Alice

TIC TAC, TIC TAC…

Tudo que conseguia ouvir era o barulho do relógio, o qual eu olhava a cada 5 minutos

18h15.. mais 45 minutos e estaria livre do trabalho...não que eu realmente desejasse sair da biblioteca, o doce lar dos meus livros...Mas é que hoje combinei de ir jantar na casa de minha amiga Angela..Não que eu realmente quisesse ir já que prefiro mil vezes ir jantar a macarronada de minha mãe do que a comida natureba que a Angela prepara, dou preferência ao café requentado que se encontra em cima da minha escrivaninha do que a sobremesa de tofu que ela faz. Eca!

Por falar em café frio acho bom preparar outro, já é quinta xícara de café que eu tomo em menos de uma hora, confesso que estou um pouco nervosa porque a Ângela armou um encontro duplo com uns caras que ela conheceu na academia, isso mesmo um encontro as cegas com um homem 4 anos mais jovem do que eu que frequenta ioga!

Corro para fileira 224 sessão de romances, chego a prateleira C retirando o quinto livro da estante: Romeu e Julieta de Shakespeare, abro o livro cheirando as paginas, isso me acalma...

Sim, sou uma bibliotecária de 28 anos maluca que prefere os livros ao contato humano , mas quem em sã consciência não preferiria um arquétipo de amor juvenil que permuta por mais de 5 séculos a um instrutor de ioga? Minto, a um aluno de ioga porque o instrutor gostosão a Angela arrumou pra ela.

18h30 estamos quase na hora de fechar!

Começo a olhar pelos corredores buscando por algum nerd esquecido, não há ninguém, nem o casal fogoso que usa a sessão de biologia de forma tão literal que tenho que ameaçar chamar a policia. Hoje a biblioteca esteve vazia, não que ela fique muito cheia em uma sexta-feira, mas esperava pelo menos alguns aposentados ou estudantes de faculdade, talvez haja alguma festa ou evento na cidade, não que eu tenha visto algum anuncio, não que eu saia muito para poder ter visto algum anuncio.

18h50

Dou um ultimo gole na xícara de café, acho que vou desenvolver uma gastrite, apago todas as luzes e fecho a porta do gabinete e vou entregar as chaves para o porteiro mas ele não esta lá.

— Seu João! — Grito bem alto cerca de 3 vezes mas não ouço resposta, onde raios esse homem se meteu!

Empurro a porta da portaria esta aberta deixo as chaves em cima da mesa, é a terceira vez na semana que João abandona o seu posto, isso não pode acontecer novamente, só não o denunciei até agora porque ele é um senhor de idade e sua mulher esta doente, mal saiu da cama essa semana e o que o coitado fará se perder esse emprego. Resolvo escrever uma nota:

"Deixo as chaves em cima de sua mesa, tome cuidado com a vigilância, o diretor não vai gostar nada se descobrir suas saídas fora de horário. Se precisar de algo não exite em me ligar

Ass: Sua bibliotecária favorita Alice Vicenza"

Vou até o estacionamento, o carro do João esta lá...Que estranho, acho que ele deve ter ido ao banheiro. O HB20 do diretor Manfred também esta, mas duvido que ele volte para casa antes das 20h, sempre diz para a esposa que esta atolado de trabalho, o que ela desconhece é que o trabalho noturno dele tem 1,70 de altura cabelos loiros, 23 anos e um silicone novinho que ele mesmo pagou, não quero estar por perto quando a senhora Manfred descobrir que a dona Gigi, nobre secretária do marido não é nenhuma sexagenária.

Entro no meu Fiat Uno 94, isso mesmo, não tenho nenhuma maquina turbinada, sou uma bibliotecária por Deus, se quisesse comprar um Sedan não teria dinheiro para sair da casa de meus pais nem dinheiro para cursar uma nova faculdade.

Sou a orgulhosa proprietária de um Uno Vermelho plataforma GM B, locatária de uma kit net no centro da cidade e que ano que vem tem planos de se mudar para cursar minha tão sonhada faculdade de Arqueologia.

Não que biblioteconomia não seja divertido, é realmente excitante estar no meio dos livros, rodeada de conhecimento e cultura, poder auxiliar as pessoas, penso que tenho um cargo realmente importante, mas arqueologia é onde esta a ação! Vulgo posso estudar as sociedades humanas e ficar rica descobrindo objetos debaixo do chão ao mesmo tempo que posso encontrar um arqueólogo bonitão, uma versão musculosa do indiana Jones disposto a enfrentar todo tipo de aventuras e riscos ao meu lado.

Olho para o retrovisor do carro buscando minha imagem, se pelo menos pudesse dar um jeito nos meus revoltosos cachos ruivos, uma vez fiz baby-liss e pode acreditar foi desastroso, abro a minha bolsa pegando uma presilha e trocando meus óculos quadrados por lentes de contato, não que eu as ache muito confortáveis, mas Angela disse que o verde dos meus olhos fica mais realçado sem os óculos de bibliotecária, o que é uma antítese ao meu conceito, já que inúmeras revistas atribuíram a bibliotecária as fantasias sexuais masculinas, novamente Angela disse que não compreendi a real apreciação da fantasia, que deveria conter uma minissaia e um decote realmente escandaloso. Quem em são consciência trabalharia assim?Talvez a senhora gigi, será que o aluno de ioga pensa que sou assim.

E é com esse temor que pego a auto estrada.

Será que ele esta esperando uma loira de peitos grandes ao invés de uma ruiva magricela, será que ele vai me achar baixinha de mais? Estou me sentindo como uma mocinha dos livros da Betty Neels: inteligente, simpática mas infelizmente desengonçada, mas o jantar será somente as 20h e Angela prometeu me deixar maravilhosa com algum de seus vestidos, usamos o mesmo manequim 38, só que o meu calçado é maior 37 e..Ai droga será que lembrei de trazer o escarpam!

Olho para o banco de trás do carro, respiro aliviada quando vejo a caixa do sapato, ao menos parecerei mais alta e elegante, me viro novamente para olhar a estrada quando me deparo com um homem!

Freei no mesmo instante, mas estava a 90 km por hora e ele bateu na minha frente atravessando por cima do capo

Ó minha nossa,minha nossa, que merda!

Desço do carro, ele se encontra a uns 5 m de mim jogado no meio da estrada de bruços, não esta se mexendo

Minha nossa, eu atropelei um homem!

— Senhor !

Grito correndo em direção ao corpo inerte, piso em algo grudento e vermelho...Ó minha nossa ele esta sangrando, acho que matei um homem!O que Agatha Christie me recomendaria agora?!

Chego mais perto percebo que suas costas estão se movendo. Ele respira, por Darwin ele respira!

— Senhor não se mexa senhor, vou no meu carro pegar o celular e chamar uma ambulância, por favor fique imóvel e não me processe!

Vou até o carro e pego a minha bolsa, estou tão nervosa que mau consigo abrir o zíper, por favor que ele não morra, por favor que eu não seja presa!

Olho pra o espelho retrovisor e vejo que ele se levantou, então o caso não é tão ruim como eu pensava, pego meu celular e vou até ele que esta de costas para mim, ele murmura algo indecifrável acho que esta com dor, agora percebo que sua perna esta inumanamente torta, droga, tomara que ele tenha um plano de saúde.

— Fique calmo senhor, é bom não se esforçar eu vou ligar para emergência e tudo vai ficar bem eu prometo e... droga!

Ao invés de pegar meu celular peguei minha escova de madeira com base de alumínio, suspiro pensando como sou idiota quando o senhor se vira me assustando mais do que um filme do Hitchcock.

Sua face era horripilante, não sei se foi o maxilar quebrado, ou pelos olhos opacos como os de um cadáver, talvez fosse por estar coberto de sangue, ou por eu poder ver um pedaço de suas tripas saindo pela camisa de flanela, que eu pude associa-lo a um zumbi, mas quando ele me encarou gemendo e começou a mancar em minha direção tive certeza que não estava em uma ilustrada de Tony Moore, eu era uma bibliotecária de 28 anos no meio de uma estrada vazia com uma escova na mão e um zumbi na frente!