Waterfall escrita por ak_yume


Capítulo 1
Capítulo I




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   As janelas eram todas cobertas por grossas persianas, o que a deixava com uma aparência um tanto macabra. Sem sombra de dúvidas, seria necessário melhorar um pouco aquele ambiente, se é que outras pessoas – pode-se dizer clientes – chegariam a adentrá-lo em poucos minutos.


   Não havia barulhos significativos dentro do recinto, além de uma respiração pouco acelerada, um relógio de ponteiros que se encontrava pendurado na parede e um bater de dedos impacientes sobre a mesa de madeira.

 

   Julian Casablancas não era, pra falar a verdade, o tipo de sujeito que realmente se punha nervoso ou ansioso no dia-a-dia; vale por isso, então, lembrar que um roer de dedos por sua parte acontecia apenas quando a situação era, de fato, grave. Mas o garoto procurava se perguntar se, nos outros momentos em que roera as unhas sofridas, estivera em ocasião de similar grau de desespero; a resposta, para sua infelicidade, vinha como um trovão em sua mente: “Não”. Quando finalmente chegou à conclusão que o batuque sobre a mesa não o levaria a lugar algum, levantou-se. Caminhou até uma das grandes janelas. E espiou por entre a persiana escura, metendo os dedos finos nos vãos que se haviam formado entre uma faixa e outra.


   O pátio estava vazio. Bem, vazio de todo, não – havia uma colega sua, recepcionista, fumando sentada sobre um dos bancos do pequeno parque; além dela, algumas pombas pretas que bicavam, loucas pela fome, um amontoado de migalhas de pão. E além dos seres já descritos, nada. Nenhum aluno ou professor, nenhum aprendiz de músico, nenhum faxineiro sequer. A cada dia, a maldita escola parecia esvaziar mais.
Julian se deteve por alguns momentos no gesto de estalar os dedos. Permaneceu em frente à janela, mas como não viesse em direção à casa ninguém que lhe interessasse verdadeiramente, foi perdendo as esperanças aos poucos. Até que escutou umas batidas na porta.

   Deus!, o pulo que deu foi o maior de toda a sua vida – entrou em completo choque. Procurou andar para o lado esquerdo, direito, e concluiu rapidamente que era de volta à mesa que queria chegar. Correndo, tentou arrumar a papelada jogada, tentou assentar os cabelos um tanto crescidos, passou as mãos frias repetidas vezes sobre o próprio rosto: precisava certificar-se de que estava acordado e são. Certificando-se por fim de que não obtivera sucesso em nada - os papéis continuavam desordenados sobre a bancada, e os fios do cabelo recusavam-se a permanecer comportados -, pigarreou; mandou que entrassem.

                                                             *

   A partir de então, desligou-se completamente do que se passava em sua sala. O único movimento que pôde perceber se resumiu na entrada de duas criaturas – uma das quais ele não saberia classificar entre um anjo ou o próprio Diabo -, uma pouco mais baixa do que ele próprio, e a outra muito mais baixa.


   Julian simplesmente não pôde deixar de sorrir – por dentro, já que sua face parecia nada disposta a obedecê-lo – ao certificar-se da estatura patética pertencente à menor das pessoas que agora o visitavam. Ao analisar aquele grão de ser humano que tinha sob os olhos, era capaz de sentir nada, além de suas pupilas dilatando, e o organismo todo, que antes se preparava para combater o perigo, se revertendo em um estado calmo e afável.
A mulher que acompanhava o grão de ser humano – a maior das criaturas, de cabelos relativamente claros e uma expressão sorridente – proferiu algumas palavras, as quais Julian não identificou no ar até que fossem repetidas duas ou três vezes.


   - Boa tarde, Julian – ela disse, lançando um olhar às duas cadeiras que tinha em sua frente, em um gesto que perguntava ao garoto se ele iria ou não convidá-los para se sentar. Não estando em condições que responder verbalmente, Casablancas apenas indicou as cadeiras como uma das mãos, declarando que sim, eles deveriam fazê-lo.

   Onze anos. Onze.


   - Veja, eu sei que hoje deveria ser a primeira aula de vocês dois – a mulher justificou-se, já sentada e com o filho ao lado. – Mas eu não pude deixar de vir, Nick não está muito bem – acrescentou ainda, fitando o pequeno com uma nova expressão, de lástima. – Olhe bem esse rostinho, Julian. Irresponsabilidade a minha, que deixei com que ele dormisse com a janela aberta ontem à noite. Olhe só esse nariz vermelho. Ah, não, ele não está em condições de aprender nada hoje!
   Julian voltou a fitar o pequeno que segurava com força a mão de sua responsável. De fato, o nariz delicado, bem como os olhos azuis, estava um pouco avermelhado, o que lhe atribuía um ar de gripe. Parecia também um tanto desanimado.
   - Por isso, resolvi vir hoje também – a mãe voltou a falar, o sorriso sempre muito amigável. – Estava por perto, e imaginei que seria melhor que nós re-agendássemos a primeira aula. O que me diz, professor?

   O que diria? Ah, e o que poderia dizer? Que opção teria? O garoto soltou um pesado suspiro, e fechou os olhos por alguns minutos, ao ser informado de que aquele ainda não seria seu primeiro dia de privacidade com Nick.


   - Espero que possamos remarcar sem problemas. Não tem problema pra você, tem?
   Ao ouvir a pergunta, Julian soltou nada a menos do que um grito. “Não!”. Não poderia, por nada na face do globo terrestre, perder o pequeno aluno que repousava sobre sua cadeira desconfortável. Pegou sua agenda – na qual, diga-se de passagem, quase não havia compromissos marcados – e remarcou a aula para o dia seguinte. Logo cedo? Sim, sim, a manhã seria o melhor momento...
   - De manhã? – ela perguntou, talvez achando a proposta interessante. Recebeu do filho um aceno de cabeça, como quem aceitasse a idéia. – Está certo então.
   - Eu posso usar o banheiro?


   Todas as atenções da sala então se voltaram para o pequeno Nick, que era quem fazia a última pergunta. A mulher chamada Danielle e Julian entreolharam-se. Ele, enfim, se levantou e fez um sinal para que o novo aluno o seguisse – o banheiro ficava fora da sala em que se encontravam, ao final do corredor.


   Casablancas e o garoto caminharam juntos durante toda a extensão do maldito corredor que se seguia, em silêncio fúnebre. Inúmeras vezes, o maior pensou em proferir algumas palavras, mas no instante em elas estavam prestes a abandonar-lhe a boca, as julgava como inconvenientes, improdutivas, inúteis. Era quando procurava apressar o passo – porém, para sua profunda agonia, a atitude parecia não encurtar em nada o trajeto. E como não lhe bastasse arcar com os olhinhos azuis que o seguiam de perto, ainda sentia como se os de Danielle – que se encontrava ainda dentro da sala – o estivessem perseguindo.


   Quando, de fato, atingiu a porta branca que correspondia ao banheiro, imaginou estar sofrendo alucinações. Como, em tão curto período de tempo, podia passar de um estado de afável para um de extremamente atordoado, não sabia explicar. O que sabia era que o que sentia se traduzia em “grande alívio” quando abriu a dita porta recentemente alcançada. Tocou ainda o interruptor, acendendo a luz amarelada, e deu passagem para que Nick adentrasse o local. Ele, por sua vez, não o adentrou rapidamente.

   O azul dos olhos de Nick Valensi não eram comuns; talvez o azul fosse mais desfocado, mais incerto, ou até mesmo mais celeste do que os que Julian estava acostumado a encarar. Ou então, talvez, Nick Valensi de todo fosse mais celeste do que os sujeitos ou mulheres com quem Casablancas estava acostumado a lidar. Por vezes, durante o primeiro encontro com o menino – a data em que haviam decidido que era naquele mesmo recinto que Nick teria aulas de violão -, perdera-se na inocência reluzente dos seus olhos claros. E tivera de recuperar-se sem deixar vestígios das sensações que o haviam dominado.
Valensi, ao ser finalmente apresentado ao banheiro, lançou um olhar ao outro que parecia bem capaz de devorá-lo em poucos segundos. Um olhar que, ao mesmo tempo que agradecia com a ingenuidade de uma criança, lançava-lhe uma pergunta não menos provocadora do que: “Já vai?”.


   Pensando com calma sobre o assunto, provavelmente eram aquelas atitudes de Nick que deixavam o maior tão desnorteado – era justamente sua incapacidade de interpretar as verdadeiras intenções de um garoto de onze anos que o fazia quase um escravo desse. E um garoto de onze anos. Onze.


   Assim que viu Valensi entrar no banheiro que pedira para usar, Julian percebeu o quão violentamente o próprio coração pulsava – ele parecia pura e simplesmente entalado em sua pobre garganta. Virou as costas para a porta que acabava de se fechar e, fazendo um grande favor a si mesmo – e a toda a humanidade -, recomeçou seus passos em direção à própria sala, concluindo assim que o outro era bem capaz de refazer seu caminho sem ajuda e sozinho. Enquanto batia os pés com força sobre o chão do corredor, Casablancas ainda abriu um pouco o colarinho da camisa branca que vestia, e arrumou sua gola. Precisava parecer convincente quando reencontrasse Danielle e, mais do que isso, recuperar-se sempre, sem jamais deixar vestígios das sensações que o vinham dominando.


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