Eu e Megan entramos em casa. Estava me sentindo estranho, sem entender por que eu trouxe aquela garota detestável comigo, mas eu tenho quase certeza de que é porque eu fiquei mexido com o telefonema do meu pai.

Megan sentou-se à mesa da cozinha e bebeu de uma só vez o copo d’água que eu a entreguei.

“Sua casa é legal.” Ela falou “Eu sinto falta da minha.”

“Seus pais te expulsaram ou algo assim?”

“Não, eu saí.”

“Ué, então volta.”

“Se fosse simples assim...” ela suspirou “Eles brigaram comigo por causa de uma carta que a diretora mandou.”

“Uma carta, é?” Nível de culpa: 45% e aumentando.

“Isso. Tivemos uma discussão e eu questionei aquilo que você falou sobre adoção...”

“Entendo.” Nível de culpa: 60% e aumentando.

“Eles confirmaram e eu fiquei chateada por eles terem escondido isso esse tempo todo. Daí eu disse que eles nunca vão ser meus pais de verdade e saí de casa.”

“Onde você tá morando então?”

“Na casa de uma amiga minha, Harriet, mas eu me sinto mal de ficar chorando na frente da família dela, então eu fui pro...” ela parou o que estava falando e mudou de tom “Afinal, por que você está fazendo isso?”

“Isso o quê?”

“Ouvindo meu desabafo.” Ela apertou os olhos. “Você está se sentindo culpado com alguma coisa?”

“N-não, por que eu me sentiria culpado? Você é que deveria se sentir culpada.” Virei a mesa, figurativamente. Por pouco não foi literalmente.

“Desculpa pelo seu olho roxo.” Ela se debruçou no tampo de madeira. “Tá vendo? Você tem razão, Mycroft, eu sou uma pessoa horrível que precisa de muita ajuda.”

“Bem, aceitação é o primeiro passo." Falei em um tom irônico. Ela não se moveu, nem replicou. Suspirei e puxei uma cadeira para mim. "Olha, eu não sou muito bom em consolar pessoas, mas você podia descontar sua raiva numa aula de boxe.” Sugeri. “Ou quem sabe, frequentar a psicóloga do colégio. Ajuda bastante.” (Vou cobrar pelo merchandising, viu avaliadora?)

“Pode ser.” ela falou, desanimada “Por que você está sendo legal comigo?”

“Sei lá, mas serve pra te mostrar que eu sou superior a você.” Falei, enquanto levantava e pegava ovos na geladeira. “Agora se me der licença, minha compaixão está se esgotando e eu tenho uma torta pra fazer.”

“Posso ajudar?”

Neguei. Não queria que aquela garota colocasse os dedinhos sujos na minha torta. Mas eu estava com o problema do fermento e Megan falou que sabia fazer fermento caseiro. Por fim, tive que aceitar.

Em quarenta e dois minutos, nossa torta de maçã estava no forno e nós, cansadíssimos recostados no sofá. Sherlock desceu correndo as escadas, alegando que não estava conseguindo se concentrar com aquele cheiro todo de torta pela casa.

Tiramos do forno e comemos até cansar. Calda de tom caramelado escorrendo por entre a massa de borda crocante, simplesmente tudo o que eu precisava naquela hora.

Fechei a porta e levei Megan até a calçada.

"Acho que eu vou mesmo falar com a psicóloga. Porém não sei se estou pronta para me acertar com meus pais e voltar pra casa.”

“Você tem sorte de ter seus pais por perto sempre. Deixa de besteira e volta pra casa.” Falei.

“Na verdade, eu estava pensando em dar uma passada na casa do Pompom.”

“Sem querer ser rude, mas já sendo, você foi uma megera com o Greg." Ela arregalou os olhos, mas conteve qualquer coisa que passou pela sua cabeça. "Portanto eu quero que fique longe dele. Ele levou muito tempo pra superar tudo o que aconteceu e eu não quero que você apareça e estrague tudo.”

“O que importa é que eu vou me tornar uma pessoa melhor e o Greg vai me perdoar, você vai ver. Nem você vai conseguir me tirar do sério.”

"Ele pode até te perdoar, mas duvido que ele volte pra você. Aliás, eu nem sei o que ele viu em você."

"Bem, uma coisa é certa, ele tem um péssimo gosto para amigos."

"Mas será que você podia pelo menos ser educada? Eu te dei torta."

"Você quer dizer a torta que eu ajudei a fazer e comi até mais do que eu estava com vontade só para colaborar com a sua dieta?"

"Ei, quem disse que eu estou de dieta?" olhei para a silhueta de cachinhos na janela "Sherlock!"

Nisso, minha mãe vinha subindo a rua e no que me avistou conversando com Megan, deu um largo sorriso. Eu preciso explicar uma coisa sobre a minha mãe. Sabe quando você é pequeno e os adultos ficam te perguntando quantos filhos você vai querer ter quando crescer? Eu sempre respondia "nenhum" porque eu "nunca ia casar". Porém minha mãe nunca se conformou com isso. Ela planeja mentalmente meu casamento todas as vezes que me vê conversando com uma pessoa do sexo oposto. Era isso que ela estava fazendo agora.

"Oi, queridos, não vou atrapalhar vocês." ela disse sorrindo, enquanto entrava pelo portão e se juntava a Sherlock, na janela. Deprimente.

Megan ficou sem saber o que pensar, então voltei para o ponto principal da conversa.

"A questão é que eu não estou de brincadeira, Megan, Greg é meu melhor amigo e eu não vou deixar que ninguém faça mal a ele, ouviu bem?” falei encarando-a diretamente. “Vá pra casa, peça desculpa pros seus pais e procure a psicóloga amanhã.”

"Não sei se consigo, sabe, eu ainda estou meio sensível hoje."

“Sensível é a última coisa que você é. Agora vá, não passe na casa do Gregory e até nunca mais.”

“Tchau, Mycroft.” Ela suspirou, acenou e foi andando. Ainda gritou um "boa sorte com a dieta" que eu fingi que não ouvi.

Entrei em casa morrendo de vergonha pelo sorriso bobo que minha mãe carregava. E ela não pronunciou nenhuma palavra, só ficou fazendo aquela cara, o que era mil vezes pior do que se fizesse um comentário que ia me dar a chance de rebater.

Para cortar aquele clima constrangedor, passei para ela o recado que meu pai havia dado. Ela sorriu e foi dormir. Eu e Sherlock ficamos um tempo na sala.

“Não sei se entendi o que aconteceu aqui. Eu achei que aquela menina fosse malvada.”

“Bem, ninguém é totalmente bom, nem totalmente mau. A vida não é que nem nos filmes, Sherlock.”

“Isso significa que vocês fizeram as pazes?”

“Mantenha seus amigos por perto e seus inimigos mais ainda, não é o que dizem?" dei um sorriso forçado e subi para o quarto.