Devotion escrita por Celestia


Capítulo 1
Devotion




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A floresta estava vazia exceto pelo corpo ao pé da árvore, que agonizava em completa solidão. Sangue negro manchava a neve sob seus pés, ele podia sentir o coração falhar, o ritmo das batidas diminuindo gradativamente. Sabia que a morte estava próxima. A mão manchada de sangue se elevou até o crucifixo que usava, os dedos pálidos e gélidos maculando o objeto com seu aperto. A corrente e rompeu ao ser forçada e o homem usou uma parte de sua força restante para atirar o acessório o mais longe que lhe era possível naquele momento, voltando então sua mão até o peito onde o coração artificial perecia. Estava morrendo. E ainda assim... Ainda assim não comseguia sentir nada. Não havia agonia, medo, dor ou sequer alívio. Era apenas o vazio com o qual vivera toda sua vida.

Despiu-se, entretanto, do adorno que carregara consigo por quase toda a sua vida. Aquele crucifixo que ganhara muitos anos antes enquanto buscava algo que pudesse fazer seu coração bater mais rápido, suas mãos suarem. Mas para ele, que com tanto afinco realizou as tarefas e obedeceu aos comandos da igreja, aquela religião a qual seu pai tanto se dedicava era tão vazia quanto seu peito. A verdade é que a existência de um deus era algo demasiadamente complexo e abstrato e Kirei já havia pensando tanto nisso sem chegar a qualquer conclusão que acabou por se tornar algo obsoleto. Era apenas mais uma coisa que Kirei usava com a intenção de cobrir o buraco oco em seu peito. Era o que ele conhecia, era tudo o que tinha no momento mesmo que fosse uma farsa.

Uma torrente de memórias invadia a mente dele, mas não tinha capacidade de classificá-las como felizes ou tristes, porque não fora capaz de conhecer verdadeiramente tais emoções, não fora capaz de conhecer verdadeiramente a si mesmo. Ele podia se lembrar claramente de todas as tentativas que fizera de encontrar algo que servisse de estímulo para despertar alguma emoção dentro dele. Até mesmo se casara. Já havia se passado treze anos desde a mulher que o recebera em seu coração morrera. O motivo pelo qual a escolhera era além de óbvio, ela era uma mulher marcada para morrer. Mesmo que não fosse capaz de amá-la, seria capaz de vê-la agonizando. A única coisa que o surpreendeu foi o quanto aquela mulher fora capaz de lhe amar e o que ela estava disposta a fazer em prol dele. Acreditava que era aquilo que se chamava devoção.

Podia vê-la diante de seus olhos, podia ver o contorno de seu rosto, podia ver a dor em seus olhos e podia ver a agonia em seu sorriso. O sol sob a pele de alabasgro os dedos magros tocando o rosto dele com ternura. E podia ouvir as palavras doces mascarando toda a dor e desespero de estar tão próxima da morte. O gelo do toque dela e o calor de seu sofrimento, ele quase podia sentir sob sua pele naquele momento. E no seu leito de morte a memória dela, da agonia dela lhe aquecia o corpo frio. E ele podia ver seu sorriso enquanto ela lhe oferecia seu amor, sua filha. E o coração dele era uma rocha, recheada de lama negra e sentimentos sujos.

A imagem se formou diante de seus olhos sem que ele esperasse por isso. Lá estava ela, os cabelos desalinhados emoldurando sua face frágil e pálida, enquanto seus olhos transbordavam o amor e a devoção. A mão estendida para ele, o sorriso estampado em seus lábios e a dor atrás dos dentes brancos. Ele segurou a mão sem firmeza, então a outra mão dela pousou sobre a dele, acariciando-a e levando-a até seu rosto, os lábios pálidos e rachados beijando a pele bronzeada ternamente, enquanto os olhos semi-cerrados fitam os nós dos dedos grandes e fortes dele com adoração e melancolia. Kirei apenas a observava com sua expressão estóica, um aperto incomum em seu peito enquanto a observava brincar com seus dedos. O cheiro da grama recém aparada acariciando seu nariz, o vento ameno sob sua pele.

- O que você sente quando o sol bate no seu rosto? - A pergunta escapou dos lábios da mulher, tendo como resposta o cenho franzido do homem. - O que você sente quando minhas mãos tocam o seu rosto?

E Kirei não soube responder, ou apenas não quis. Mas não importava, ela gostava de fazer monólogos. Então ele apenas fazia seu papel e escutava, mesmo que as vezes as palavras se dissipassem com o vento e sua mente se perdesse em seu narcisismo exacerbado. Ele ao menos se dava ao trabalho, ele realmente tentava, mesmo acreditando ser em vão. O toque dela em seu rosto o despertou, fazendo com que ele erguesse os olhos do vazio para fitar o rosto dela que estava tão próximo ao dele. Ele sentia a respiração quente dela contra sua pele, ele sustentava o olhar incessante dela e permanecia imóvel enquanto os lábios dela alcançavam os dele para um beijo casto. Os olhos dela se fecharam, enquanto os dele apenas voltaram a fitar o vazio, os braços caídos ao lado do corpo enquanto uma das mãos dela afagava gentilmente seu rosto.

A lembrança clara e nítida foi então substituída pela escuridão opaca da floresta que protegia o castelo Einzbern, fazendo-o ficar momentaneamente atordoado, o gosto de baunilha brincando em seus lábios. Kirei fechou os olhos, encostando a cabeça na árvore e se perguntando o porquê de coisas banais como essa virem a sua mente quando o fim estava tão próximo. Há dez anos atrás, quando o coração verdadeiro parara de bater com a bala de Kiritsugu, quando morreu pela primeira vez, quando a lama negra preencheu o coração podre que parara de bater, Kirei não viu sua vida passar diante de seus olhos, não reviveu nenhum momento e nem pensou em mais ninguém além de si mesmo. E isso o fazia questionar o que era diferente dessa vez.

Mas não teve tempo suficiente para pensar no motivo, pois logo outra recordação o despiu da escuridão que o consumia. Era mais uma lembrança onde o sol iluminava suas feições rígidas e o rosto frágil de sua esposa. Ela não sorria, sua face agora estava tão magra que ele podia ver cada um de seus ossos saltar de sua pele. E o corpo dela não estava muito diferente, estava fatigado, cansado de todo o tempo que passara se esforçando, cansado de toda a dor, cansado de se sentir cansado. Estavam sentados lado a lado, o corpo dela levemente inclinado sobre o dele, sua cabeça descansava sobre o ombro dele, seus dedos entrelaçados aos dele enquanto observavam o pôr-do-sol.

Estavam apenas na companhia um do outro. Conforme o tempo passava, o diálogo ficava mais raro e quase sempre era a mulher quem o iniciava, de um modo suave e gentil, como se ela sentisse medo de afastá-lo. Ele apenas escolhia se manter calado, o único momento em que ousava iniciar a conversa era quando fazia perguntas sobre o estado de saúde da esposa, isso a fazia acreditar que ele se preocupava com ela. No entanto Kirei apenas se perguntava por quanto tempo ele teria que sustentar aquela farsa. Mas ao pensar sobre o fim, sentia um incômodo pesar em seu peito. Não sabia se era por não ser ele a tirar a vida dela ou porque não haveria mais ninguém que entendesse ele ou tivesse tamanha sede por curá-lo enquanto ela mesma estava tão danificada. Chegava a ser intrigante observar enquanto ela tentava mascarar sua própria dor e ao mesmo tempo salvá-lo das profundezas do desespero. Mas mesmo com todos os seus esforços, ela não fora capaz de preencher o vazio em Kirei.

A memória logo sumiu, sendo substituída pela imagem de sua mulher sobre uma cadeira de rodas, suas pernas agora eram fracas demais para sustentar seu corpo, mas ainda era capaz de se mover. O sol iluminava o rosto da mulher, as feições frágeis e tristes, o cabelo estava desgrenhado e cobria uma parte de seu rosto, porém Kirei ainda era capaz de ver seus olhos, o pesar e a tristeza que neles estava. Assim que ele entrou no campo de visão dela seu rosto se iluminou e seus lábios se curvaram em um sorriso. Ele caminhou até ela, parando em sua frente e então o fitando com o olhar vazio.

- Claudia. - Ele pegou o rosto dela entre suas mãos. Era tão pequeno, pálido e gelado enquanto a sua mão era o completo oposto. - Não há mais nada a ser feito por mim.

- Meu amor... - A voz dela foi cortada, nada do que ela dissesse seria suficiente para impedi-lomde prosseguir com sua decisão.

- Eu preciso tomar responsibilidade por mim mesmo. - Ele levantou o rosto dela para que ela pudesse encará-lo. - Eu vim apenas lhe dizer adeus.

- Não. - Ela disse, a voz calma, baixa, comedida.

As mãos dele se afastaram do rosto dela, então ele se virou com a lembrança dela sobre a cadeira de rodas, o desepero estampado em seus músculos faciais, em seus globos oculares. A imagem oscilou e então sumiu, mas ele sabia que aquele não era o fim da conversa. A dor que espalhava-se pelo seu corpo o acordara de seu devaneio. Afastou a dor e a fraqueza, queria voltar para o mundo onde ela estava. Claudia sempre seria uma santa aos seus olhos, mas agora não passava de uma memória. Uma memória que ele precisava desesperadamente reviver. Havia algo ali, algo nas entrelinhas de sua vida que não fora capaz de ler.

Quando a mulher se formou novamente, a sua frente havia um líquido vermelho e quente ao seu redor e sobre ela. Ele a fitava, um pouco de surpresa em meio ao gelo em seus olhos. Ajoelhou-se na frente dela, cujo corpo estava esparramado pelo chão. Ela caíra da cadeira no desespero para trazê-lo de volta e rastejara até ele. Kirei não conseguia achá-la patética. Ele não podia. Aquela fora a primeira vez que vira beleza nela, em seu corpo esquelético e frágil, em seus olhos cheios de dor e agonia, em sua voz desesperada, em sua ânsia por salvá-lo. O conceito de Kirei era tão distorcido.

Ele segurava uma faca entre os dedos, a mesma que sua esposa usara para abrir um corte em seu pulso. Estavam ambos manchados com o sangue dela. Não era a vida dela que deveria ser tomada. Mas ela sorria, havia esperança e amor em seu sorriso.

- Eu não pude amá-la, Claudia. - Como era cruel da parte dele, dizer tais palavras no leito de morte dela. Entretanto se a machucou, ela nem mesmo demonstrou.

- Não. Você me ama. - Ela afirmou enquanto a luz a cercava, o sorriso sem deixar seus lábios.

E então ela morreu nos braços do homem que fora incapaz de amá-la, acreditando que havia algum amor ali. Kirei só entendeu porque Claudia refutou o que ele disse quando sentiu algo quente correndo por sua bochecha. Ao levar a mão até lá, finalmente percebeu que estava chorando. Entretanto, o que o incomodava era que ela morrera com um doce sorriso em seu rosto, toda dor e agonia sumindo por completo. Foi quando a lembrança começou a ficar opaca e sumir ao horizonte foi que ele percebeu que havia chegado o fim para ele. Kirei fechou os olhos.

- Finalmente entendi. - Murmurou, seus lábios curvando-se antes da escuridão o engolir por completo.

Kotomine Kirei morrera com um sorriso estampado nos lábios.


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Notas finais do capítulo

Então, uma vontade enorme de escrever algo com esses dois surgiu e eu simplesmente não pude ignorar. Passei três dias escrevendo, resultando em vinte páginas no total, que eu revisei várias e várias vezes, reescrevi e cortei partes dela. E então resultou nisso. Posso dizer que gostei muito de escrever Devotion. Espero que também gostem ♥



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