Do céu elas vieram, caindo devagar, calmas. Aterrissavam e escorriam pelo meu rosto como lágrimas; as gotas da chuva nunca me pareceram tão melancólicas como naquele momento. Sem a devida proteção, meu corpo tremia ao vento e a chuva gelada de outono, mas não importava, eu continuava andando sem ao menos ter um destino, caminhando apenas pelo impulso. A madrugada começava a se transformar em manhã, entretanto aquilo não me incomodava. As horas que passei vagando na chuva pelas ruas da cidade de Londres pareciam tão poucas e mesmo assim essas mesmas horas me pareciam infinitas – Uma infinidade de minutos e segundos que se passavam em um instante e que se desenrolavam em eternidades. Aquilo realmente não era bom. Eu precisava de alguma coisa para me cobrir, precisava de um ambiente quente, um banho, um abraço, eu precisava voltar a Baker Street, mas nada era assim tão simples.

Todas aquelas horas andando foram gastas e consumidas pelos mesmos pensamentos e pelas mesmas cenas que era repetidas infinitamente em minha cabeça. Minha mente era uma guerra naquele momento, e o beijo havia sido o estopim para todo aquele terrível conflito interno. Eu sentia meu corpo inteiro colapsando com as memórias daquela cena; nossas mãos juntas, nossos lábios, o calor de nossos corpos tão próximos, o frio na barriga, o desespero e o medo, tudo ali, misturado as crescentes dezenas de perguntas em meu interior.

Eu andava em frustação, corria de raiva e parava olhando o céu que caia em dúvida e eterno questionamento. E mesmo com a emoções embaralhadas, haviam coisas certas em mim, sentimentos concretos que reprimi e escondi por tanto tempo, coisas que há muito estavam esquecidas nas profundezas de meu subconsciente... Meus sentimentos sobre Sherlock.

Eu o amava.

Mas nada era simples, nunca foi. O que me deixava frustrado, o que me irritava profundamente naquela situação, o que me queimava por dentro era não saber o que o detetive sentia, o que se passava na cabeça dele e o que o havia levado a fazer aquilo, aquele beijo de horas atrás.

Naquele momento, muito longe de casa eu resolvi voltar, me virei de repente e comecei a desfazer o caminho que havia feito. E ali, perdido em meus devaneios novamente, mal percebi quando um elegante sedã preto parou ao meu lado.

"Dr. Watson..." A voz frágil e feminina falou. "Dr. Watson, por favor."

Quando acordei de meu transe momentâneo percebi do que se tratava. Meu sangue ferveu só de pensar.

Suspirei tentando me acalmar. "O que Mycroft quer dessa vez?"

Anthea desviou rapidamente os olhos do celular em suas mãos e falou. “Ele quer ter uma rápida conversa com você.” A mulher sorriu e voltou sua atenção ao pequeno aparelho.

“Diga a ele que não é uma boa hora.” Falei em um tom áspero e voltei a andar com os pulsos cerrados. Eu não estava com cabeça para lidar com nada, muito menos Mycroft.

Insistente, o carro me seguiu em baixa velocidade e com minha visão periférica eu podia ver Anthea em seu smartphone mandando mensagens sem parar. Eu só queria ficar sozinho, em paz; se eu encontrasse Mycroft com aquele humor eu não conseguiria evitar de dar um soco na cara dele, e com toda a certeza do mundo, bater em Mycroft Holmes não seria uma boa ideia, então não cedi e continuei andando.

“Creio que seria melhor entrar, Dr. Watson,” ela explicou “Mycroft insiste em falar com você... Agora.”

Parei novamente e assim fez o carro. “Falar sobre o que?” Eu estava me controlando ao máximo.

"Sobre você..." Ela me olhou. "E Sherlock."

Eu me encontrava em um galpão velho e vazio.

A chuva havia diminuído um pouco, mas ali dentro o som da mesma parecia ampliado diversas vezes, contudo eu estava consumido pela raiva e pela impaciência e simplesmente não me importava, tudo o que eu queria era sair dali o mais rápido possível e descontar toda aquela frustração em qualquer outro alguém que não fosse tão importante como Mycroft. Mycroft que jazia em pé em meio ao vazio do lugar com sua expressão de sempre se apoiando seu velho guarda-chuva.

"Veja o que temos aqui… Fico feliz que tenha vindo." O Holmes mais velho falou com um sorriso.

“O que você quer?” Falei pausadamente enquanto ainda me aproximava; ele sabia que eu não estava para conversa.

"Eu? Eu só quero saber o que aconteceu noite passada." E o sorriso dele aumentou, parecendo agora algo um tanto ameaçador.

Senti meu estomago embrulhar em antecipação e me pronunciei com a voz insegura “Nada aconteceu ontem à noite.”

Ainda sorrindo, Mycroft levantou uma sobrancelha e virou um pouco o rosto, ainda mais irônico. “Então porque você saiu de Baker Street me plena madrugada e estava até agora vagando na chuva? Ou melhor, por que Sherlock me ligou?

“Ele fez o que? Sherlock te ligou?” Perguntei impressionado.

"Sim, ele ligou... Estou tão impressionado quanto você.”

"O que ele disse?"

O Governo Britânico desviou o olhar e mirou o chão batendo levemente o guarda-chuva algumas vezes no solo sujo. Eu conheço um Holmes e, com toda certeza, eu podia dizer que Mycroft estava ponderando as palavras, estava completamente hesitante e aquilo me atingiu de uma maneira terrível.

“Muitas coisas aconteceram quando você foi embora de 221b pela primeira vez, John...” Ele me encarou novamente, mas havia dor em seu olhar, havia preocupação. “São coisas que eu não gostaria que se repetissem...”

"O que você quer dizer?"

Ele sorriu triste e falou “Meu querido irmão nunca foi bom em lidar com sentimentos, John, nem os positivos e muito menos os negativos. Sempre tomando decisões drásticas para problemas irrelevantes. Parte disso é minha culpa, admito, entretendo eu me preocupo com Sherlock, eu temo por ele, e quando o assunto é você, meu caro soldado, meu irmão é irracional, dramático, descuidado e louco. Então...”

"Onde você quer chegar com tudo isso, Mycroft?" Perguntei começando a me preocupando ainda mais. "O que aconteceu enquanto eu estava fora?"

"O que quer que tenha acontecido noite passada, John, resolva." O Holmes mais velho agora tinha uma expressão firme e ameaçadora.

"Por que?"

"Para o bem de todos." Ele fez uma pausa. "O meu bem, o seu e principalmente para o bem de Sherlock."

Eu não tinha a menor ideia do que Mycroft estava falando, contudo eu sabia que era algo para me preocupar. Alguma coisa ruim havia acontecido quando me casei e deixei Baker Street e algo ruim também poderia acontecer se não nos entendêssemos logo. Naquele momento o medo me consumiu de tal maneira que eu mal podia pensar direito e a única coisa que eu queria era voltar pra casa.

"Eu vou resolver isso." Falei em meio a um espirro que não pude segurar.

"Ótimo." Ele voltou a sorrir como sempre. "Anthea vai levá-lo a um lugar onde vai poder tomar um banho e trocar essas roupas molhadas. Quero que resolva essa confusão assim que chegar em Baker Street."

"Não se preocupe, eu vou.” Me virei e andei em direção a saída do galpão.

"John…" Ele Me chamou novamente quando haviam apenas alguns metros para a porta.

Me voltei para Mycroft "Sim."

"O que exatamente aconteceu entre você dois?"

Sorri ao tom de curiosidade do Holmes mais velho e respondi. "Nós nos beijamos."

Depois daquilo fiquei virado tempo o suficiente para ver o rosto do homem mais poderoso da Inglaterra se transformar em um misto complexo de surpresa e incredulidade; tal reação era perfeitamente aceitável, mas nem aquele pequeno momento cômico foi o suficiente para aliviar a tensão e o medo que eu sentia. O momento estava próximo e eu sabia que era inevitável, eu teria de enfrentar o que havia acontecido, enfrentar meus sentimento e questionamentos e, principalmente, eu teria que enfrentar Sherlock... Não havia nenhuma outra saída.