Seu mundo havia acabado ali. Naquela manhã de domingo, cinzenta e gelada.

Correu para longe de casa. Correu de pés descalços pela grama úmida - havia chovido mais cedo - e jogou-se naquele tapete verde, sem se importar se suas roupas claras ficariam sujas de barro mais tarde. Queria sumir. Queria chorar. Queria acordar daquele sonho surreal. Aquele sonho aonde perdia a sua pessoa mais importante, a que havia sido o seu exemplo de vida.

O céu já estava azul e não fazia mais tanto frio, graças ao sol. Mas para ela, aquela manhã dolorosa não havia chegado ao fim. A notícia ainda ecoava em sua mente, não havia conseguido digerí-la. Não acreditava... Ou talvez fingisse não acreditar.

Ele havia morrido, e o pior de tudo: ela não sabia o motivo. Isso a desolara.

Ele era tão admirável... Era uma pessoa doce, sorridente. Especial. Por isso que a menina simpatizava tanto com ele: mesmo ele sendo diferente, mesmo ele sendo exatamente o contrário do que as pessoas considerariam certo, ele era tão gentil... Mesmo nunca tendo trocado sequer uma palavra com ele. Só havia visto-o de longe, mas... Mesmo assim... A morte dele havia abalado-a. Era como se tivesse perdido um amigo de muitos anos.

Encolheu-se no chão. Fechou os olhos, deixando as lágrimas escorrerem pela face. Não os abriu mais durante algum tempo, tentando assimilar o que acontecera, por mais que isso não fosse bom. Nem tivera a oportunidade de ver de bem perto aquele sorriso tão meigo... Ah, se Kami-sama existia, ele era mesmo um cara muito injusto. Tantas pessoas más e desonestas por aí, e ele escolhia levar alguém tão bom como...

A menina parou de pensar durante alguns segundos. Sentia-se observada por alguém. Mas, mas... Não havia escutado nenhum barulho... Nem passos, nem nada. Estava à sua esquerda, podia sentir... Virou-se para o lado correspondente e só então abriu os olhos, bem devagar.

- Desculpa... Eu acordei você, querida...

Ela levantou-se, num sobressalto. Os olhos, arregalados, não acreditavam no que viam.

Ali, na frente dela. Sentado na grama, sem se importar com a lama nas luxuosas roupas cor de violeta. Com alguma coisa branca nas mãos... Uma pena? Talvez. A maquiagem carregada e os vistosos - para não dizer exagerados - enfeites na cabeça. Era mesmo ele que estava ali. A fitava, com aquele conhecido sorriso estampado no rosto, mesmo ela tendo reagindo daquela maneira quando finalmente notara sua presença.

- Vem cá. Eu não mordo. - riu baixo.

 Ela sorriu nervosa, e foi aproximando-se lentamente, ainda surpresa com aquela visão. Tornou a sentar-se na grama. Ele estava mesmo ali! E como isso era bom, ah... Muito, mas muito bom. Estava convicta o tempo todo de que a notícia de falecimento do rapaz era somente uma brincadeira, de imensurável mau gosto, mas agora tinha total certeza. Espera só até os colegas dele ficarem sabendo que ele não morreu, dizia para si mesma.

- Posso te perguntar uma coisa? - murmurou, temerosa.

Ele respondeu, com a voz melodiosa e simpática de antes:

- Sinta-se à vontade.

- Você não...

- Não é bem isso. Eu morri, sim. - o sorriso do jovem tornou-se triste. - Mas... Bem, eu não vou contar por quais motivos estou com você agora, senão não tem graça e sei que você não vai gostar.

- Hm...

Ela suspirou decepcionada. Abaixou a cabeça, mas a levantou segundos depois, quando o ouviu chamando-a. Se não fosse por isso, ia começar a chorar outra vez.

- Agora, eu posso fazer uma perguntinha?

- Claro que pode.

O rapaz vestido de púrpura fechou os olhos, sorrindo, e tornou a falar.

- Você estava chorando, pequenina? Seus olhos estão bem inchados... - encostou o dedo na testa dela, aparentando preocupação. - E, se for, porque estava...? Nossa, disse que só ia fazer uma pergunta e acabei fazendo duas... Perdoe-me!

- Tudo bem, tudo bem. - ela balançou a cabeça para os lados. - Sim, eu estava chorando... E foi por que... Eu fiquei sabendo que... Você tinha falecido.

Ela sorriu triste, fechando os olhos. Uma lágrima caiu do olho esquerdo, mas, antes que chegasse até os seus lábios, o jovem a secou, com os dedos. Os dedos frios e finos que ela sempre imaginou que ele tivesse.

- Pequenina...

Ela abriu os olhos, e viu o rosto dele tomar uma expressão triste que lhe doeu o coração.

- Me promete que não vai mais chorar por mim?

- Mas... Por que...?

- Eu não gosto. Não gosto de ver um fã chorando. Ainda mais por minha causa.

- É que eu fiquei muito triste... Triste demais... Eu queria você feliz, não queria que acabasse assim...

- Mas estou feliz. - sorriu largamente. - Posso não estar vivo... Mas eu estou com todo mundo...

- Você vai fazer muita falta, sabia?

A menina sorriu tristemente. A voz já estava embargada pela emoção, e provavelmente, iria desabar em prantos a qualquer instante. O rapaz viu-se sem saída. Foi então que se lembrou do que viera fazer ali.

Apontou com o indicador da mão direita - a mesma que havia secado o rosto da menina dos longos cabelos castanho-claros - para o céu quase alaranjado do fim de tarde.

- Está vendo ali?

- Sim...

- É o céu, nee?

- O que tem o céu, You-sama?

- Não precisa ficar com saudade de mim, porque eu sempre vou estar lá. Sempre que você se sentir triste ou confusa, e quiser ajuda... Olha pro céu! Eu vou estar lá pra sempre olhando por você, por todo mundo. Agora, promete que não vai mais chorar por mim? Quando sentir saudade, é só olhar pra cima. Afinal, o céu não sai do lugar nunca.

A jovem escutava-o, surpresa. Ele era mesmo como imaginara... Gentil, doce, afável. Sentia vontade de dar-lhe um abraço demorado, apertado. Não queria que ele fosse embora, queria-a junto a ela para sempre, todo o sempre.

- Prometo, You-sama...

A fragilidade estampada na voz dela arrancou um sorriso de Jasmine. Estendeu os braços, envolvendo-a num abraço breve, porém envolvente os bastante para fazê-la nunca se esquecer daquele instante. A menina retribuiu, quase sem acreditar. Ele, Jasmine You, o baixista da sua banda favorita, estava abraçando-lhe... Sentia o coração, antes ferido por aquela notícia tão repentina, recuperar-se aos poucos. Graças a ele. Ah, tinha orgulho em ser fã de uma pessoa como ele era.

- Que bom... Gostaria muito de conversar mais com você, pequenina, mas eu preciso me despedir. - disse ele, soltando-a do abraço. Levantou-se.

- Não... Não vá embora de novo!

Estava perdendo-o! Outra vez... Tentou levantar-se também, mas não conseguiu. Algo a prendia à grama, mas não era uma coisa que pudesse ver... Uma força invisível, talvez. Fitou desesperada o jovem das penas e rosas na cabeça caminhando em direção ao horizonte...

- Jamais irei embora! Lembre-se, olhe para o céu, sempre estarei lá. - disse ele, risonho. Já estava muito longe, e parecia sumir aos pouquinhos. O desespero dela aumentou consideravelmente ao perceber isso. Ele estava... Indo. Quis gritar, mas a voz não saiu. Tentou outra vez, mas era inútil. Ele não a ouvia.

Antes de sumir completamente, ele acenou. Abrira a mão com a qual segurava anteriormente a pena, e com o vento, esta saiu voando para longe. Ela olhou de relance para a pena, mas quando voltou a fitar Jasmine...

Ele desaparecera.

A garota abriu os olhos, finalmente. Sentia o rosto molhado, graças à grama. As roupas também já deviam ter tomado a cor marrom do barro, mas isso não era importante no momento. Levantou-se.

O céu ainda estava azul. Uma brisa suave soprava, diferente do vento que levara a pena dele embora.

Jasmine... Infelizmente, havia sido um sonho. A garota acabara por adormecer quando se deitara no chão. Havia se deixado levar por aqueles pensamentos dolorosos sobre a perda do seu ídolo. Mas, pelo menos tinha visto ele, tinha visto seu sorriso de perto. E agora, mudara de idéia em partes. Kami-sama não era tão injusto. Por o baixista ser tão especial, Ele o quis junto a ele. Mas ela também queria... Porém, sabia que o seu príncipe que trajava púrpura estava muito melhor agora, no lugar onde estava.

A brisa soprou novamente, um pouco mais forte. Fitou o horizonte vazio, por alguns segundos. Até algo prender a sua atenção. Um pequeno ponto, que flutuava delicadamente pelo ar e se aproximava dela.

Uma pena.

Era idêntica à que Jasmine segurava. Ou melhor, era a que Jasmine segurava.

O movimento do ar cessou, e a pena foi perdendo altura. Ela esticou os braços, para conseguir segurá-la. Obteve sucesso.

Poderia parecer uma pena simples para qualquer pessoa que passasse ali por perto naquele instante. Talvez tivesse caído de algum pássaro durante o vôo. Era uma pena qualquer, sem nenhum tipo de valor. Mas para ela, não era. Ela havia entendido. Jasmine havia estado com ela, e agora lhe deixava um presente. Algo para que ela sempre se recordasse daquele encontro... E para que ela sempre se lembrasse de que ele estava ali, observando-a e zelando por ela, do céu. Não somente a ela, mas olhando por todos os seus familiares, por seus colegas de banda, outros amigos e fãs. Para sempre.

Estava feliz, pois sabia que ele também estava.