Coração Feroz escrita por RPM95


Capítulo 1
Coração Feroz - O Passado Ressurge


Notas iniciais do capítulo

Capítulo único.



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Nuvens negras permeavam o céu noturno. Trovões ribombavam. Raios rasgavam o breu. A tempestade caia raivosa sobre o Santuário de Atena. No topo da íngreme acrópole, acima das doze casas, um fraco fulgor amarelo podia ser vislumbrado. Provinha dos candeeiros no interior do Salão do Grande Mestre.

Em seu âmago, o Patriarca encontrava-se sentado no trono cróceo, consultando minuciosamente um pergaminho enxovalhado. Com os dedos trêmulos, tracejava linhas imaginárias sobre o papel envelhecido. A sua frente, prostrado ao chão em reverência, um homem mantinha-se calado. Uma capa nívea recobria seu corpo, ocultando-lhe a silhueta. Apenas seus cabelos negros estavam visíveis.

– As estrelas estão se movendo de forma incomum... – comentou o papa. – O enigma aos poucos vai sendo decifrado... A Guerra Santa não tardará. Levante-se, El Cid de Capricórnio!

Obedecendo à ordem, o cavaleiro ergueu-se prontamente. Trajava uma armadura dourada resplandecente, refletindo em cada peça toda majestosidade da elite do exército de Atena. Abaixo do braço esquerdo, segurava o elmo com firmeza. Seu semblante fechado demonstrava sua austeridade.

– Sísifo partiu para Itália, em busca da criança que acreditamos ser a deusa Atena desta era. Albáfica está na Ilha dos Curandeiros em missão, e os outros cavaleiros de ouro ainda não responderam ao meu chamado... – explicou o Grande Mestre. – Quero que você vigie os soldados esta noite. Não podemos deixá-los sozinhos com a Guerra em iminência.

– Sim. – acatou o guerreiro, ao dar as costas e sair do salão.

Nas escadarias posteriores à casa de Peixes, a pequena vila de Rodorio podia ser avistada por entre as rochas. Cid interrompeu sua descida por um momento. Observou ao longe as construções e as ruas desertas com seus olhos frios. Aquele cenário não lhe agradava. A visão do vilarejo desenterrava-lhe lembranças de um passado esquecido. Capricórnio retomou seu caminho.

Desceu pelos doze templos zodiacais até as proximidades da casa de Áries, onde situava-se o Anfiteatro. A estrutura em forma de semicírculo era magnífica, imponente, como devia ser. Fora o palco do nascimento de muitos cavaleiros de prata e bronze. No alto das arquibancadas de pedra, dezenas de pilastras ostentavam galhardetes ilustrados com o báculo sagrado, símbolo da vitória.

El Cid estranhou a ausência de vigilantes no local, entretanto, permaneceu ali, fitando o cume do grande Relógio de Fogo localizado ao lado da edificação. As chamas estavam apagadas... Tudo estava calmo, tranquilo... Apenas a chuva parecia infindável. Os pingos retiniam levemente ao chocarem-se com o metal de sua armadura.

– Deviam reforçar mais a segurança deste lugar...disse uma voz masculina e intempestiva.

O cavaleiro dourado virou-se instintivamente, vasculhando com um olhar cauteloso a origem da frase. Nada. O negrume da noite confundia-se com a paisagem alvacenta.

– Não consegue enxergar no escuro? – ironizou o ser incógnito. – Estou aqui...

Aos poucos, o som de passos pode ser distinguido em meio ao intenso temporal. Capricórnio estreitou a visão. Um homem completamente envolto em um manto púrpuro saíra das sombras, caminhando lentamente em sua direção. Um capuz lhe sigilava a aparência.

– Quem é você? exigiu o áureo, rispidamente, observando o estranho aproximar-se.

– Quem sou eu? – gracejou, retirando vagarosamente o gorro sobre sua cabeça.

Um forte relâmpago rompeu a escuridão, transformando trevas em luz. Por alguns segundos, a identidade do invasor fora revelada por completo. El Cid estremeceu.

– Há quanto tempo, papai! um sorriso sádico estampava-lhe o rosto.

Clarões sequenciais desmanchavam a penumbra remanescente. O santo de Atena ficara imóvel. Seu aspecto outrora rígido caíra por terra, dando lugar ao mais puro assombro. Palavras fugiam-lhe da boca, um único pensamento ocupava sua mente aturdida: “Zenon...”.

– Surpreso em me ver? escarniou o indivíduo. Seus olhos possuíam um brilho medonho. Seu corpo jovem vergava uma surplíce negra. – Zenon de Eumênides, estrela celeste do Orgulho.

O vento uivava furioso, trazendo consigo o aroma da morte. Capricórnio titubeou. Aquele cenário transcendia os limites da razão. Não tratava-se de um devaneio, mas um pesadelo real vindo das entranhas do submundo para lhe atormentar. Seu filho morto ressuscitara. Mais do que isso. Voltara à vida como servo de Hades, e agora viera ceifar-lhe a sua.

– Nã... Não é... É imposs...- balbuciou, incrédulo.

– É possível sim. – interrompeu o espectro. – Sabe papai, aquele vilarejo em que vivíamos lá na Espanha era muito parecido com este aqui nos arredores do Santuário... Não acha?

Não obteve resposta alguma.

– Voltei só para saber... – zombou Zenon. – Qual a sensação de ver sua família morrer e não poder fazer nada, por ser um FRACO? – sua voz expressava um divertimento demoníaco. – Como é conviver com remorso... Sabendo que VOCÊ matou sua mulher e seu filho?

Aquela frase soou como uma navalha em seu coração. O cavaleiro foi acometido por uma torrente de recordações avassaladoras. Imagens embaçadas e desconexas afloravam em sua memória: “O povoado de Burgos... aniquilação total... Um massacre... o exército inimigo marchava sobre o corpo sem vida de seu filho... O cadáver de sua esposa jazia ao seu lado...”.

– Hades... Você vai pagar caro por essa brincadeira... – sussurrou El Cid, para si mesmo.

Toda sua ira despertara. Seu íntimo ardia em cólera, seu espírito bradava em silêncio. Uma aura dourada pairou sobre seu corpo ao queimar o cosmo com fúria. Retesou o punho com força, imitando uma espada. Um grunhido feroz escapou-lhe por entre os lábios.

Sem perder tempo, o santo arremeteu impetuosamente contra o inimigo a uma velocidade inimaginável, concentrando em seu braço direito toda raiva que lhe preenchia a alma. Acertou o nada. O oponente sumira de seu campo de visão sem deixar vestígios. Sua respiração estava descompassada, seus membros tremiam em furor, mas sustentava-se firme. Por um instante, ouviu aplausos irônicos às suas costas.

– Que grande poder, papai! Uma pena você não ter sido forte o bastante no passado para proteger a mim e a mamãe... – desdenhou Zenon, com perversidade.

El Cid fraquejou. Todo o peso do mundo parecia ter recaído sobre seus ombros. O dilacerante sentimento de culpa renascera em seu peito, destruindo-o, deixando-o sem reação.

– Não se preocupe, papai. Você vai se juntar a nós... – avisou o espectro. – Será muito bem-vindo... No INFERNO! ERÍNEAS!

Uma névoa esbranquiçada formou-se atrás de Eumênides, assumindo a forma de três mulheres seminuas. Suas feições eram belas e terríveis ao mesmo tempo, e de seus olhos pingavam gotas de sangue. Emitiam gritos estridentes, enlouquecedores, gritos de vingança. Partiram para cima do cavaleiro imóvel, atacando-o com seus dentes afiados e pontudos, jogando-o violentamente contra as arquibancadas de pedra para depois desaparecerem subitamente, desmanchando-se no ar. Zenon gargalhava, observando seu pai sucumbir.

O áureo não reagia. Estava estirado em meio aos escombros, inerte. Seus cabelos negros encobriam seus olhos. Parecia ser o fim.

– Continua um fraco! – exclamou o soldado de Hades, virando-se. – Sempre será!

Um ruído em meio aos destroços pode ser percebido. Capricórnio erguera-se, e agora fitava o espectro de forma profunda e penetrante. Um pensamento determinado lhe guiava.

“Volte para o mundo dos mortos, e descanse em paz!”

Uma malha de lâminas de luz foi lançada a partir de seus punhos tensionados, despedaçando tudo o que tocava. Todo o poderio do cavaleiro de ouro foi disparado certeiramente contra Zenon, arremessando-o poderosamente contra uma das colunas de mármore, esmigalhando-a.

O espectro tombara ao chão. Inúmeras rachaduras em sua surplíce deflagravam sua derrota. Filetes escarlates escorriam-lhe pela face, mas ria. Ria-se como um louco. Um riso doentio, assustador.

Cid aproximou-se do guerreiro caído. Estendeu o braço direito em direção ao céu, deixando-o rígido como aço. Um olhar melancólico traía-lhe a aparência fria, delatando tristeza.

– Salve-me papai! Salve-me, por favor! – implorava Zenon, em tom mórbido.

O santo permanecia calado, imperturbável. Seus olhos fechados diziam tudo.

– O senhor vai me matar uma segunda vez? Vai destruir o seu próprio filho novamente?

Um zunido metálico, rápido e impiedoso. Essa foi a resposta.

A cabeça do espectro rolou, cessando os lamentos. Um mar de sangue maculou o piso do Anfiteatro, tingindo de vermelho o palco do reencontro lúgubre. Tudo estava acabado.

A chuva amainara. Trovões entoavam uma melodia fúnebre aos ouvidos de El Cid. Um réquiem ecoava em seu coração pela segunda vez, porém, mantinha-se de pé, imponente, mirando o nada. Nenhuma lágrima foi derramada. Sua capa esfarrapada tremulava ao vento.

O horizonte apresentava-se sombrio.


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Notas finais do capítulo

Escrevi essa fanfic inicialmente para o Torneio de Fanfics 2013 do Fórum CDZ, do qual foi a vencedora. Seu curto enredo se deve aos moldes do torneio, um "one-shot" de no máximo três páginas. Agora, venho publicar ela aqui, afim de buscar mais leitores. Muito obrigado!



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