Pure Imagination escrita por Sweet Death, SaltedCaramel


Capítulo 26
I crave for tangerines and end up taking a guy hostage


Notas iniciais do capítulo

Heeeey! Tem alguém por aqui ainda?
Um mol de desculpas não seria suficiente pela demora. Como expliquei em Bad Boy, esse último ano fiz cursinho (e provavelmente terei que fazer esse ano novamente...) e foi a pior experiência da minha vida. Nunca me senti tão mal quanto esse ano. Agradeço apenas pelas pessoas maravilhosas que conheci, porque sério...pior coisa. Estudava das 7 da manhã às 20hrs pelo menos e me sentia um completo robô. Já expressei minha opinião sobre essa experiência em Bad Boy, mas acho que isso resume bem como me sinto sobre.
Enfim, estou tentando voltar a escrever, e tive dificuldade com esse capítulo, porque não tinha certeza se algumas coisas pequenas já haviam sido reveladas, então tive que dar uma rápida relida nos últimos capítulos...
Ah, como sempre, eu tentei dar uma relida, mas erros sempre escapam, então por favor me avisem caso tenha algum!!!
Boa leitura! o/



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Olha, já estava claro que não seria um bom dia.

Era um dia e uma hora terrível para descer ao metrô. Motivo pelo qual eu, obviamente, estava fazendo exatamente isso.

                Apesar de odiar por vezes o contato humano e as multidões, não podia negar que me consolava o fato de que nas cidades grandes as pessoas que a compunham tinham sua própria pressa para combater. Assim, estavam ocupados demais em se ocupar e não tinham tempo para me notar, pelo menos não na minha frente.

                Mesmo no calor, coloquei um capuz, meu modo de dizer que não queria companhia nem simpatia. Nunca, no caso. Principalmente de estranhos, com os quais nunca sabia como agir ainda que por vezes falassem “Não se preocupe, sinta-se em casa”, o que aumentava as minhas preocupações. Quer dizer, e se em casa eu fizesse algo completamente fora do normal e não soubesse que era tão estranho assim? Eles certamente perceberiam e pensariam seriamente em retirar o que antes haviam me dito.

                Ok, eu não estava na casa de um estranho, mas estava cercado por eles. Empurrando-me para entrar no vagão e não serem deixados para trás, acotovelando-me para encaixarem-se em um bom lugar e então inclinando-se para lá e para cá num ritmo ditado pelo trem.

                Estava realmente calor. Todo aquele contato humano indesejado, o ar condicionado obviamente quebrado, o ar úmido da massa quente. Eu me sentia claustrofóbico por não ter espaço para respirar e temia que fosse ter um colapso imediato a qualquer momento, o que não seria muito oportuno, por motivos óbvios, mas também porque eu mesmo tinha insistido para Mana que conseguiria fazer isso sozinho.

                Não seria por sovacos fedorentos pingando no meu rosto que eu desistiria tão facilmente! Provavelmente. Talvez. Possivelmente.

                Não sei, era verdadeiramente sufocante. Talvez eu desistisse.

                Graças a bondade do universo e a um claro mal planejamento, grande parte dos passageiros desceram em uma das estações para baldeação, o que me deixou espaço suficiente para pelo menos respirar em paz, apesar de não encontrar ainda os raros lugares para sentar. Contentei-me com o espaço ao lado das portas para me encostar e com a falsa companhia do celular (que nem mesmo conectava-se a internet por lá) para me tranquilizar.

                Passaram duas estações antes que eu percebesse.

                Foram as risadas (e as tentativas em disfarça-las) que me fizeram notar o que acontecia.

                Noticiado pelo barulho incomum numa viagem silenciosa, voltei-me aos adolescentes que estavam próximos a porta oposta. Assim que meu olhar discreto encontrou o deles, os garotos e garotas tentaram esconder o rosto rapidamente para disfarçar os olhares intrigados que eles lançavam a mim.

                Eu poderia ter articulado muitos pensamentos, mas tudo que eu pensei foi algo como “Ah, não”. Duas palavras que simplesmente muito bem resumiam o que eu sentia: uma vontade incomum de socar o botão que parava o trem para poder descer.

                Quer saber? Abre as portas só mesmo que eu já desço sozinho, muito obrigado.

                Tentei me distrair novamente com um álbum ridículo no celular, mas toda vez que meu olhar saía da região deles para voltar-se a minha, as risadas voltavam, para cessarem quando eu olhava em sua direção.

                Na quinta vez, ficou claro que o motivo da graça era a minha aparência, o que me deixou desconfortável. Fazia um bom tempo desde que eu sofri esse tipo de gozação pública e o fato de eu estar desconfortável me deixava ainda mais envergonhado.

                Naquele momento, muitas outras pessoas do trem já entendiam o que estava acontecendo e, apesar de observarem ocasionalmente, estavam mais incomodados com a própria vergonha que com a situação, então não passavam da monitoração, do interesse.

                Seria egoísmo? Nem saberia.

                Não suportando aquela sensação ruim que entalava na garganta (por palavras que nunca iriam passar de pensamentos malcriados) e enrubescia meu rosto e meu peito apertado, encolhi-me até chegar minha estação. Dei minhas costas a eles, como quem se prepara para descer em uma das portas, sendo assombrado pelo meu reflexo patético que aparecia no vidro, julgando-me do lado de fora do trem.

                Não desci rápido o suficiente para não ouvir risadas livres e altas enquanto subia as escadas.

—X-

oOo

—X-

Quando acordei, Kanda estava na varanda. Não devia ser tarde, a luz lá fora não era intensa, o ar era de brisas leves e frias.

                Demorei a me mover, sentindo os olhos inchados e, provavelmente, vermelhos. Acho que não poderia disfarçar e culpar a maconha, poderia? Ainda se eu pudesse pelo menos abrir um sorriso mais sincero e bonito, talvez conseguisse enrolar (Rá!) todas essas emoções e culpar as drogas.

                Apenas tirei meu rosto de debaixo do cobertor e me enrolei ainda mais, como um burrito naquele calor. Da minha posição, dava para ver Kanda encostado na varanda, observando, quem sabe, o sol nascer ou algum assalto a mão armada (porque isso parece mais o tipo de coisa que ele gostaria de observar).

                Era estranho. Ele parecia ter uma serenidade que só se encaixava em seu rosto quando ele estava meditando (e aposto que para atingir tal tranquilidade ele repetia na cabeça imagens dele mesmo cortando todo mundo da Ordem com a espada). Era muito mais fácil vislumbrá-lo naquela imagem que tinha no mangá. Inalcançável. Inumano.

                Aqui, o que eu via era apenas um homem observando a vida passar.

                Quer dizer, era um homem que carregava uma espada feita de um material místico único cuja origem era supostamente ligada a uma força divina. Mas, ainda assim, um homem.

                Kanda tinha certamente se livrado da camisa para dormir, porque agora não usava mais que a calça e nem mesmo portava a tão amada espada.

                Sabe? Esse é o tipo de cena que eu nunca pensei que existiria. Aqueles pedaços de história que não aparecem no mangá e que por vezes nos questionamos.

                Aquele era um Kanda que não era lutador ou exorcista. Era apenas... Yuu Kanda.

                Não pude deixar de notar como suas costas delineavam-se em músculos que podiam ser atribuídos a longos dias de luta contra demônios criados de almas humanas, seu cabelo longo e sem esforços caía pelos ombros e, apesar de liso e arrumado, despontavam alguns fios que indicavam que não havia tanto tempo desde de que ele havia acordado.

                Era impossível ignorar a pontada que afundava meu peito, mas eu tentei o máximo. Desse problema eu não precisava. Não precisava mesmo. Muito obrigado pela oportunidade, mas agora pode se retirar.

                Cansado da posição em que estava, tentei esticar as pernas enroladas ainda no burrito, o que fez um barulho na cama que Kanda com certeza escutou.

                -Acordou?- perguntou, virando-se em minha direção. Não havia um pingo de sono em seu rosto e agora eu conseguia ver seu abdômen bem modelado e sua tatuagem no peito.

                Espreguicei-me, sentindo como o ato pareceu me fazer tão bem.

                Tinha uma resposta malcriada e sarcástica na ponta da língua, mas tão bem a construía que deixei-a ficar quieta. Não tinha forças para vocaliza-la, então ela morreu antes de ver o mundo.

                Que ironia.

                Não se incomodando com a falta de respostas, até porque era uma resposta plenamente óbvia, Kanda saiu da varanda e atravessou o quarto para sua cama, de onde pegou a camisa que vestiu. Quando achei que ele fosse armar-se com sua espada e sair, ele contornou o caminho que tinha feito e sentou-se ao pé da minha cama, fazendo-me subitamente pular de susto e acabar sentado.

                Só nessa posição senti realmente o quão acabado estava, o quanto meus ombros pesavam e minha cabeça doía de tanto chorar. Ainda assim, um pouco de sua coxa acabava por tocar a ponta de meus pés e isso foi o bastante para fazer o rubor subir pelo meu pescoço.

                Allen Walker, recomponha-se. Não é porque ele mostrou um tiquinho de pena de você que subitamente ele não sente mais que responsabilidade e desgosto por você.

                Além disso, pensa em Lenalee. Não era por ela que você esperava sentir tudo isso?

                Ah, não.

                Nós prometemos aquietar isso. Já era problema o suficiente estar morrendo e ter essa aparência estranha. Exceto que agora eu não estou morrendo? Certo?

                Então eu poderia...lidar com esses sentimentos?

                Ué, por que eu estou falando de mim mesmo em terceira pessoa? Dentro da minha cabeça?

                Uma pontada no cérebro me fez esfregar a mão na testa, claramente não suportando aquela dor intrusa.

                Dos olhos meio cerrados, vi apenas Kanda, que olhava diretamente para mim como se não tivesse ameaçado me matar quinhentas vezes, revirar os olhos. Ah, agora sim isso era um ato costumeiro seu.

                Ele novamente se levantou, fuçando na sacola que tinha trazido ontem à noite e me jogando...um pacote de aspirinas.

                Peguei aquilo como se fosse um elemento radioativo e eu fosse a Marie Curie.

                Enquanto isso, o moreno fuçava no frigobar ao canto do quarto (é, aquela mini geladeira que nunca nos atrevemos a olhar porque o que quer que tenha lá dentro é caro demais para pagar), somente voltando-se a mim, a pessoa estática, para me jogar uma garrafa de água como se eu fosse capaz de usar meus reflexos rápidos para pega-la. Não, eu não tinha reflexos rápidos. Sim, eu levei uma garrafada gelada no rosto.

                Tão anestesiado pela simplicidade do gesto que nem ao mesmo pensei em rebatê-lo, observei-o com olhos assustados enquanto ele, irreverente como sempre, cruzou os braços e gesticulou com a cabeça para os objetos jogados a mim.

                Com pressa, coloquei uma aspirina destacada na boca e bebi a água da garrafa para ajudar a empurrá-la no grudento escorregador do sistema digestório. Engoli com bastante dificuldade. Assim como engoli o sentimento maldoso por Kanda ter movido para longe de onde meu pé antes o tocava.

                Ainda com a aspirina presa na garganta e tentando evitar crises de tosse que a fizessem sair voando até o outro lado do quarto, dei-lhe um polegar de vitória, o que lhe pareceu o bastante porque ele se moveu para pegar as chaves do quarto.

                -Volte a dormir- falou. Ou melhor, demandou, assim que começou a sair. Esperei na mesma posição para ele bater a porta quando estivesse no corredor, mas nada ouvi.

                Quando arrisquei um olhar em sua direção, vi que ele nem havia saído do quarto. Segurava a porta como quem iria sair, mas foi impedido. Kanda ergueu as sobrancelhas, como quem diz (ameaçadoramente, que fique claro) “ O que foi que eu disse?”.

                Isso me fez deitar novamente em um piscar de olhos, meio atrapalhado por estar me enroscando nos cobertores, encolhendo-me em minha posição preferida para entrar na terra dos sonhos.

                Ouvi a porta fechar em um clique quieto e apaguei.

—X-

oOo

—X-

                Da segunda vez que acordei, foi com Kanda andando pelo quarto. Seus passos eram quietos, como eu imaginaria de alguém que é praticamente um samurai em vida real, porém ainda assim acabei por despertar, agora mais revigorado pelo tempo extra de sono.

                Dessa vez, sentei prontamente, chamando a atenção dele que estava a procurar os arquivos da missão, o que me estranhou. Quando eu lia o mangá, tinha-o por alguém que se enfiava de cabeça na missão sem quase nenhum aviso, agora via-o folhear por detalhes.

                Notei que estava descalço e eu não queria dizer que pés eram atraentes, porque pés são estranhos e nojentos. Se eu visse os pés do Brad Pitt ou da Lupita Nyong’o, eu certamente os acharia ridículos. Ainda assim, aqui estava eu, pensando em como nunca tinha visto aqueles pés e que aqueles eram definitivamente os pés mais bonitos que eu esperaria ver.

                Aposto que o Sr. Perfeito nem mesmo tinha chulé.

                Aposto que seus pés cheiram a algo ridículo, como...como rosas ou...ou... flor de lótus. E que ao invés de micoses nauseantes ele tem ramos de videira crescendo dali ou algo do tipo.

                Que idiota.

                Ele certamente deveria usar menos aquelas botas quente da Ordem e andar mais descalço. Você sabe, para sentir a natureza fluir pelos pés e esse tipo de coisa.

                Meu pai falava coisas do tipo, era quase uma ordem tirar o sapato quando chegava em casa e apenas no frio me deixava cobrir os dedos com meias.

                Uma dor me assolou novamente. Dessa vez não na cabeça, mas no peito.

                Essa uma aspirina não curaria.

                Kanda largou os arquivos de seu jeito mais delicado (que era nem um pouco delicado. Ok, na verdade ele tacou os papéis sobre a cômoda) e pegou um prato de comida que jazia quieto na cômoda (uma montanha de comida, se bem observei). Imaginei que fosse sentar-se para comer, no entanto apenas largou-o no meu colo, não derrubando nem mais que uma fatia fina de queijo.

                Olhei para ele, esperando algo como uma ordem que garantisse o que parecia óbvio. Meu estômago roncou tremendamente e esperei que ele não tivesse notado, mas pela sua careta ele claramente tinha ouvido em alto e bom som.

                -Come logo- disse, ou melhor, ordenou. As palavras, por mais simples, demorando a cair na minha mente, porém assim que o fizeram, encarei o prato repleto de pães recheados, ovos mexidos, frios diversos e frutas (o que me indicava que ele não fazia ideia do que me trazer, então passou a mão pelo buffet inteiro como garantia).

                -Não estou com fome- disse, a voz rouca e a garganta travada. Estendi em sua direção a comida intocada, porém eu, diferente dele, acabei por derrubar alguns pães que rolaram pela cama direto ao chão.

                Era verdade. Eu não sentia a fome que meu estômago agora garantia ter. O que eu sentia, e isso era claro pela súbita palidez em meu rosto, era ânsia.

                Eu sabia que se eu colocasse qualquer coisa na minha boca, ela não desceria e se o fizesse, voltaria em poucos segundos.

                Kanda, não pareceu se intimidar pela minha expressão desgostosa e acabada, talvez porque já estivesse acostumado com esse meu rosto, nem ao menos moveu-se para pegar o prato de volta.

                -E eu perguntei?- foi sua resposta- Eu disse: come logo. Tsc. Você não vai conseguir se manter em pé e muito menos lutar- ele pareceu ponderar por dois segundos, o que para Kanda deveria ser pensamento suficiente e abundante- Não que você consiga lutar- completou- Só...come logo. Não quero você estragando uma missão fácil porque você parece...

                -...morto?- completei, observando as camadas de comida montadas com cautela. Não duvidava que Kanda tivesse pego todo o queijo disponível para café da manhã, porque certamente havia muito.

                Quando olhei para o silêncio do moreno, que durou por bons e longos segundos, vi um sorriso descansando em seu rosto. Não era daqueles tímidos, nem do tipo que ele tem quando está prestes a rasgar o pescoço de alguém. Era...um sorriso. Meio enferrujado, mas era.

                Sem pensar, esqueci por um momento em que situação estava e deixei-me carregar por meu próprio sorriso impensado. Ri escondido, olhando para o meio entre minhas pernas e até levei um pedaço de pão recheado a boca que mastiguei sem gosto, porém ainda assim engoli.

                Ainda que não tivesse o apetite como antes tinha, comi. Restaram sobras demais na montanha nutritiva, que imaginei servirem para mais tarde.

                Enquanto eu mastigava pedaços, levando um bom tempo na boca seca, Kanda vestia-se no uniforme completo de Exorcista, desamarrando o cabelo para amarrar novamente. Admirava-me vê-lo fazer tal coisa com maestria e automatização, porque meu cabelo, apesar de não curto, mal chegava aos ombros.

                Mana, por outro lado, tinha também cabelos compridos e costumava amarrá-los, principalmente quando ia cozinhar ou trabalhar. Muitos o encaravam com mau olhar, mas sua personalidade era tão radiante e perseverante, ninguém conseguia manter-se firme contra meu pai.

                Eu, apesar disso, conseguia manter todos contra mim em qualquer situação...

                O coração apertou novamente. Larguei o prato ao meu lado e lutei para que a comida que antes mastigava descesse goela abaixo, contra a ânsia.

                O moreno jogou os arquivos bagunçados numa gaveta vazia do pequeno armário, talvez nunca mais os encontrasse pela aleatoriedade da organização, examinou-me de cima a baixo, olhou o prato agora largado, enquanto mexia firmemente no golem de comunicação que sempre o seguia.

                -Você pode ir?- perguntou, olhando para meu estado penoso. Mas eu sabia que ele queria formular algo como “você consegue ir?”, porque era eu que sentia as pernas como maria mole, uma enxaqueca ardendo no topo da cabeça, olhos inchados e secos.

Comecei a formular e gesticular um “não”, porque era a realidade. Ou melhor, porque eu não queria ir.

                Todo esse mundo agora parecia plástico. Como se eu agora torcesse para ser. Talvez fosse uma alucinação pré-morte e eu fosse acordar do outro lado, no vazio. Eu sentia raiva desse universo, que me tirava o que mais queria, e, mais que isso, sentia raiva de mim mesmo. Pelo egoísmo. Pelo gosto.

                Criei um mundo num delírio de morte e olha no que deu.

                No entanto, abri os olhos. Conotativamente, porque meus olhos já estavam abertos, eu estava acordado. Eu não tinha outra opção senão dar meia volta e voltar para o mundo de onde tinha vindo. Uma realidade em que Mana estava vivo...mas eu estaria morto.

                -Posso- eu respondi, palavras firmes, porém nem tão confiantes.

                Só quando comecei a levantar, senti realmente a extensão da minha fadiga. Meus pés descalços no chão chocaram-se com o piso gelado, meus joelhos estalaram e minhas pernas balançavam sem equilíbrio. Mal conseguia mexer os braços, pareciam dormentes e inúteis, descansando aos meus lados.

                Ainda assim, respirei fundo, exercitei o pescoço e apontei para a porta, mais ávido de rosto, contudo nem um pouco de espírito.

                -Vamos nessa- falei, palavras que teriam feito muito mais efeito se eu não tivesse tropeçado nos lençóis que acabaram enrolados nos meus pés pelo chão. Evitei cair, mas ainda assim foi decerto uma completa ridicularização do universo fazer-me parar para chacoalhar os panos.

                No fim, foi Kanda que conseguiu me livrar dos lençóis. Puxou-os com tanta violência e praticidade que me desequilibrei e caí de volta na cama, balançando de cima a baixo no colchão.

                Antes que pudesse questionar a atitude, fui atingido no rosto pelo meu próprio uniforme. Cheirava a suor, couro sintético e até sangue (!), impregnando minha mente com memórias confusas que deviam pertencer a Austin e a uma história que antes eu tanto gostava.

                Tirei aquilo do meu rosto com certa agressividade. Por vezes, lembrar gerava uma dor de cabeça que eu no momento não precisava.

                Tudo que eu precisava era chegar ao fim desse mundo, para reverter meu caminho. E, para isso, tinha quase certeza de que deveria ao menos terminar essa história que, a propósito, estava presa na minha cabeça.

                E se para isso precisava me levantar daquela cama confortável e vestir aquela roupa desconfortável, eu faria. Pelo simples e normal propósito de solucionar esse problema, eu precisava.

                Mas precisava fazer sozinho.

                -Hã...Kanda? Eu preciso...Eu preciso de... eu preciso de tangerinas.

                Ele, que estava tentando realizar algo com seu golem, olhou para mim como se eu tivesse crescido uma terceira cabeça.

                -...tangerinas?- ele repetiu, como se esperasse que eu resolvesse pular da cama em um mortal bem feito e começar a girar como um ventilador gritando que São Sebastião estava voltando em um avião.

                -É...Elas são boas para...para as dores de cabeça.

                Ele não pareceu digerir bem a explicação, o golem agora completamente esquecido.

                -São?- perguntou, cético e suspeito- Tem certeza?

                Tinha quase total certeza. Quase total certeza de que era mentira.

                Tentando aparentar confiança, o que não era meu forte, posicionei minhas mãos no quadril, as palavras vergonhosamente engasgando-se para sair em uma frase convincente.

                -Hã... Qu-quem que passou grande parte da vida no hospitais?- formulei, olhando-o com o que eu acreditava ser meu melhor olhar de segurança. Não era, eu sabia. Pelo menos deve ter servido para deixa-lo desconfortável.

                Seguiu-se um silêncio desconfortável, dificultando a manutenção da minha postura forçada que começava a ruir sob o incômodo. Graças a talvez o desconhecimento completo de Kanda sobre técnicas medicinais e minha vergonhosa tentativa de confronto, aquilo pareceu convencê-lo.

                -Tsc- ele não parecia nem um pouco contente em seguir um pedido- Vou ver se encontro na rua.

                Observei-o coletar seus pertences, torcendo para que ele não virasse e falasse algo como “Rá! Mentira! Acha mesmo que vou deixar você sozinho para agir pelas minhas costas?”, mas isso parecia ser um pensamento distante e que mal lhe ocorria, porque Kanda não o fez. Meu ponto máximo de terror foi o olhar cético que ele me lançou enquanto fechava a porta, como se estivesse na frente de uma questão sem solução, incrédulo pela malícia dessa existência.

                Ao qual, claro, pus minha melhor máscara de atuação, o que não era muito (na verdade, era bem pouco), e forcei-me a fingir como podia as dores de cabeça que nem tanto eram.

                -E-elas não podem ser maiores que a cabeça de um shitzu filhote!- pedi, detalhe ao qual não recebi resposta. Estava apenas tentando confundi-lo mais.

                Não me tranquilizei nem quando ouvi a porta clicar, fechada enfim. Em passos leves e ligeiros, consegui chegar até ela para encostar o lado de meu rosto e tentar ouvir o que acontecia lá fora. Ouvi passos distanciando, porém ainda assim abaixei-me para observar o movimento debaixo da porta, que se provou inexistente.

                Satisfeito, voltei ao lado de minha cama, para tentar me vestir o mais rápido possível. Nem ao menos toquei o sobretudo, meu uniforme. Coloquei apenas uma camiseta, uma calça, um calçado. Roupas que no meu outro universo, eram decerto meu uniforme.

                Eu estava certo de que era disso que eu ´precisava. Menos daqui, mais dali.

                Também não o queria jogando palpites sobre meu corpo. Não que ele fosse me observar caso eu estivesse despido, isso seria óbvio, mas eu não precisava daquela presença no quarto enquanto o fazia.

                Havia hematomas quase esvaecidos e verdes espalhados na pele branca. Tão óbvio contraste, como via no espelho, que pareciam verdadeiras crateras perfurando meu corpo, como poços de água. Muitos deles. Quem sabe a Samara não faz uma visitinha para aumentar minha lista de amigos? Quer dizer, ela já deve conhecer minha auto-estima que está no fundo do poço junto dela.

                Tentei ajeitar o cabelo e o rosto, lembrando que não havia salvação. Eu estava acabado.

                Com apenas pouco dinheiro no bolso, apressei-me a sair do quarto, uma vez que notei que o corredor estava vazio.

                Ainda que meu instinto pedisse para ser rápido e correr, eu tinha que não chamar atenção desnecessária. Por isso, fiquei com um andar estranho, entre o correr e pisar de fininho.

                Quando cheguei a recepção, avistei ninguém mais ninguém menos que Lavi, flertando com a atual recepcionista em movimentos claramente calculados. Quem sabe outro dia eu pediria seus conselhos, mas agora eu realmente queria que ele não percebesse minha saída.

                Andando ainda mais devagar ao passar pelo salão, tentei me esconder atrás de um casal turista que andava mão na mão e caminhavam para a saída, provavelmente para uma caminhada romântica. Tentei me misturar ao andar lado a lado com eles, torcendo para que o ângulo não me revelasse para o exorcista caolho.

                A cada passo, me ajustava, olhando para Lavi, que permanecia entretido e concentrado em sua própria conquista. A cada momento, ele parecia estar mais inclinado sobre o balcão e seu olho verde e intenso não deixava as mínimas dúvidas sobre suas intenções. De minuto em minuto eu o via mostrar com orgulho a rose croix que levava no peito do uniforme. Bom, melhor que ele estivesse assim, investido, me dava um grande espaço para sair.

                Exceto que, grande ironia, a dois passos da porta de saída, ele averteu o olhar que manipulava sobre a moça após um comentário seu (que parecia excessivamente engraçado se tomássemos a reação dela como parâmetro). Lançou sua observação para a porta, exatamente onde eu estava.

                Antes que eu pudesse apressar e fingir não ouvir, ele chamou.

                -Ei, Allen!

                Na dúvida entre sair correndo sem olhar para trás e ficar, acabei parado na porta, um pé para fora outro para dentro. Isso deu tempo o suficiente para Lavi me chamar mais uma vez, deixando-me sem outra opção senão me virar e cumprimenta-lo. Mesmo assim, não movi um centímetro de onde estava.

                -Ei...Lavi- disse, tentando não parecer paranoico enquanto olhava dele para a rua, como se fosse um cativo olhando para o resgate.

                Ele não pareceu notar e se o fez, não ligou.

                -Cadê seu uniforme?- riu- O Yuu não disse que iríamos trabalhar na missão? Eu fiz uma descoberta. Ou...vocês dois estavam muito ocupados para isso?

                Ele e a garota deram risadinhas quando pontuou a palavra. Mas eu estava ocupado demais com meu próprio pânico para me deixar levar pela insinuação. Eu tentei evitar a situação me juntando aos risos, apesar de que meu próprio soou como um garrancho, desbotando-se pelo ambiente, tão falso quanto a promessa de meritocracia no mundo real. Isto é, muito falso.

                -É...eu...Eu ainda não me troquei, tenho que...hã...comprar band-aids.

                Lavi pareceu achar aquilo no mínimo cômico.

                -Band-aids?

                -É- respondi- Considerando o que a gente está enfrentando...é sempre com ter uma caixa.

                O ruivo apertou o olho, como se tentasse calcular o que exatamente eu estava falando.

                Aproveitei esse pequeno momento para retomar a fuga, antes que ele resolvesse começar um interrogatório regado em curiosidade de Bookman.

                -Eu vou nessa, então- disse, cada palavra um passo para a rua- para não atrasar a missão, claro.

                Vi Lavi formular uma despedida, mas tampouco fiquei para ouvir. Já estava na rua, em passos apressados que viraram uma corrida assim que me distanciei o bastante do hotel.

                Com apenas o que tinha no bolso e na mente, corri pelas ruas, sem saber exatamente um destino primeiramente, apenas tentando me livrar do caminho do hotel. Sumir, antes que me encontrassem.

                Ok, eu sei. Parecia um terrível plano, porque talvez fosse. Mas era um plano, mesmo que imprevisto. Mesmo que não fosse, realmente. Ok, eu estava apenas seguindo minha vontade.

                Bem, para começar, eu precisava sair dali, uma parte que eu imagino que você já tenha entendido. Eu não aguentava mais aquilo, uma prisão de liberdade, meticulosamente construída como agrado, uma coisa que deveria apenas pertencer à minha mente.

                Tudo aquilo que eu vivia agora era parte de uma piada extremamente sem graça e completamente mal intencionada. Coisas que ninguém precisaria vivenciar.

                Havia com certeza um motivo para as histórias terem ficado em um papel para mim. Simplesmente não foram feitas para que eu as vivesse, eu estava vivendo a vida de outra pessoa. Uma pessoa com maiores capacidades, experiências e mentalidade. Não eu.

                Não se engane, Mana não estava morto. Mana não pertencia a esse mundo. Ele está seguro no universo de onde vim, enlutado pela minha morte. Provavelmente estaria sentado no sofá, como sempre fazia após o almoço, tentando digerir a comida, enquanto ia de canal em canal até parar onde sempre parava para ver um programa sobre animais selvagens.

                Meu peito se apertava enquanto eu parava de correr. E então parava de andar.

                A respiração pesada, mal percebi o quanto me esforcei. Agradeci por ter tomado a decisão de não vestir aquele pesado uniforme que mais me faria mal nesse calor. Sentei num banco da calçada em frente a um restaurante de esquina e só então entendi o quão pesado me sentia.

                Eu sentia saudades.

                Apesar das más ocorrências, apesar das más palavras e da má saúde. Havia apenas uma coisa da qual sentia uma falta enorme, o bastante para abrir um buraco no peito que quebrava toda a magia do que tinha naquele mundo.

                Aqui, tinha vida, tinha um corpo saudável, tinha até amigos e um objetivo.

                Tinha a possibilidade de ser quem eu sou. Gostar do que eu gosto.

                Aqui, eu não precisava me preocupar em ser alguém que se encaixava decerto em padrões, porque eu não tinha que me preocupar com a decepção de alguém. Não tinha ninguém para se decepcionar.

Mas lá eu tinha Mana.

                Por isso, eu precisava sair daquele lugar. Não tinha espaço para missão alguma, tinha outras coisas para descobrir. Coisas que diziam respeito a mim e meus caminhos.

                Começando pelo Conde e os Noahs e o que tinham que tanto diziam ter.

                Respirei fundo, como raramente fazia, e levantei novamente para começar a andar e me afastar o mais rápido possível. Tudo que eu menos precisava era ser encontrado.

                Justamente o motivo pelo qual, claro, eu fui encontrado.

                Apenas percebi quando senti algo bater nas minhas costas. Com medo de ser algum tipo de arma mortífera, parei para identificar sua composição. Foi então que vi a tangerina rolando aos meus pés.

                Paralisei-me por confusão, porque não é sempre que tangerinas caem em você espontaneamente no meio de uma cidade.

                E então me abateu a realização.

                Quando olhei para trás para identificar sua origem, um Kanda nada amigável vinha em passos furiosos em minha direção. Com uma sacola cheia de tangerinas em uma mão e sua fúria em outra.

                Disparei.

                Corria com tal velocidade que mal podia diferenciar os obstáculos (lê-se pessoas) e com grande frequência desatava a trombar em várias até que pudesse passar.

                Sem tempo para esperar o trânsito de veículos tornar-se favorável, atravessei a rua depressa e torcendo para uma ajuda divina e implorando para que os carros parassem. Saí vivo do outro lado, apenas para ver Kanda pulando pelos automóveis que ousavam ficar em seu caminho, como um grande ninja de filmes de ação.

                Bem, pelo menos atravessei na faixa de pedestres.

                Corri ainda mais rápido, apenas imaginando de que forma ele iria me matar quando pusesse as mãos em mim.

                Com os ocasionais empurrões, conseguia abrir passagem pela calçada estreita e tentar ganhar vantagem. Tinha certeza de que Kanda fazia o mesmo, então nem pensava em imaginar que estava a salvo.

                Tinha que começar a confundi-lo.

                Virei bruscamente em uma esquina qualquer, derrubando uma lata de lixo na curva, porém quando estava a retomar minha velocidade deparei-me com duas velhinhas. Nenhuma delas parecia notar minha pressa, andavam um passo a cada eternidade e conversavam em alto volume, indicando problemas de audição (o claro motivo pelo qual não percebiam a minha comoção e o claro desespero).

                Eu, estava procurando uma brecha no espaço da calçada, mas não encontrava nenhum, era muito estreita. Uma tentava explicar para a outra sobre o preço das frutas de feira e a outra continuava a ouvir “adereço de uma puta cozinheira”, por mais que a pobre velhinha tentasse falar o mais alto possível.

                Ouvi um barulho alto vindo de trás, quando vi que Kanda havia também me seguido por essa esquina e derrubado outra lixeira na curva brusca.

                Chiei de medo, enquanto me desviei para entrar em uma loja qualquer da rua.

                Era uma farmácia, o local mais próximo, e tentei parecer uma pessoa não suspeita enquanto me escondia de prateleira em prateleira. Pensei que talvez ele não fosse me seguir para dentro, evitar locais fechados, mas demonstrei-me novamente errado quando a porta tilintou para indicar um novo cliente e observei o rosto furioso dele escaneando os cantos da loja. Eu é que não queria estar do outro lado desse olhar.

                Com o coração batendo rápido em antecipação, deslizei para baixo, engatinhando pelo chão (notoriamente precisando de limpeza) para me encolher num apoio e diminuir as chances de ser visto.

                Ao meu lado, um funcionário que antes arrumava os produtos na prateleira em que eu estava recostado me observava com plena incerteza de suas escolhas, tendo paralisado sua atividade para observar o pequeno garoto albino que claramente estava fugindo e usando seu ambiente de trabalho para isso.

                Implorei com gestos para que ele não me dedurasse e ele pareceu voltar ao seu trabalho imediatamente, ainda que tivesse lançado um olhar que certamente dedurava minha loucura. Imaginava que estivesse precisando mais do salário do que saber das mais profundas razões ligadas às minhas confusões.

                Naquele momento, eu sabia que ele estava amaldiçoando todas as suas escolhas na vida.

                Os reais clientes pareciam continuar suas compras sem notar a agitação. Por isso, não conseguia muito bem distinguir os passos do exorcista entre os tantos que ouvia passearem pela loja, apenas torcia para ele ter cansado de dedicar suas energias para me encontrar.

                Ainda assim, a tensão apenas crescia. Agora parado, sentia como minha respiração estava pesada e meu coração, frenético. A sensação de que a cada momento Kanda poderia chutar essa prateleira, me cortar em pedacinhos para servir em um churrasco, não me deixava.

                Eu não gostava de churrascos.

                Depois de minutos insuportáveis tentando normalizar minhas funções vitais, criei coragem o bastante para olhar do outro lado da prateleira, no corredor principal.

                Tentando expor minha localização ao mínimo, não deixei mais que o suficiente aparente: os olhos. Quase esmaguei meu rosto contra o recosto tentando não deixar passar mais que a área das olheiras.

                Vi nada. Quer dizer, tinha uma mãe e seu filho carregando uma cestinha de comprar, mas nada de um samurai com sede de sangue, para minha sorte.

                Voltei rapidamente a minha posição anterior, respirando fundo em completo alívio. O mais provável era que ele tenha saído da farmácia, seja por ter desistido da minha existência ou porque tenha achado que eu havia escapado e não poderia perder tempo procurando por ali.

                De qualquer forma, ele não parecia mais estar ali.

                E eu precisava sair o mais rápido possível para me afastar de suas proximidades e desaparecer antes que ele me encontrasse novamente.

                Levantei de onde estava escorado, derrubando alguns pacotes de onde eu estava me apoiando. O funcionário, que ainda estava ali, me olhou feio, mas para isso apenas pude entregar um olhar apologético que não deve ter surtado muito efeito.

                O plano era sair dali rapidamente, atravessar a rua e fazer um caminho completamente aleatório para evitar trombar com alguém que pudesse me impedir. Já estava no meu limite, não sabia se conseguiria correr ainda mais sem ter um colapso.

                (Isso porque meu corpo estava tecnicamente mais saudável.)

                Um plano simples.

                Se eu não tivesse me deparado assim que virei para começar o caminho para a porta com ninguém mais ninguém mesmo que....isso mesmo.

                -Kanda?- mais gaguejei que falei.

                Ok, talvez eu tenha sido precipitado em pensar que ele havia ido. Talvez checado outros corredores. Porém o que importa é que ele continuava ali, e seus olhos não haviam diminuído em fúria enquanto ele se aproximava, dois corredores para o lado.

                Agora sim era hora do desespero.

                Com a noção de que eu estava em um lugar fechado e cheio de obstáculos, não tinha muito espaço para poder correr. E eu acho que lutar contra o Kanda não era uma opção. Nunca.

                Por isso, eu estava um pouco encurralado e tive que criar a terceira opção.

                Pânico total.

                O funcionário, se antes já não estava, devia ter começado a amaldiçoar minha existência assim que agarrei seus ombros para usar como escudo enquanto eu gritava para tentar espantar o samurai. Foi uma tentativa falha, por mais que conseguisse bloquear a passagem de Kanda ao me mover de um lado para o outro não podia ignorar o fato de que ele certamente cortaria o homem ao meio se precisasse para chegar em mim e fazer o mesmo.

                Quando larguei o meu refém, não perdi tempo em preparar outras distrações que não pudessem sentir dor quando dilaceradas por uma espada. Agarrei coisas da prateleira enquanto corria, ainda que não para tão longe, porque conseguia perceber sua aproximação.

                Foi então que comecei a jogar o que quer que fosse parar em minhas mãos e Kanda foi surpreendido por uma chuva inacabável de pacotes de absorvente sendo tacados em sua cabeça.

                Se possível, o funcionário pareceu mais descontente comigo acabando com sua recém organizada prateleira do que com o fato de ter sido usado como refém.

                Depois do choque inicial, Kanda pareceu se acostumar com a distração inusitada e conseguia rebatê-los com o braço e com a espada para todas as direções da loja, espalhando objetos íntimos e mensais femininos pelo chão inteiro.

                Parecia um tipo de neve inusitada (e bem cara, por sinal, quem diria que essas coisas custavam tanto?).

                Eu percebi que estava acabado quando a prateleira que usava como estoque de munição esvaziou-se, seu conteúdo espalhado por todo o espaço da farmácia e fora de meu alcance. Também notei que ele continuava se aproximando e dessa vez não iria parar por nenhum contratempo, por mais inusitado que fosse.

                Eu devia ter guardado um pacote de absorvente para tentar ajudar o claro sangramento que haveria em mim quando ele enfiasse aquela espada na minha garganta.

                Corri para a porta, agora que estava próxima o bastante.

                Fora do ar condicionado da loja, o calor me arrebatou no primeiro momento em que respirei.

Antes que eu pudesse alcançar uma distância considerável (e eu estava indo rápido, que fique registrado), ele fez uma boa demonstração de suas habilidades ao me atingir em plena fuga com sua sacola pesada direto e minhas costas. O peso e a força foram tão grandes que me fizeram rolar pela calçada o bastante para que ele me alcançasse, enfim.

                Quando tentei me levantar novamente para retomar a corrida, fui novamente atingido, mas dessa vez por um peso muito maior que me fez cair e por ali mesmo ficar.

                Até eu perceber que fora Kanda quem havia me derrubado com seu próprio peso, eu me debati. Quando senti que ele me olhava lutar sozinho sem nem ao menos se mexer de onde me segurava contra o chão, decidi que era hora de parar.

                Parecia ser a melhor escolha que fiz o dia inteiro, porque meu corpo inteiro relaxou, cedendo ao completo cansaço. Até mesmo o moreno parecia um pouco sem ar e sua testa brilhava com uma linha de suor.

                Fechei os olhos por alguns segundos, esperando que ele me atacasse de alguma forma, mas fui contemplado por um grande nada. Apenas senti o peso sair de cima de mim e quando abri os olhos vi que ele estava também esticado no chão ao meu lado, respirando pesado (ainda que não tanto quanto eu).

                O céu estava claro, o sol ainda que forte estava momentaneamente escondido entre as nuvens, como se estivesse me recompensando com esse descanso de sua ardência.

                Nem pensei sobre o chão de rua sujo em que estava deitado, apenas:

                -Merda...- eu disse, olhando para o lado contrário de onde Kanda estava, vendo as frutas sendo esmagadas pelos carros na rua- você derrubou as tangerinas.

                Escutei um barulho vindo de onde eu não olhava. Achei que o moreno estivesse engasgando, ou talvez recuperando a raiva a energia para me matar finalmente e me virei rapidamente para seu lado apenas para vê-lo... rindo?

                Fiquei sem reação ao ver Yuu Kanda rindo, dentes à mostra, ruguinhas ao lado dos olhos quase fechados e tudo mais. Como estava virado de barriga para cima, podia vê-la tremendo enquanto ele ria.

                Era uma risada muito bonita. E não parava.

                Em outro momento eu teria ficado bravo por ele provavelmente estar rindo de mim, mas aquela cena aqueceu meu peito e só pude saciar a vontade de rir junto. Até mesmo ronquei no processo, o que o fez rir ainda mais do som ridículo.

                Kanda cobriu os olhos com a mão enquanto ria e eu me dobrava de lado, segurando a barriga que começava a doer de tanta risada.

                Era uma cena ridículo para quem passava, no entanto não trágica o suficiente para fazer alguém parar para observar.

                -Você...Você jogou absorventes em mim?- ele perguntou, entre risadas, quase não conseguindo terminar a pergunta. Parecia que só agora considerava o quão ridículo era aquela situação.

                -Você.... massacrou os absorventes.... que eu joguei em você?- perguntei de volta, alimentando ainda mais os risos.

                Ele franziu o cenho, como quem considerava algo seriamente, porém ainda tinha o sorriso no rosto.

                -E eles...eles eram tão caros- ele concluiu, rindo mais ainda.

                Ele apontou para as frutas esmagadas no asfalto, parecendo retratos de um fracasso e por algum motivo aquilo me pareceu engraçado demais para parar de rir sobre.

                -Elas...elas são mesmo como cabeças de shitzus- foi a conclusão que tirei, causando mais risos ainda.

                Rimos por um tempo consideravelmente longo, até evoluirmos para risadinhas e então finalmente os espasmos de risadas toda vez que olhávamos para as tangerinas abandonadas.

                O que me atingiu foi uma paz interior.

                Uma gratidão por ter tido a oportunidade de ter ouvido aquela risada. Nunca achei que fosse ser grato por algo como isso, grato por poder escutar um momento feliz de alguém, em uma situação idiota.

                Acho que é o tipo de coisa que se sente quando se tem algo pela pessoa.

                Olhei para o rosto sereno de Kanda, que, ainda que agora tivesse já no rosto franzido novamente, estava com os olhos fechados e uma postura mansa.

                Que ele era bonito não era novidade, mas que ele ria dessa forma, era capaz de confortar, de ouvir, que sairia atrás de um pedido tão bobo como tangerinas se alguém que precisasse pedisse... Eu não sabia. Nunca imaginaria a partir do que li no mangá.

                Atingiu-me que ele nunca havia agido para me machucar como sempre advertia desde que parei de soar como uma ameaça. Ele agia de forma bruta, todavia nunca passou de mera falácia.

                Meu peito doía e eu sabia exatamente o que era.

                Poucas vezes eu senti algo parecido na vida, mais porque eu já me conhecia, sabia contar as chances de algo real acontecer quando não se é o mais atraente.

                Ah, nem vem, você aí lendo também sabe que sentimento é. Eu sei exatamente o que você espera dessa história. Você não me engana.

                O fato de que doía mais do que se aquecia era o que me preocupava, porque era mais que claro o motivo. O coração sabia e antecipava a reposta alheia, treinado para não levantar as expectativas.

                Aquele era Yuu Kanda. E, bem, estamos falando de um moleque franzino chamado “Allen Walker”.

                Seria tão mais fácil, apesar de igualmente inalcançável, ter sentido o mesmo por Lenalee como queria ter sentido.

                Mas agora eu não tinha pessoas para decepcionar. Eu podia pelo menos aproveitar para ser a maior decepção que a família tradicional homofóbica esperaria ver enquanto eu estava por aqui.

                Sofrer. Sofrer muito.

                -Você fica bem sorrindo- eu disse, antes que pudesse frear as palavras.

                Por sorte do bom humor, talvez, Kanda apenas abriu os olhos para olhar para mim, ao invés de reagir negativamente.

                -Eu podia dizer o mesmo sobre você- foi o que ele respondeu, surpreendentemente.

                Tentei esconder o rubor do meu rosto olhando também para o céu, onde as nuvens se acumulavam.

                -Por que você fugiu?- ele perguntou, enfim. Minha resposta foi um grande e desconfortável silêncio que o obrigou a completar- O Usagi disse que você foi comprar band-aids, mas eu vi você correndo.

                Mordi o lábio, movimento reflexo para o tanto que passava pela minha cabeça. Eu tinha tantas respostas, só que nenhuma parecia satisfatória e provavelmente terminavam em mais perguntas.

                -Da próxima vez que for tentar fugir talvez queira andar sem parecer suspeito- ele falou, e seu tom rude não me afetou em nenhuma forma, principalmente quando ele terminou com um suspiro cansado- Eu sei que você tá...hã...afetado porque seu pai tá-

                -Ele não está morto- interrompi-o, estremecendo sem querer com o tom agressivo que usei sem esperar- ele não...Mana não é uma pedra num cemitério.

                Ele me olhava com atenção, mas eu percebi o modo como esperava que eu desse ainda mais sinais de loucura.

                -Eu não...eu não estou falando isso para tentar superar!- respondi, para que ele parasse de me olhar daquela forma. Só percebi o quão culpadas essas palavras pareciam depois que as disse- É um fato! Mana ficou no outro mundo e eu vim sozinho para esse. Ele não está aqui.

                Com a ponta do pé, empurrei uma tangerina que estava equilibrada no fim da calçada, fazendo-a rolar para o meio da rua e explodir ao ser atropelada por um carro qualquer. A fruta ficou prensada no asfalto, demarcada pelo próprio suco.

                -Ele simplesmente nunca esteve aqui...- concluí e da mesma forma esse pensamento me entristeceu.

                -Então por que você fugiu?

                Eu dei de ombros, coisa que poderia responder muita coisa e ao mesmo tempo não.

                -Porque eu quero voltar.

                Ele franziu o cenho.

                -Você pode voltar para a Ordem depois de concluir a missão, não precisa fugir.

                -Não!- corrigi, rolando os olhos. Dessa vez senti a necessidade de olhar diretamente em seus olhos, para que ele compreendesse a completa loucura que passava por mim.

                -Voltar para o meu universo- completei- p-para onde eu não baguncei a ordem das vidas, para onde eu não coloco em risco a vida dos outros. Para onde Mana está.

                Apesar de não haver em seu olhar um quê claro de incredulidade, ele certamente parecia confuso, considerando cada palavra, projetando na mente o que eu tinha para oferecer. Para isso ele não deu nenhuma resposta.

                -Eu ia...eu não sei o que eu ia fazer. Eu só precisava sair dali um pouco. Ia falar com Komui quando pudesse, mas...- eu estava hesitante em falar, porque sabia que se alguém podia me impedir, seria ele- Eu preciso saber o que o Conde tem que é tão importante para mim. Eu acho que pode me levar para casa.

                -Quê? Do que você está falando?

                -Você não lembra?!- agora, já estávamos ambos sentados no asfalto- Quando voltamos da missão. Quando falaram que tinham algo importante para mim. Especificamente para mim! Eu-eu achei que era o Mana- minha voz por pouco se manteve segura e firme- Mas claramente não era. O que quer que seja...acho que pode me levar para casa. É a única explicação.

                -E pra isso você não pode ter o Usagi do lado.

                -Exato! Porque como eu justificaria algo do tipo sem que ele descobrisse?

                Lavi tem a mente projetada exatamente para a descoberta, para fazer a conexão dos milhões de pontos que ele decora na cabeça. O que eu menos preciso é de alguém para sabotar minha viagem de volta bem agora que havia decidido por ela.

                -Não explica porque você fugiu de mim- e ficou implícito “e me fez comprar tangerinas desnecessárias”.

                A frase me surpreendeu tanto de imediato, que por mais que eu tivesse tanto a falar e minha boca abrisse a fechasse continuamente, demorei bons e inseguros minutos para formular algo. Diante disso, ele cruzou os braços, como se estivesse esperando pacientemente meu fracasso.

                -Eu...não achei que você fosse me deixar ir?- a intenção era uma afirmativa, mas diante de tudo que presenciei e seu mais novo questionamento, terminou como uma questão. Uma questão muito complicada por sinal, pois ele nada disse e averteu o olhar de mim.

                -Tsc. Esse mundo é tão ruim? Achei que Komui tinha dito que era o que você mais queria.

                -Já ouviu “cuidado com o que você deseja”?

                -Não.

                -Bem, digamos que isso muito bem se encaixa na minha situação.

                -O que é tão ruim?

                -Hã...não sei, talvez os super monstros numerosos que podem te matar com um tiro e estão tentando dominar o mundo?

                -Como se você não soubesse que eles existiam antes de vir.

                -Eu achei que o fato de eu ser exorcista fosse ser um grande bônus, mas, surpresa, eu sou um terrível exorcista.

                Ele pareceu ponderar, me olhando de cima a baixo com aqueles olhos acusatórios.

                -Você tem um corpo saudável aqui.

                -Tenho?- quando olhei para ele, meus olhos cansados e sarcásticos. Referia-me aos ataques que havia tido algumas vezes.

                -Tsc. Do jeito como correu hoje, acho que sim...- ele murmurou, mas eu ouvi claramente. Então, falou em voz alta- Você teve alguma crise, desde...?

                Molhei os lábios, pensando seriamente sobre o caso.

                -Não- concluí.

                Ele ergueu as sobrancelhas, como se tivesse acabado de fazer uma argumentação indispensável.

                -Talvez tenha sido só um efeito da innocence antes. Ou das suas “visões do outro mundo”- ele explicou.

                -Ok! Talvez eu tenha um corpo saudável agora, mas...mas não é o bastante. Kanda, eu não pertenço a esse mundo. Minha existência aqui só está bagunçando ainda mais o que acontece. O único favor que eu poderia oferecer a vocês está comprometido, porque eu não consigo lembrar tudo sobre o que li no outro universo. Então por que ficar aqui? Eu posso até não fugir agora, posso ajudar na missão, mas eu não vou deixar essa ideia de lado até obter uma resposta.

                Ele me olhava com um rosto concentrado, como se estivesse pronto para contra argumentar algo. Mas eu sabia, não havia como negar o que eu falava. Era claro como o dia de hoje que o que eles precisavam não estava em mim, estava em pessoas como ele.

                Vai saber que desordem essa minha transação entre dois mundos causou nesse aqui.

                Bem, eu nunca irei saber que palavras ele iria usar para me responder decerto. Fomos interrompidos por um limpar de garganta que vinha da direção da qual havíamos corrido, diretamente ao nosso lado.

                O funcionário da farmácia que estava a organizar a prateleira no qual me escorei, um homem um tanto alto e desgrenhado, estava parado nos observando com as duas mãos na cintura e uma expressão um pouco desgostante.

                -Hã...-foi o que consegui dizer, vendo-o olhar para mim como se tivesse esperado que que nós estivéssemos à quilômetros dali e provavelmente mortos a essa hora. Ainda assim, tinha algo nele que até me lembrava o Lavi, apenas tremendamente mais furioso.

                Ele suspirou.

                -Eu espero que vocês paguem pela destruição da loja- disse, o tom mais ameaçador do que esperaria de um simples funcionário- ou que ao menos ajudem a organizar a bagunça que fizeram.

                Prontamente me levantei, tentando limpar a sujeira impregnada em minha calça e parecer mais apresentável. Quem sabe pudesse me livrar de mais punição.

                Kanda seguiu os meus passos, mas claramente resmungando baixinho. Olhou para o homem como se esperasse o sinal para poder fatiá-lo em plena luz do dia.

                -Sim, sim! Claro! Qualquer coisa- respondi, porém “qualquer coisa” era um conceito um pouco grande demais.

                Nisso, ele puxou um bloquinho de notas do bolso, assim como uma caneta.

                -E vou precisar anotar o nome dos dois para o caso de acontecer novamente.

                -Hã...sim! Er, Allen Walker- ele anotou rapidamente em uma caligrafia caótica- e esse é... o Yuu Kanda.

                Ele levantou os olhos para observá-lo um segundo enquanto anotava o nome logo abaixo do meu e de um título que parecia algo como “Desordeiros da área íntima feminina, proceder com cuidado”.

                -Um exorcista, hm?- disse, finalizando o nome do moreno. Claramente havia notado a insígnia nada discreta no sobretudo também nada discreto que ele usava.

                -É- respondi, porque Kanda obviamente não iria.

                -Estão em uma missão?- perguntou enquanto guardava o bloquinho de volta em sua vestimenta para observar nós, os desordeiros.

Agora que podia vê-lo de perto, parecia mais velho que nós ainda que não muito. Tinha um ar maduro e até atraente, apesar dos fios castanhos descabelados. Enfim notei o que tanto se assemelhava a Lavi: o sorriso, curto e rápido, zombador.

Se não fosse pela clara diferença de idade, certamente me deixaria ser atraído.

—É- gaguejei- hã...estamos investigando a cidade.

—Hmm.

Kanda, talvez notando meu problema em carregar conversas, resolveu finalmente interromper.

—Achamos que tenha algo a ver com uma mina a alguns quilômetros da cidade que nosso colega acabou de localizar. E onde estaríamos se esse pirralho não corresse tão rápido- completou, com os dentes rangendo em rancor e então completou sem o menor resquício de vontade ou humor, como uma frase ensaiada mil vezes- Sabe algo sobre?

O homem pareceu se surpreender, a expressão do rosto mudou rapidamente para voltar a ser o sorriso curto e os olhos tediosos.

—A mina? Eu trabalho por lá quando não estou por aqui. Tempos difíceis. Se vocês quiserem, posso ajudar vocês a entrarem lá e procurar o que querem achar.

Kanda franziu o cenho, o que sinceramente poderia significar qualquer coisa pois essa era sua expressão natural. Eu sabia que ele estava um pouco suspeito, mas também não passava de sua natureza querer manter algo como ele sempre havia feito. Não era de seu feitio envolver outros pessoas em sua investigação.

—Hã...claro- respondi, mais porque não queria ficar ainda pior aos olhos do homem. Afinal, já havia destruído seu ambiente de trabalho -s-se não for muito ruim.

—Imagina- ele sorriu, ainda que de lado, seu olhar era intenso e atento- seria mais que um prazer ajudar exorcistas.

Ele bem que podia nos ajudar não pedindo para limparmos ou pagarmos a bagunça.

Bem, parece que eu continuaria dentro da missão. Só precisaria procurar respostas para meus problemas além do maldito espelho que procuravam.

Ele escreveu algo no bloquinho de notas novamente antes de rasgar a página e me entregar. Era um número de telefone, identificado pelo seu nome logo em cima.

—Podem usar isso para entrar em contato comigo- ele informou- posso já mostrar o lugar para vocês amanhã. Vou para lá logo de manhã para não perder a hora.

—Ah, sim, claro. Obrigado, er...- tentei ler a caligrafia do papel, mas além dos números tinha dificuldade em entender o nome que estava logo acima para poder agradecê-lo.

Ele sorriu, cômico, ao estender-me a mão firme que logo tomei como cumprimento.

—Tyki- ele completou- Tyki Mikk.


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Notas finais do capítulo

E aí? Gostaram? Não?
Finalmente os sentimentos começam a rodar e olha só quem apareceu!