Como me tornei uma mentira - Parte Um escrita por Somenone


Capítulo 2
Uma enrolação antes de ir ao primeiro capítulo


Notas iniciais do capítulo

Apesar do título pouco convidativo, leia. Mais tarde você entenderá a importância.



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Ah, os outonos. Época de frutas, folhas secas a enfeitar os jardins; lareiras acesas e chocolate quente. Minha estação predileta.

O único contraponto é que temos escola durante o outono. E não pense que sou do tipo de garota que detesta escola só porque tem um monte de lição de casa, pessoas, vadias e contato social. Ugh, ugh.

De fato, eu tenho pouco contato social. Por isso lições de casa não tiram meu tempo com os amigos, pois não tenho nenhum. Vadias não me incomodam, pois elas nunca me encontraram para tirar sarro das minhas pintas.

É um pouco triste, mas não completamente. Não me sinto incomodada em estar sozinha – afinal, eu não me sinto sozinha. Na solidão-não-solitária em que vivo, eu observo muito. Escuto muito. Faço amizade com os passarinhos miúdos da cidade. Converso com as flores frágeis que tem coragem de crescer no solo duro do jardim abandonado do vizinho. Às vezes passeio com os cães de alguns vizinhos e rego as hortas do bairro. É o suficiente para que eu possa comprar meus livros sem precisar pedir dinheiro emprestado o tempo todo pra minha mãe.

Quanto a isto... Semana passada eu comprei o meu 574º livro. Ao lê-lo, completei a minha meta de leitura desse ano: 80 narrativas diferentes. E estamos no meio de junho.

Não é brincadeira.

Minha estante é o meu orgulho. Minha mãe diz que a minha biblioteca particular é o meu "xodó”. É bem verdade que eu tenho um afeto especial pelos livros e cuido deles com muito carinho (limpá-los, entretanto, dá muito trabalho). Mas a joia de minha coleção não é a coletânea de Júlio Verne ou o florilégio de Agatha Christie com notas pessoais de meu avô, não. Meu livro predileto é “O Jardim Secreto” de Frances Hodgson Burnett.

O incrível Frances Hodgson Burnett.

Ele conseguiu captar todo o cerne do meu ser ao descrever a pobre e amarela Mary. Tão pequena, tão esperançosa, tão solitária…

Você não acreditou quando eu disse que não sofria com a solidão, certo?

Ora essa! Ninguém gosta de fato de se sentir só, mas aprende-se muito no escuro, principalmente que é importante enxergar.

Seria fácil para eu simplesmente obter a minha reentrada épica na atmosfera gloriosa da sociedade e me infiltrar nas camadas mais badaladas. Todavia, eu tenho esse pequenino problema – e não são as minhas pintas infernais espalhadas em toda a extensão dos meus braços. É essa minha mania incontrolável e irresistível de mentir.

Eu odeio mentir. Odeio a sensação grudenta que deixa, ocupando espaço em sua memória e deixando seu peito pesado. Mas eu não consigo evitar. Simplesmente acontece, como um passe de mágica.

Pronto, já aconteceu de novo.

O problema é que eu sou muito irônica, extremamente sarcástica e um tanto sádica. (Estou me revelando muito rapidamente. Preciso tomar cuidado).

Minto para ver quem vai perceber. Não por hábito, do tipo “ah, lá vem a Melissa de novo com aquelas lorotas”. Procuro desesperada e inutilmente por uma mente irônica e afiada como a minha – honestamente.

Chega de falar dos meus assuntos internos. Isso é outra história.

Não sei se menti sobre a linda inexistência de amigos. Sou muito apegada à minha mãe (não ao meu pai. Ele não morreu nem abandonou minha mãe, mas é piloto do exército – e todos sabem que o exército é incapacitado de comunicar-se com a família. Não é assim no seu país? Bem vindo a Carginthan), mas sei que não é isso que querem saber.

Além das flores, converso com algumas pessoas. Quatro, para ser exata. O primeiro da lista é Andrea Gane. Cara legal, conhecido bacana. Senta atrás de mim na aula e faz comentários inteligentes sobre a aula inútil de geografia. “Quero dizer, por que exatamente eu preciso aprender sobre o relevo de Bangladesh se eu vou fazer Recursos Humanos?”.

A segunda é Muriel Fletcher, uma menina de cabelos longos e uma pinta logo abaixo do olho esquerdo, o azul. Antes que me pergunte, sim, ela tem heterocromia. É, o direito é de um tom amarronzado. Também é conhecida como o outro único ser humano do sexo feminino em todo o segundo ano do colegial que não detesta educação física além de mim. Infelizmente, ao invés de nos darmos bem jogando silenciosamente e com sorrisos nos lábios, ela insiste em opor-se à minha amizade e desafiar-me, apenas para se mostrar para os meninos do outro lado da quadra.

Para o revés dela, eu sou muito mais ágil. Afinal, não preciso me preocupar com a perfeição do meu odor depois de sair da quadra. Tradução: não me incomodo em suar.

A terceira pessoa é Freddie Mercury. Não é piada, apesar de até mesmo eu pensar que estavam mentindo para mim – algo com uma chance em um trilhão de acontecer. A explicação me dada pelos próprios pais (foram chamados na escola, uma vez que os diretores achavam que a cria chamava demasiada atenção por conta do pseudônimo) foi que eram grandes fãs da banda. Em contrapartida, o menino é gago e esquisito, o cabelo amarelo sempre escondido da touca preta.

Apesar de toda aquela esquisitice, era o mais próximo que eu podia chamar de melhor amigo. Gostava de ler, tocava baixo e vendia bolinhos para a caridade todos os sábados. Era um cara bacaninha.

É engraçado pensar em suas histórias agora, depois de tudo que passei. Costumavam ser importantes para mim. Mas falemos delas depois, quando eu estiver entediada ou muito triste. Contá-las pode me animar.

Sim, pois existem partes tristes na minha história, como na de qualquer um. Joguem pedras no primeiro bastardo que declarar nunca ter sofrido, mesmo que fosse para abrir o vidro de azeitonas.

A quarta pessoa é a minha professora de física. Seu nome não importa, principalmente porque ela pediu para que eu não o revelasse. Entretanto, para evitar repetições como “minha professora”, ou “a professora”, ou até mesmo o longíssimo “a minha professora de física”, vamos apenas a chamar de Senhor(it)a Thames.

Por ‘senho(it)a’ entenda que nem mesmo eu sei se ela era casada ou não. Também não saberia dizer se tinha vinte ou quarenta anos. Ela era o ser humano que mais me assustava. E isso é a mais pura verdade.

Ela conversava comigo toda quarta-feira na hora do almoço e todas as sextas na hora da saída. Era quase como um ritual. Nossas conversas nunca passavam de sete minutos e cinquenta segundos e sempre giravam em torno de família e revistas que lemos em comum. Nunca contamos histórias uma para a outra, tampouco nos olhávamos nos olhos.

Disseram que ela foi embora da escola naquele dia, só que eu sei a verdade. Não vou contar agora: primeiro preciso explicar porque raios eu fui tomar aquele bendito ônibus.


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