Areia Movediça escrita por Yuna Aikawa


Capítulo 1
Uma noite no bulevar


Notas iniciais do capítulo

É uma história bobinha que não chega a lugar nenhum encontrada num canto escuro do meu computador.



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Mais uma noite abafada na magnífica Paris. Ah, eu poderia viver aqui para sempre com as mansões altas, as antigas ruas sinuosas apinhadas de mendigos, vendedores ambulantes, animais moribundos e nobres. E Nicki, minha eterna companhia, com quem me dirigia ao Bulevar todas as noites, sorria com seu violino como uma criança no natal. Pouco nos importávamos em dormir em castres e acordar cedo com os vizinhos brigando. Estávamos em Paris, longe de nossos pais e caminhando sem destino em plena liberdade, de braços dados, através das inúmeras ruas e travessas, enfrentando o barulho e estardalhaço da cidade grande, a incansável atividade de seus milhares de trabalhadores.

Tivemos sorte de sermos contratados por um bar do Bulevar logo no nosso primeiro dia aqui. Acabei pegando o posto de barman enquanto Nicki tocava seu violino para as dançarinas no palco. A vida era uma festa, Renaud, o dono do local, era paciente ao me passar as dicas de atendimento e como lidar com clientes ébrios que saiam dos teatros da região.

Durante cinco ou seis horas todas as noites, eu vivia e respirava num pequeno universo de homens e mulheres que gritavam, riam e brigavam, pedindo suas bebidas em tons esganiçados seguido de risadas escarnias. E o violino de Nicolas devia superar toda a agitação do local para que dançarinas como Luchina pudessem levantar suas saias sem sair daquele ritmo frenético que atraia os clientes para perto do palco.

Mas Renaud não parecia satisfeito com o movimento em sua taberna, encarava a mim e meu amigo com aquela perfeita máscara de desdém, como se não fossemos bons o suficiente para seu estabelecimento, mas mesmo assim, deixava seus empregados cuidando do local. Sinceramente, eu dava ombros e continuava a atender os clientes no meu pequeno mundinho de prazer, os cavalheiros usando meias com babados e bengalas de prata, saltitando na imundice da cidade com seus sapatos em tom pastel, e as damas com suas perucas empoadas cheias de pérolas e oscilantes anquinhas de seda e musselina, numa patética tentativa de copiar a rainha Maria Antonieta.

Então vinham as mais fantásticas histórias que eu já ouvi em minha vida. Contos bizarros de pessoas tão embriagadas que eu sequer conseguia distinguir o que era verdade ou mentira ali.

- Sabe, jovem – Um homem alto chamou-me no balcão – Você é um rapaz muito bonito.

- Obrigado, senhor – Sorri – Gostaria de beber alguma coisa?

- Rum – Sibilou sem pressa.

Era um verdadeiro senhor, um nobre cavalheiro de quarenta e poucos anos, talvez, com seus cabelos grisalhos, tinta e pergaminho. Ele escrevia sem parar as coisas que observava ao seu redor, sequer desviou seus olhos da lauda quando lhe entreguei seu pedido.

“Marius”, disse repentinamente, assustando-me. “Meu nome”.

- Lestat – Respondi ao me recuperar, forçado um sorriso.

Surpreendi-me com a simplicidade daquele diálogo, tão incomum em Paris, a ponto de querer conversar mais, mas não pude dizer mais nada, já que Luchina pulara do palco para se jogar em meu pescoço, beijando-me de um modo abrupto. Afastei-a gentilmente e lhe pedi para voltar ao seu posto para que eu pudesse atender aos demais clientes. A morena sorriu e me obedeceu, cambaleando até tablado de madeira, onde as dançarinas rodopiavam em seus saltos.

Balancei negativamente a cabeça e voltei ao trabalho, servindo mais Gim para mais um nobre rapaz cabisbaixo. Ele ergueu o olhar para mim e lançou-me um sorriso tímido sem mostrar os dentes, num aceno com a cabeça, antes de virar o pequeno copo e me pedir mais.

- O senhor não acha que já bebeu demais? – Perguntei do modo mais educado que pude, enchendo-lhe novamente o copo.

- Não – Soltou os longos cabelos cor de chocolate – Acho que agüento mais.

- Aconteceu alguma coisa, senhor? – Uma pergunta apenas por educação, claro, eu só estava ali para abarrotar seu copo de álcool.

- Mais – Demorou um pouco para responder.

Suspirei, enchendo seu copo mais uma vez e, no fundo, imaginando se ele teria dinheiro o suficiente para pagar no final.

- Acho que sou doente – Falou, gesticulando para eu preencher novamente seu copo – Isso não é normal.

- O que aconteceu? – Ousei perguntar.

- Amor, rapaz. Amor – Um suspiro, um pedido silencioso para lhe servir novamente – Mas ela é tão perfeita com seus cachinhos loiros angelicais, seus olhos azuis, seu sorriso inocente – Fechou os olhos – Eu jamais poderei tê-la como amante.

- É uma moça comprometida, senhor? – Mais uma dose.

- Não.

- E qual seria o problema então, meu senhor? A garota já está apaixonada por outro? – Negou com a cabeça – Estamos falando de uma pessoa viva, certo? – Perguntei cauteloso, temendo as loucuras ébrias dos nobres parisienses.

- Por Deus, cale-se! Estamos falando de minha filha, Claudia – Seu rosto se fechou numa careta de choro – Meu pequeno e falecido anjo.

- O senhor tem razão – Enchi novamente seu copo – Você nunca poderá tê-la como amante.

Afastei-me dali assim que pude, deixando outro barman cuidar daquele caso. Fui de mesa em mesa com uma bandeja de garrafas, servindo aqueles que me pediam doses adicionais e, quando eu finalmente consegui voltar ao balcão, Marius ainda estava lá, com uma pilha de páginas escritas.

- Ocupado? – Perguntou-me sorrindo.

- Não mais que o habitual – Sorri em resposta, oferecendo-lhe uma dose de rum ao seu copo vazio – Vejo que escreve bastante, senhor.

- Sim, sou um estudioso – Respondeu orgulhoso antes de regozijar-se com um longo gole da bebida – Estou escrevendo um livro sobre o mundo.

- Sobre o mundo, senhor? Isso não é muito pretensioso?

- Talvez, talvez – Abriu um sorriso paterno - Onde está o dono da taberna?

- Renaud? Teve ter saído novamente – Coloquei novas garrafas sobre a bandeja de prata – Tem algo a tratar com ele, senhor?

- Como é curioso, meu bom jovem! – Brincou – Não, nada em especial. Apenas queria saber alguma história interessante de Paris, algo que só moradores sabem. Renaud costuma deixar o lugar?

- Às vezes. Geralmente ele vai até o porto, abastecer o estoque – Menti. A verdade é que Renaud nunca deu qualquer satisfação antes de sair.

- Entendo – Lançou-me um olhar paciente – Isso não é muito interessante para escrever.

- Imagino que não.

- Você é daqui, Lestat?- Mais um gole.

- Não, não, senhor... Sou de Auvergne.

- Vem do campo então? – Sorriu - O que tem lá?

- Montanhas, floresta. Nada de muito diferente.

- E o que te levou a vir para a capital? – Ele molhou sua pena na tinta, esperando minha resposta.

- Estava à procura de dias eternos.

- E conseguiu?

Sinceramente, não era prazeroso falar de minha terra natal. Minha mãe estava morrendo sozinha lá e eu trouxe meu único amigo junto comigo. Mas também não queria decepcionar Marius, não aquele nobre bebedor de rum, então eu comecei a murmurar minha história, minha “doença da mortalidade”, desde a infância até minha fuga para Paris, dando ênfase ao episódio da alcatéia e do Lugar das Bruxas.

Marius ouviu tudo atentamente, anotando algumas palavras chaves e lançando breves olhares para Nicolas toda vez que eu o citava. Ficamos alguns minutos em silêncio, ignorando o alvoroço à nossa volta e, por fim, jogou alguns francos na mesa e me agradeceu enfaticamente.

- Um livro – Disse-me ao se levantar – Um mísero livro sobre seus vintes anos de vida venderia mais do que qualquer um com 20 mil anos de História – Sorriu - Melhoras à sua mãe.

- Um livro, ahn? – Repeti às suas costas.

- Areia movediça – Disse-me sem se virar - É assim que vejo sua vida.

Sorri para mim mesmo imaginando minha história sendo publicada enquanto rodeava mais uma vez a pequena taberna de madeira escura, distribuindo bebidas e beijos aos mais ébrios. Aquela agitação toda apenas aumentava o calor da noite, mas eu não me importava, ouvia Nicki tocando em seu ritmo enlouquecedor em meio às risadas frenéticas da clientela.

Havia apenas um único homem que não parecia contente. Um único nobre que evitava olhares e sorrisos: o tal pai apaixonado pela falecida filha. Aproximei-me novamente daquela mesa escura e abandonada pelos demais atendentes, oferecendo qualquer coisa que tinha na bandeja.

- Você acha que eu sou louco? – Perguntou.

- Talvez. Pouco importa o que eu penso, senhor.

- Ponte Du Lac. Louis Ponte Du Lac – Pronunciava de forma lenta e impecável.

- Certo, senhor Du Lac – Servi-lhe mais uma dose. Passaria a noite toda fazendo isso se dependesse dele.

- Acha que eu sou louco? – Repetiu.

- Não me faça perguntas e eu não lhe direi mentiras, senhor Du Lac. Não acho normal tamanha atração pela própria filha.

- Mas sua beleza é um fio que me puxa para um labirinto. Não sou eu quem puxa o fio. É ele quem me puxa. E agora eu a perdi!

- Não se pode perder alguém que nunca teve realmente, não?

- Ela sempre esteve lá quando eu mais precisei! Enquanto todos me deixavam para trás, ela ficou ao meu lado, não me largou até o fim – Agarrou meu braço - Sei que é loucura ainda pensar nela, em seu toque, sua incrível habilidade de tornar tudo mais fácil.

- O senhor está bem? – Uma voz forte e imponente atravessou nossa conversa, assustando-nos. Quando alguém como Renaud pergunta como você está, na verdade não querer saber a resposta – Poderia soltar meu empregado, senhor?

Dizer que meu chefe me salvou de ouvir uma crise de choro seria constatar o óbvio, mas Renaud apertou minha mão e me fez ouvir novamente as intermináveis lamentações do jovem Ponte Du Lac.

- O que eu devo fazer agora? – Louis parecia desesperado.

- Pagar a conta – Foi seco.

- O quê?

- Estamos fechando.

E o inflexível Renaud atacara outra vez. Louis piscou algumas vezes antes de pegar alguns francos que guardava no bolso da casaca, parecia realmente perdido em si mesmo.

- É o suficiente? – Colocou as moedas na mesa.

- Sim. Obrigado pela preferência, senhor.

Esperei todos saírem do local para gargalhar com Nicolas e Luchina, rodopiando com a moça ao som do violino por mais uma noite bem sucedida. Renaud apenas suspirava em seu tédio enquanto juntava os francos sobre a mesa de Du Lac.

- Eu estava pensando... – Disse num tom elevado, superando a melodia do violino – Vocês me acompanhariam aonde quer que eu fosse?

- E aonde você iria, Rê? – Luchina o circulava numa espécie de dança sem ritmo.

- Acabei de fechar negócio com um teatro aqui do bulevar. Preciso de atores, músicos e dançarinos. Preciso de vocês.

- Trocar uma espelunca por outra? – Ironizei com um largo sorriso – Acompanho você até o inferno se for preciso, Renaud.

Mas você me acompanharia até lá?


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