Monstros S.A. Origens - Mary escrita por Rodrigo MariMoon


Capítulo 1
Quando ele entrou na minha vida...




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– Mary, querida! – escutei minha mãe gritar. – Se apresse. Vai se atrasar para a creche!

Desci cambaleando pelas escadas. Apesar da minha pouca idade, eu era meio precoce. Quando cheguei à cozinha, meus olhos arderam com a iluminação do sol pela manhã. Vi minha mãe tirar o avental branco e secar as mãos em um pano. Seus cabelos ruivos esvoaçaram, e vi um fio cair quando ela pendurou o avental. Meu pai ainda estava se arrumando.

– Mary, cadê o seu pai? – minha mãe perguntou. – Andy, meu amor!

Escutei passos apressados pelas escadas. Aquele homem de pele bronzeada e cabelos castanhos era o meu pai, Andrew. Ele estava ajeitando a gravata para dentro do paletó azul. Meu pai era gerente da loja Buy’n’Large. Minha mãe deu um beijo rápido nos lábios do meu pai. Ao mesmo tempo, senti repulsa e uma alegria mínima ao vê-los se beijando.

Meus pais, há três semanas, decidiram me contar que eu sou adotada, vim da Coreia do Sul e que eles decidiram adotar enquanto viajavam por lá. Meus pais foram a um orfanato em Seoul, e acabaram gostando de mim no momento em que viram aquele bebê de cinco meses que eu era. Eles disseram que eu já era inteligente o bastante para saber a verdade. Minha mãe temia que eu ficasse mal por isso, ou que eu acabasse me sentindo excluída com essa notícia. Mas eu compreendi e aceitei bem. Sim, eu tenho apenas dois anos, mas eu já compreendia muita coisa no mundo.

Quer dizer, meio que fui obrigada a amadurecer mais rápido, para não me traumatizar demais... Com aquela noite.

Em algumas noites da semana, um bicho tem saído do meu armário e simplesmente berrado na minha cara, saindo apenas deixando algumas gotas de saliva pelo meu rosto, e sempre dizia uma coisa que eu nunca me lembrava. Eu ficava traumatizada demais para conseguir me lembrar. As únicas coisas de que eu me lembro nesse bicho são que ele lembra uma lagartixa, andava erguido e que tinha uma feição assustadoramente humana.

Ah, claro, me esqueci de me apresentar: eu me chamo Mary Gibbs, tenho apenas dois anos. Meus pais se chamam Andrew e Monica. Moramos em um bairro tranquilo da California e meu pai sempre me deixa em uma crechea caminho do trabalho, enquanto minha mãe ia para o trabalho dela.

Minha mãe é atendente de uma loja de brinquedos, chamada Al’s Toy Barn, e tinha os cabelos ruivos mais lindos que eu já vira. Eram lindos e lisos, e eu adorava segurá-los em minhas mãozinhas quando eu era um bebê.

- Feliz aniversário, filha. – meu pai disse enquanto me abraçava. – Papai vai trazer um presente para você na volta do trabalho, ok?

Confirmei com a cabeça.

Estiquei o braço para a minha mãe, e fizemos um abraço grupal.

Eu não podia falar direito. Quando eu tinha um ano e sete meses, meus pais perceberam que eu não falava tão bem para uma criança. Eles me levaram para um médico. Observei o médico de cabelos grisalhos e lisos tirar os óculos e dizer que eu tinha afasia*. Isto é, eu jamais seria capaz de falar direito na vida.

- E então, filha? – minha mãe perguntou. – Quer a boneca cowgirl Jessie de presente?

Confirmei com a cabeça.

No caminho até a creche, meu pai deixou a minha mãe na loja de brinquedos. Ela beijou os lábios do meu pai, me deu um beijo na testa, disse que me ama e saiu apressada. O carro demorou a acelerar.

Meus cabelos negros, lisos e curtos estavam presos com dois elásticos, um de cada lado, e as bolinhas rosa nos elásticos faziam feixes de luzes nas costas do banco do passageiro do carro.

Meu pai olhou para mim pelo espelhinho, e abriu um sorriso de lado.

Na porta da creche, uma mulher de cabelos negros e ondulados que trabalhava na creche me tirava do carro, e se despedia do meu pai. Fiquei acenando até o carro dobrar a esquina. Eu entrei correndo e me sentei no tapete, junto com as outras crianças, e peguei uma arraia azul com bolinhas esbranquiçadas que estava no chão. Jogava para o alto e ria. As outras crianças não notavam minha deficência na fala. Como meus pais notaram que eu era um gênio? Poucos dias depois de eu começar a ver aquela lagartixa gigante sair do meu armário, comecei a ler para tentar me acalmar um pouco. Meus pais se assustaram quando me viram pegar o livro O Hobbit, de J.R.R. Tolkien, para ler. E viram que, de certo modo, eu compreendia o que estava escrito, pois eu sorria, soltava lágrimas e me espantava a medida que eu lia. Aprendi a ler sozinha. Então, eles me levaram a uma espécie de médico, ou algo assim, e fizeram uns testes comigo, com blocos, e outros brinquedos. Esse tal médico disse que eu tinha 110 pontos de QI. Meus pais se animaram com a noticia, embora ainda estejam preocupados sobre a minha afasia.

De noite, meu pai apareceu para me buscar. Dei um beijo no rosto da mulher que supervisionava a mim e as outras crianças na creche e entrei no carro correndo. Coloquei o cinto e tentei dizer oi, pai. Infelizmente, o que pude dizer foi:

- O’p... – abaixei os olhos para o meu próprio colo. Eu me senti profundamente constrangida por não conseguir cumprimentar o meu pai adequadamente.

- Boa noite, filha. Se divertiu hoje, na creche?

Eu queria poder dizer sim, pai, meus colegas cantaram parabéns para mim, comi bolo e tudo mais, mas infelizmente não sobrou pedaço de bolo para você nem para a mamãe. Mas tudo que eu pude fazer era confirmar com a cabeça.

- Comprei uma coisa que você vai amar. Mas só vou poder mostrar quando chegarmos em casa, hein. – ele sorriu para mim, e acelerou o carro.

Ele buscou a minha mãe na loja de brinquedos. Ela tinha prendido os cabelos ruivos em um coque que a deixava com uma aparência bem diferenciada. Eu sempre a via ou com cabelos soltos, ou presos em um rabo-de-cavalo, ou com uma trança única jogada no ombro. Ela, nas últimas semanas, dizia que assim que meu cabelo crescer mais, ela iria fazer mais de mil penteados em mim.

Quando chegamos em casa, minha mãe me puxou para o colo e girou duas vezes antes de me abraçar e me dar um beijo no rosto. Eu ria. Meu pai puxava uma caixa de papelão rosa de dentro do porta-malas, e um embrulho laranja um pouco maior que a mão dele por cima. Ele fechou o porta-malas e apertou a chave do carro. Pisquei junto com as luzes alaranjadas do carro, e meu ouvido zuniu com o leve apito que o carro deu.

Entramos na cozinha. Minha mãe me pôs no chão, e escalei a cadeira. Fiquei de pé na cadeira, com os cotovelos apoiados na mesa. Meu pai colocou a caixa rosa enorme em cima da mesa e abriu. De dentro, ele puxou um bolo marrom redondo, com as bordas rosa. Minha mãe sorria para mim. Eu estava tão alegre. Minha mãe acendeu uma vela. Meus pais cantaram parabéns pra você batendo palmas. Eu bati palmas junto com eles, sorrindo.

- Vai, filha. Faz um pedido e assopra. – minha mãe disse empurrando o bolo para mais perto de mim.

Em minha mente, eu tinha apenas um desejo: poder falar direito.

Assoprei as velas. Eles bateram palmas para mim, e fui no embalo.

Meu pai estendeu o embrulho para mim. Assim que abri, fiquei maravilhada.

- Sei que você gosta de ler livros, Mary, então... – meu pai disse. – Espero que goste desse.

Ele tinha me dado o livro Harry Potter e A Pedra Filosofal, de J.K. Rowling. Como eu não podia falar direito, abracei o livro e sorri, como forma de agradecimento. Eles sorriram animados.

Minha mãe estendeu uma caixa branca para mim. Assim que peguei e virei-a, vi que era uma cowgirl Jessie, daquele programa que minha mãe tem em VHS. Assisti a todos os programas com a minha mãe. Até hoje, queria saber como foi o programa que se chama A Hora da Verdade do Woody. Minha mãe não tinha esse episódio gravado.

Quando vi a boneca Jessie, saltei da cadeira, corri até a minha mãe e a abracei. Ela riu e me puxou no colo. Meu pai me deu um beijo no rosto.

- Nós te amamos, Mary.

Fui para o meu quarto, depois de eu e meus pais comermos o bolo e minha mãe guardar o resto na geladeira. Eu tinha me vestido com a blusa rosa muito larga, e uma bermuda azul. Coloquei as meias para dormir. Era um hábito que peguei sem razão alguma. Me deitei na cama e encarei a porta do armário, receosa. Acabei me lembrando o que aquela lagartixa gigante dizia: eu voltarei, garotinha...

- Oi, tem alguém aqui? – escutei uma voz gritar dali de dentro. Não era a da lagartixa gigante. – Tem uma porta aqui!

Porta? O que ele quis dizer com isso?

Fui me aproximando da porta do armário lentamente. Assim que vi a maçaneta girar, dei um pulo silenciosamente para o lado da porta. Quando a porta abriu, vi algo que nunca tinha visto antes.

Era como um gorila com pelagem azul-clara. Tinha feições humanas, as garras cegas nas mãos, e andava de pé.

Sem medo, contornei a porta até para dentro do armário. O interior do armário estava maior do que antes. Minhas roupas tinham sumido. Parecia um depósito, ou um galpão.

- Oi, shh! – escutei o gorila azul sussurrar. – Tem alguém aqui assustando? Oi?!

Ele tinha uma cauda dentada? O que ele era, um gorila ou um lagarto peludo?

Reparei em bolinhas roxas em suas costas, parecendo hematomas. Assim que ele fechou a porta, levantei a cauda dele e soltei. Fazia um barulho engraçado. Fiz de novo. Olhei para cima e percebi que ele notou minha presença. Tentei dizer algo, mas minha boca disse:

- O’shie...

Ele berrou e se jogou para trás. Ele parecia sentir medo de mim, e eu estava adorando aquilo.

Aquele gorila azul com cauda era um monstro, mas era o mais fofo que eu já conhecera. Foi ele que me fez conseguir pronunciar minha primeira palavra: gatinho.

Sulley. Meu primeiro companheiro de estimação. Gatinho.


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Notas finais do capítulo

*afasia: é uma deterioração da função da linguagem, depois de ter sido adquirida de maneira normal e sem déficit intelectual correlativo. Se caracteriza por dificuldade em nomear pessoas e objetos.