Entre Anjos escrita por BernardoAziz


Capítulo 2
A garota com olhos de tempestade




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Dentro da UvA (Universiteit van Amsterdam - Universidade de Masterdã), no Departamento de Física, um jovem observa com fascínio as fotos tiradas por ele mesmo, há poucas horas atrás, de um dos telescópios pertencentes ao observatório da universidade. A imagem era realmente fascinante, já que parecia ter ele conseguido fotografar um meteorito que, segundo cálculos feitos pelo próprio jovem, caíra bem próximo do campus.

Apesar de ainda ser seis da manhã, Samuel já estava acordado por toda aquela madrugada observando os céus à procura de algo, mesmo sem saber o quê. Apenas fazia aquilo atendendo a um grande desejo que, vez por outra, aparecia incontrolavelmente em seu interior. Normalmente ele resistia a esses impulsos, mas sabia que nunca ocorrera dele, seguindo tal pressentimento, não se deparar com algo fascinante para observar. A última vez que sentira algo parecido foi no início do ano passado, quando ainda morava com seus pais no Brasil. Samuel, numa noite super quente de verão, cedeu a uma vontade incontrolável de correr às três da manhã num parque próximo de sua casa e acabou por presenciar no céu uma chuva de meteoritos que durou cerca de trinta segundos. Ele não sabia explicar como conseguia pressentir esses fenômenos, mas sabia que, tanto essa habilidade quanto outra ainda mais espantosa que possuía, eram coisas que não podia contar para outras pessoas por medo de acabar por parecer ridículo ou até mesmo louco.

Fora essas habilidades, Samuel era um jovem aparentemente normal. Era branco, tinha cabelos castanhos e cacheados, olhos também castanhos com grandes cílios que davam a ele uma ar amigável. Desde criança usava óculos e já não se incomodava mais com este acessório. Tinha boa estatura, cerca de 182 centímetros, e uma estrutura corporal condizente com a atividade que mais se dedicara ao longo de sua vida, depois da física e da astronomia, a natação. Possuía ombros largos e músculos definidos, apesar de ainda não conseguir arranjar um tempo livre durante seu mestrado para voltar à pratica deste esporte. Seu rosto era agradável, com um nariz um nariz um pouco longo, uma boca com lábios não muito grossos e dentes impecavelmente brancos. Definitivamente não era o tipo de cara que sentia dificuldade em conseguir uma boa companhia em uma eventual saída noturna com os amigos.

Apesar de estar morando em Amsterdã já há dez meses, ainda sentia um pouco de dificuldade com o holandês preferindo comunicar-se em inglês e, algumas vezes, acabava por usar o velho e habitual português para esbravejar uns bons palavrões quando se irritava excessivamente com alguns companheiros de sua turma de mestrado, o que lhe poupava dores de cabeça por ser o único que entendia tal idioma naquele lugar.

Havia escolhido fazer seu mestrado em outro país para conhecer outras culturas e também para ficar um período longe do Brasil e de uma pessoa que definitivamente ele queria esquecer. Samuel era ruim em lidar com sentimentos e isso já havia lhe custado alguns bons relacionamentos. Mas seu último rompimento, e o vazio deixado por Vanessa, foi bastante doloroso para ele, e também preponderante para sua decisão de ir morar na Holanda.

Agora ele passava seus dias mergulhado em estudos. Vez por outra ia ao observatório ficar um tempo observando o céu, algo que ele sempre fizera desde a sua infância. Era difícil para ele explicar, mas Samuel sentia-se como parte daquele imenso céu estrelado e algumas vezes chegava a sonhar com outros planetas e galáxias e com seres feitos de um material bem mais volúvel que o nosso, quase como espectros. Apesar de todas essas sensações estranhas que sentia, e provavelmente pelo sentimento de frustração em não conseguir explicá-las, ele tornou-se uma pessoa altamente cética e materialista. Bem diferente de sua mãe que, mesmo sem frequentar nenhuma comunidade religiosa, mostrava-se uma pessoa crédula das coisas sobrenaturais e metafísicas.

Aquela era a manhã de uma sexta-feira, e horas atrás Samuel acabara sentindo novamente aquela sensação que tanto o incomodava, mas que ele não conseguia livrar-se por mais que tentasse. E, por ter cedido àquele sentimento, é que agora estava a observar várias fotos curiosas que tirara do tal meteorito. Muitas das fotos foram tiradas com uma impressionante nitidez e, exatamente por isso, eram fotos merecedoras de sua maior atenção. Por mais que ele resistisse a tais pensamentos, que para ele mais pareciam devaneios, as tais fotos do meteorito, ao serem observadas com um generoso zoom, davam a impressão de tratarem-se não de uma rocha, mas sim de uma silhueta humana que, em queda livre, dirigia-se ao solo terrestre numa velocidade impressionante. Lógico que ele se negava até mesmo a concordar com tal semelhança, quanto mais a mostrar as fotos para outra pessoa. Aqueles eram pensamentos ridículos que ele preferia ignorar. Apesar de todo seu ceticismo, preferiu guardar as fotos e suas curiosas impressões apenas para si.

Agora já estava chegando o horário de início das aulas e ainda teria que comer alguma coisa de café da manhã para só depois começar seu pesado dia de estudos naquela universidade. Rapidamente vestiu seu casaco, colocou seus óculos e foi ao restaurante do campus atrás de um quente e amargo copo de café expresso.

******

Onze horas da manhã e Samuel encontra-se na biblioteca à procura de mais livros de física moderna sobre antimatéria para uma pesquisa quando o professor de astronomia Arthur Michels, responsável pelo observatório da UvA, entra no prédio à sua procura, ao seu lado está o reitor da universidade, o Prof. Dr. Ivo Rensenbrink. O rapaz percebe que ambos esboçam certo alívio ao encontrá-lo.

– Enfim conseguimos encontrá-lo, meu rapaz! - fala Michels com um sorriso no rosto. - Fomos contatados pelo órgão do governo que faz pesquisas espaciais, o SRON, para que forneçamos material sobre a queda de um meteorito que caiu nas proximidades de nosso campus nessa madrugada. Como você pediu-me para ficar toda essa noite fazendo observações, tenho esperanças que tenha registrado esse fenômeno. Estou correto?

– Bem, Prof. Michels, consegui visualizar sim o momento da queda do meteorito, mas infelizmente não consegui registrar nada. A câmera instalada no telescópio que usava no momento estava sem filme e acabei perdendo a oportunidade de fotografá-lo. - respondeu Samuel sem entender qual importância poderia ter aquele pequeno meteorito para o SRON.

– Mas como pode isso?! - esbravejou o reitor. - Nosso observatório ainda utiliza câmeras analógicas!?

– Bem, Prof. Rensenbrink, nem todos o telescópios de nosso observatório possuem câmeras digitais e, para o seu conhecimento, sou usuário das câmeras analógicas e até as prefiro em detrimento das digitais. - explicou o Prof. Michels.

– Pois então agora o senhor faça o favor de dar as desculpas à jovem pesquisadora do SRON que veio aqui procurar pelo material de nosso observatório. Eu me recuso a ter que dar uma desculpa dessas! - o Prof. Rensenbrink continuava inconformado.

– Ao menos você poderia nos acompanhar para conversar com a jovem do SRON a fim de tentar contribuir com algo que seja fruto da sua observação, caro Samuel? - solicitou cordialmente o Prof. Michels. Ele e Samuel eram amigos e conversavam frequentemente sobre astronomia.

– Sim, claro! Ficarei feliz em ser útil para a universidade. - respondeu Samuel que tentava ajudar seu amigo a sair sem maiores problemas daquela situação.

Samuel mentia sobre não ter conseguido registros do meteorito, já que conseguira boas fotos. Não entendia porquê, mas alguma coisa lhe dizia para não revelar aquelas fotos para qualquer pessoa. Por isso mesmo a mentira. E ainda convencido disto foi ele ao encontro da pesquisadora do SRON que também interessara-se por aquela rocha do espaço.

Em menos de dez minutos já estavam os dois, Samuel e o Prof. Michels, no observatório esperando que Rensenbrink chegasse com a tal pesquisadora do SRON para que ela pudesse fazer as suas perguntas.

Em pouco tempo os dois que faltavam no ressinto entraram no observatório. A impressão de encantamento foi impossível de ocultar do rosto de Samuel assim que a jovem e bela moça adentrou o hall do observatório acompanhada do Prof. Rensenbrink. Ela curiosamente parecia ser muito jovem para alguém que já fosse pesquisadora de um conceituado e importante órgão do governo. Aparentav1a ter uns 17 anos de idade, foi esta a impressão de Samuel. Tinha uma pele bem alva, seus cabelos eram longos, quase chegando à altura de sua cintura, e eram negros e bem ondulados. Tinha uma passada suave e caminhava com extrema elegância e altivez como se fosse descendente de alguma linhagem nobre. Usava uma camisa cor caqui de manga longa, justa ao corpo, e uma calça comprida da mesma cor, também colada, que dava aos outros a chance de perceber que ela possuía um corpo em ótima forma como que moldado por anos de atividades esportivas. Seu rosto era nada menos que angelical. Parecia ter sido pintado por algum mestre da renascença. Tinha uma face ovalada com um delicado e pequeno nariz, uma grande e carnuda boca e proeminentes e rosadas maças do rosto. Mas o que mais chamou a atenção de Samuel naquela garota, o que realmente o encantou em meio a toda aquela beleza foram os seus olhos. Aquela garota tinha lindos e profundos olhos de cor acinzentada com longos cílios que convidavam qualquer um a se perder em seu interior. Eram estranhamente belos e amedrontadores, para ele eram “olhos de tempestade”.

Logo a moça estava parada à frente de Samuel. Rensenbrink tratou logo de apresentá-la ao jovem rapaz que continuava como que encantado observando-a:

– Bem, Srta. Tânia, este é o Sr. Mendonça, Samuel Mendonça, aluno de mestrado em física nuclear aqui da UvA. Era ele quem estava fazendo observações ontem quando da queda do meteorito que agora você está procurando.

– Prazer, Sr. Mendonça. - falou a moça que possuía uma voz também suave e encantadora. - Espero que tenha conseguido boas imagens do meteorito. Estou ansiosa para ver suas fotos. - ela sorriu graciosamente.

– Bem, - intrometeu-se Michels. - infelizmente o jovem Samuel não conseguiu registrar nada por falta de filme fotográfico na câmera do telescópio que ele estava a utilizar.

– É verdade, Srta. Tânia, - enfim Samuel conseguiu falar. - apesar de presenciar o fenômeno, não consegui registrá-lo. Fiquei bastante chateado com o ocorrido, mas ficarei feliz em ajudar se desejar me fazer alguma pergunta.

– Na verdade eu gostaria sim. - respondeu ela. - Mas, como são várias perguntas, creio que seria melhor se procurássemos um local mais confortável para conversar, não é verdade?

– Ah, claro! Tem uma sala de estar aqui no observatório que poderemos utilizar se preferir. - Samuel não conseguia esconder o seu nervosismo na presença da moça.

– Pois bem, já que não somos mais necessários e, pelo que me parece, a conversa será demorada, eu e o Prof. Michels iremos prosseguir com nossas atividades. Peço somente que a senhorita me procure no final de sua entrevista para que eu possa lhe mostrar o resto das instalações de nossa universidade, se assim lhe convier. - ofereceu o Prof. Rensenbrink.

– Oh, claro, seria um prazer, professor! Assim que terminar com o Sr. Mendonça, irei procurá-lo.

Assim foram os dois jovens para a sala de estar do observatório enquanto os dois senhores partiram para sua ocupada rotina de trabalho. Samuel continuava nervoso na presença da garota que sentou-se lentamente em uma poltrona logo à frente da que ele sentara. Suas pernas balançavam num ritmo nervoso e, tentando acalmar-se, ele não parava de balbuciar consigo mesmo em português, coisas do tipo: Deixa de ser idiota, ela é linda, mas não morde. Se acalme, homem. Senão ela vai achar que você é um nerd tarado e babaca.

A garota logo começou a entrevista:

– Então, conseguiu ter uma boa visualização do objeto? - começou amigavelmente a jovem.

– Sim, tive uma posição privilegiada por estar próximo ao local da queda.

– E teve alguma impressão peculiar sobre o objeto observado? Pôde notar algo de interessante ou até mesmo impressionante a cerca da natureza do objeto que caiu?

– Na verdade não tive nenhuma. Nada de mais, tratava-se de um meteorito como outro qualquer.

– Mas é de se estranhar que você não tenha checado seu equipamento antes de iniciar sua atividade de observação. É de praxe fazer a conferência do equipamento. Tem certeza que não conseguiu nenhum registro daquele objeto que caiu próximo aqui do campus? Você pode confiar em mim, Samuel. - enfim ela o tratava pelo primeiro nome. - Trabalho em uma instituição séria e farei sigilo com o que for conversado aqui. - seus olhos, fixos nele, pareciam querer penetrar-lhe a mente.

Ele pensou bem por alguns segundos antes de respondê-la:

– Na verdade, eu perdi o fenômeno, sabe? Acabei dormindo e fiquei constrangido de falar uma coisa dessas para o reitor da universidade. Eu não vi nada, infelizmente não vou poder ajudá-la como você queria.

Ele suava frio enquanto mentia descaradamente. Não sabia porque fazia aquilo, mas não queria comentar sobre suas impressões a cerca daquele meteorito. Na verdade tinha receio do que levara alguém do SRON até ele para fazer tais perguntas.

Vendo que não iria conseguir nada daquele jeito, a jovem fechou seu semblante e, para espanto de Samuel, começou a falar com ele em claro e perfeito português:

– Vamos parar com essas mentiras ridículas, Samuel, e vamos direto ao ponto! Onde estão as fotos que você tirou ontem? Essas imagens serão muito úteis em minha procura e não tenho tempo pra perder com você! - ela estava visivelmente irritada. - Vamos, desembucha, garoto!

Enquanto ela falava, Samuel notou que dentro de seus olhos, no interior das suas íris acinzentadas, algo movimentava-se em espiral, parecendo um redemoinho, ou melhor, parecendo uma intensa e amedrontadora tempestade.


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