Waterfall escrita por ak_yume


Capítulo 2
Capítulo II




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            - Você é sujo pra cacete, Julian – Fabrizio disse, com uma risada e uns tapinhas que ia dando em um dos ombros da pessoa a quem se referia. – Não, de verdade. Estou dizendo isso porque você sabe que é meu brother – acrescentou em tom de ironia, sentando-se por fim à mesa na qual se encontrava o amigo.

 

            - O que você quer com ela, afinal? – perguntou o outro, chamado Albert, que não largaria o copo de vodka em uma noite como aquela. – Guardá-la só para você?

 

 

 

            Julian havia conhecido Fabrizio assim que começara a lecionar na escola de música em que trabalhava – e não que lecionasse, de fato, bem, mas como as contas não se pagavam sozinhas... Era, no todo, um bom amigo: chato em alguns dias, sacana em outros, e extremamente inconveniente quando o assunto em questão era o que estava sendo tratado naquele momento. Diferente de Albert, Fabrizio fazia questão de manter-se lúcido e fotografar mentalmente, nos piores momentos, os amigos que não sabiam seus limites de álcool no organismo.

 

            Quanto ao outro, que já rodava em mãos a garrafa que não convém descrever, poderia muito bem ser considerado ao menos como um amigo fiel, e o único em quem Casablancas sentia que podia confiar; Julian não lhe contava, entretanto, os motivos pelos quais andava tão atordoado nos últimos dias. Albert, por sua vez, não contava ao melhor dos companheiros a razão pela qual se encontrava tão irritadiço nas noites de sexta-feira – razão que o outro, para a surpresa deste, conhecia perfeitamente: Annie.

 

            - Se você não vai levá-la pra cama hoje, Julian, ao menos avise. Ela não merece ficar te esperando sem saber.

 

            Annie, assim como a garrafa de vodka, pouco merece descrições; era uma louca, uma desvairada que seguia Casablancas até o inferno, falava e ria alto, soltava palavrões para intimidar o público e, como não lhe bastasse, cruzada as pernas com a saia levantada, pode-se dizer bastante levantada, terrível e indiscretamente levantada. No dado dia – ou, melhor dizendo, noite -, a saia mais se assemelhava a uma peça intimida, e Annie, rindo como uma hiena, lançava ao amigo olhares bem insinuantes, balançando os cabelos loiros e curtos de um lado para o outro.

 

            Albert, de fato, não gostava daquela situação. Mas como poderia Casablancas, o pobre Casablancas, aceitá-la quando era uma outra pessoa que não lhe saía da cabeça? Pensara já, na data, em proporcionar-lhe alguma diversão por poucos minutos; mas e se ela se envolvesse, se realmente estivesse interessada em algo mais do que alguns minutos? Bem, não poderia iludi-la: o ato de iludir não pertencia à sua natureza – por outro lado, não convinha dispensá-la também, porque a qualquer instante poderia mudar de idéia. Assim sendo, a coisa não ia nem vinha, e Albert se inquietava sobre a cadeira com a garrafa então vazia em mãos.

 

            - Mais cedo ou mais tarde, vai ter que nos dizer, Casablancas – ouviu o sussurro vindo de Fabrizio, que o encarava agora com a expressão pouco mais séria, mas ainda assim descontraída. – Vai ter que contar aos seus amigos o que está acontecendo.

 

            Julian assentiu com a cabeça; não era em um bar que gostaria de estar àquela altura. Francamente, em sua opinião, nada seria melhor do que o próprio ambiente no qual estava acostumado a lecionar – tudo, tudo que pudesse lembrá-lo da situação por que passaria no dia seguinte. E a ansiedade revirava-lhe o estômago.

 

            - Um pouco de bebida vai te fazer bem. Sobrou aí, Al?

 

            Albert fez um aceno negativo, e voltou as atenções para Annie, que agora se insinuava sobre um dos bancos do bar. Fabrizio revirou os olhos de impaciência. Estava fazendo menção de chamar o homem que se ocupava de servir as bebidas, quando Julian o impediu de fazê-lo:

 

            - Deixa – esse último lhe disse, levantando enfim da mesa à qual antes se encontrava sentado. – Já está na hora de ir – acrescentou, lançando um olhar ao relógio. O dito relógio de pulso, entretanto, não marcava nada a mais do que meia-noite e dez, sendo que Casablancas não costumava sair antes das duas da manhã, e muito a contragosto.

 

            Sob as expressões desconfiadas dos dois amigos e um suspiro de desapontamento da garota que antes parecia tão animada, o garoto deixou o recinto. Precisava tirar logo as roupas, deitar na cama, dormir. Precisava que o dia seguinte, a manhã seguinte chegasse sem demora.

 

 

 

*

 

            A casa dos Valensi era, relativamente, bastante espaçosa. Havia dois quartos, além de uma sala de estar, uma de jantar, uma de tevê e, ainda, um porão. Seria comum que um dos quartos fosse, obviamente, ocupado exclusivamente por Nick, já que ele era filho único da proprietária local. Mas não era bem assim.

 

            Na verdade, havia alguns meses que o garoto era obrigado a dividir seu cômodo particular com a filha do padrasto. Sim, padrasto – Danielle ainda não havia se casado com o sujeito mas, ao que tudo indicava, o relacionamento ia de bom a melhor. O nome do homem, Samuel, além de carregar uma grande antipatia por crianças e funcionários, carregava ainda uma careca e algumas rugas aos cantos dos olhos. Reclamava de tudo durante o dia todo, e a única pessoa com quem parecia manter algum laço de afeição era Danielle. Só não era pior do que a própria filha, uma magrela que, apesar das saias curtas, tinha apenas dezesseis anos, e era muito aplicada na escola, fazendo assim parecer que Nick não era bom o suficiente. Nick, inúmeras vezes, sentia um medo arrebatador de perder Danielle para o que deveria chamar de “irmã por lei”. E detestava as duas novas figuras da casa.

 

            - Nick, querido, você não pode ficar caminhando assim no corredor. Quer acordar a casa toda?

 

            Era tarde da noite e, como nunca, Nick sentia-se ansioso e indisposto a voltar para a cama.

 

            - Não estou com vontade – ele repetia, a voz sonolenta. – Não estou com sono.

 

            Danielle, fechando a porta do próprio quarto atrás de si, foi até o pequeno e o abraçou.

 

            - Você quer companhia para deitar? – ela perguntou, sempre com sua calma de mãe. – Ou está com fome? Quer que eu prepare algo?

 

            - Não, não – o menino respondeu, empurrando-a de leve. De repente, não se sentia digno daquele abraço. – Vou ver se faço algo na cozinha. Obrigado.

 

 

 

            O corredor até a cozinha era um pouco longo, e era necessário passar pela sala de estar. Nick começou a andar com passos curtos e rápidos. Sentia as mãos geladas e um arrepio leve e crônico que se repetia por todo o corpo. Chegando à tão esperada sala de estar, lançou um breve olhar aos móveis – os dois grandes sofás, o armário de vidro com a prataria, uma pequena escultura que insinuava um cisne... E seus olhos caíram sobre o objeto que não lhe saía da mente naquela data.

 

            O violão era de um tom marrom claro e gracioso; também era menor do que o que seria o tamanho normal, e suas cordas eram metade de nylon, metade de aço. “Para que você possa ver com qual delas se adapta melhor antes de comprar um instrumento definitivo”. E por algum tempo, Nick se deteve em observá-lo, parado – era como se aquela peça de madeira o estivesse chamando para o dia seguinte.

 

 

 

*

 

 

 

            Julian se sentia simplesmente cansado de tudo quando chegou ao cubículo que tinha como apartamento. Os cômodos lá eram bem mais restritos do que na casa do outro. Havia paredes em tons preto e branco, uma cozinha de chão coberto por ladrilhos, uma pequena tevê na patética sala de estar e, por último e mais importante, um quarto que Casablancas dividia com o mesmo amigo com quem dividia o aluguel do lugar.

 

            Assim que ouviu a porta do elevador se abrindo, Nikolai, que não havia sido convidado para estadia no bar daquela noite, sentou-se no sofá que era localizado bem em frente à entrada do apartamento. Julian, como se pode imaginar, por pouco não o ignorou completamente, parando apenas para fazer um breve cumprimento de cabeça. Foi ao quarto, à sua cama de solteiro, tirou quase todas as peças de roupa, deitou-se. Mas tinha a leve impressão de que não dormiria com tanta facilidade.

 

            Decidiu-se ao menos que tentaria. Foi quando, de forma convicta, virou-se sem se cobrir para a parede mais próxima e fechou os olhos; para sua grande infelicidade, foi também quando começou a ouvir alguns passos vindos do lado de fora do cômodo em que se encontrava. Mas oh, não, não abriria os olhos para encarar a expressão acusadora de Niko – o amigo talvez até merecesse um pouco de sua atenção e uma explicação decente pelos últimos ocorridos, mas cansado como estava e resolvido a não dialogar com mais alma nenhuma por aquela noite, Julian fingiu já estar dormindo.

 

            Não obteve êxito algum.

 

            - Julian.

 

            Foi quase um sussurro vindo da porta de entrada do quarto. De fato, Nikolai estava lá, e decidido a arrancar do companheiro algumas palavras. Ainda assim, Casablancas manteve-se calado. E mais uma vez, sua decisão resultou em nada além de fracasso.

 

            - Julian, faça como quiser – o tom de Nikolai estava visivelmente alterado, provavelmente pela raiva que, subitamente, o dominou. – Se sua intenção com isso é fazer eu me arrepender, você já conseguiu. Eu já estou arrependido. Mas moramos no mesmo caralho de apartamento, e se pelo menos você fizesse um esforço para agir normalmente... – então, um suspiro. – Ajudaria.

 

            O outro sabia exatamente ao que Niko se referia; havia dois dias, acontecera algo de muito inusitado e, ao mesmo tempo, muito natural entre dois amigos com tamanha intimidade. Sucedeu que, tendo chegado um tanto embriagado em meio a um dia de semana, Julian teve de ser praticamente carregado até o quarto pelo companheiro. E estando Nikolai um tanto promíscuo pela noite que ele próprio havia passado – ou talvez, mas nada provavelmente, por outros motivos -, ousou se insinuar para o outro, e... Bem, o que é resto se explicará; mas convém dizer que chegaram um pouco além de um toque de lábios.

 

            Casablancas até tentaria algum diálogo com aquela pessoa tão peculiar com quem dividia o aluguel, mas no meio da madrugada, e cansado como estava? Não – havia trabalhado o suficiente durante o dia e merecia, no mínimo, um pouco de descanso. Optou por ficar assistindo enquanto o ser saía pelo corredor com passos pesados de raiva.

 

            Às vezes, Julian gostaria mesmo de ser mais preocupado com os pequenos problemas que se formavam ao seu redor – mas não conseguia. Sempre, quando colocava um assunto principal em mente, custava tirá-lo. E antes que se desse conta, havia já voltado à posição de olhos fechados, mas ao invés de ver o escuro costumeiro, via um tom que se assemelhava ao azul: era como se suas pálpebras tivessem sido pintadas pelo lado interno. E aquele azul se fortalecia, aumentava, ondulava enquanto que ele, pobre criatura, se esforçava para dormir. Era um azul de tamanho receio, tamanha inocência, que era difícil desviar as atenções da cor que, agora, se assemelhava à de uma turquesa. Revirava-se na cama, afundava o rosto sobre o travesseiro e pensava que estava cansado, estava com sono, por que não dormia logo?

 

 

 

            Na verdade, sabia bem o motivo pelo qual não dormia logo. Seu estômago parecia infestado por borboletas, o coração acelerado ainda que estivesse deitado sobre uma cama e, o que era pior, o desejo irreversível de olhar o relógio e constatar: “Poucas horas até o dia seguinte”. Julian sabia muito bem que demoraria algumas horas para se render ao sono; o bom é que, conforme o tempo ia passando, mais bonito ia ficando o azul do interior das suas pálpebras – um azul que refletia e podia ser reproduzido por um único olhar, por uma única pessoa.

 

 

 

            Após voltar à cama, Nick adormeceu quando o céu já apresentava as características de cerca de duas da manhã.


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