesse mundo, eu não teria sido pega. Ajeitei a cadeira, contornando-a por trás e rumando até a escada. Fiz uma pequena parada no sofá para duas pessoas (que graças a Deus não era visível da cozinha), e agachei-me para pegar as roupas dele, continuando meu caminho até o porão.

Fiz uma pausa quando cheguei ao topo da escada, suspirando antes de descer. Bom, também a merda estava feita e eu tinha achado bastante divertido, então foda-se.

Desci as escadas, deparando-me com Charles logo de cara, encostado no batente da porta. Joguei as roupas ali, ao pé da escada.

– Como raios isso aconteceu? – Perguntou, não seriamente, mas também não tão descontraído como costuma ser.

– Bom, eu não sei se ele te contou que eu terminei com ele...

– Fui eu que terminei com você. – Me interrompeu Ryan, ainda amarrado na mesma posição em que o deixei. Era uma cena deliciosamente patética, contive o riso.

– Foda-se. O fato é que ele veio todo sentimental perguntando coisas sentimentais – Fiz uma careta. – E insinuou que eu não o deixo se aprofundar totalmente na minha vida porque não sei me controlar. Então mostrei a ele de uma maneira bastante convincente que eu sei me controlar. Quem não sabe é ele.

Um sorriso tímido surgiu nos cantos dos lábios de Charles, parecia fazer bastante esforço para se manter sério. Aparentemente não deu certo, pois dois segundos depois tinha caído na gargalhada, sob os olhares boquiabertos e revoltados de Ryan.

Eu realmente queria não rir, queria mesmo, mas assim que ouvi o som da gargalhada não pude mais me conter. Rimos juntos.

– É, ela ganhou essa, cara! – Dirigiu-se a Ryan, entre risos. – Sério, não tenho como te defender dessa vez. Eu definitivamente adoro essa garota!

Ryan revirou os olhos, e meu sorriso se alargou. Existiam pouquíssimas pessoas no mundo que eu tinha vontade de agradar, ele definitivamente era uma delas, e encabeçava a lista.

– Ok, as duas mocinhas podem fofocar a vontade depois que me tirarem daqui. Isso se Stella tiver língua pra isso quando eu acabar com ela.

Tive que rir, Ryan não acaba nem com uma mosca, que dirá comigo.

– Olha... Se continuar rebelde vou ter que te deixar de castigo por mais tempo. – Fiz um bico, provocando-o. Charles estava vermelho de tanto rir.

– Ok, já chega. – Apertou meu ombro gentilmente, ainda rindo um pouco. – Solte-o. Eu vou subir antes que Marion desça e faça um escândalo. Vocês tem 5 minutos para subir. E da próxima vez, vão para um quarto, não vou ser tão amigável se pegar vocês usando essa sala como parque de diversões de novo.

Piscou para nós, de bom humor. Apesar disso sabíamos que falava bem sério. O pai de Ryan era o tipo de pessoa que todos respeitavam, sem que precisasse impor nada. Tinha algo no seu tom brincalhão, algo que indicava que ser legal no caso dele não era sinônimo de ser trouxa, e eu achava isso absolutamente foda. Ele conseguia absolutamente tudo o que queria, inclusive de mim.

Acenei afirmativamente, observando-o sumir escada acima enquanto seus passos ecoavam pelo assoalho de madeira.

– Não importa o que você faça... – Ryan sibilou, fazendo-me virar em sua direção. Seu semblante não parecia o de alguém prestes a voar no meu pescoço e me estrangular, parecia o olhar de um homem que viu um cachorro cair da mudança, e lamenta não poder levá-lo pra casa. Tinha duas coisas ali que eu mal podia suportar: Pena, e amor. – Eu sei que você me ama. Eu vejo... Vejo por detrás da máscara Stella, você sabe disso. E sabe também que eu amo você, e é um sentimento forte, e profundo, enraizado em mim e eu não consigo tirar por mais que queira.

Queria fazê-lo parar. Queria que parasse de falar de qualquer maneira. Eu não o amo, não amo a ele nem a ninguém... Ah, cala a boca, é claro que eu o amo, mais do que eu jamais admitiria. Enfim, não podia pedir que parasse... não podia deixar tão claro o quanto esse assunto me afetava. E assim acabei no mesmo conflito interno de sempre: Por dentro, parte de mim gritava por ele, e a outra para que eu me afastasse. Por fora eu apenas mantinha a sobrancelha arqueada e um sorriso irônico nos lábios, indiferente ao sentimentalismo tosco.

– Mas eu amo a garota por detrás da máscara, e detesto a máscara. Não posso mais viver nesse conflito.

– Eu não pedi pra que viesse atrás de mim. – Disparei, pisando duro em direção ao velho sofá no fundo da sala. Podia sentir meu coração pesando em meu peito, mas ignorei isso. Ajoelhei-me no sofá, dessa vez a certa distância dele, levando minhas mãos ao cinto que o prendia e soltando-o. – Diga aos seus pais que viemos apenas fazer uma visita. Me leva de volta pro campus, eu vou pra minha casa e cada um segue seu caminho.

– Não. – Foi objetivo. Esticou e dobrou os braços, recuperando seus movimentos, em seguida levantou-se, alongando-se. – Você vai ficar aqui. Mas fica tranqüila, vou respeitar a parte do cada um segue a sua vida.

Pegou as roupas que joguei ao pé da escada assim que desci, e colocou as calças em tempo record. Em seguida deu uma última olhada em minha direção e subiu as escadas enquanto colocava sua camiseta de volta. Me mantive muda durante todo o processo.


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Notas finais do capítulo

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