Bem Vindo à Time Watch! escrita por alerea


Capítulo 1
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Notas iniciais do capítulo

Distopia é um tema bem interessante, livros como Jogos Vorazes e Starters me ajudaram :) enjoy



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Eu estava em frente à fachada da empresa, prestes a entrar e fazer minha entrevista. Estava na hora de eu arranjar um emprego de verdade. Dei uma olhada em mim mesma para checar a aparência: estava tudo bem. Eu tinha uma calça cargo, blusa de mangas compridas e uma bolsa daquelas de se pendurar no ombro. Meu único problema, talvez, eram os sapatos. Eu tinha aquele par há muito tempo. Sempre o usei em todos, ou pelo menos os principais, momentos da minha vida, e não usá-los me faria sentir realmente insegura. Estavam realmente desbotados e encardidos, mas imaginei que algumas marcas de graxa e um pouco de sangue não fariam muita diferença.

As únicas coisas que pensei que realmente me diferiam deles eram talvez mais básicas, como sobrancelhas. A sobrancelha daquela gente estava sempre impecável, muito bem feita, pelo menos era assim na TV e nas revistas. Meu rosto estava um pouco sujo. Se minha mãe visse isso, provavelmente iria me dar uma bronca: “Jane, esse seu rosto tá todo encardido, lava essa cara se quiser ir a algum lugar na vida”. Como se não bastasse, eu tinha algumas (pequenas) espinhas. O fato de eu ter espinhas era curioso, na verdade. Gordura presente na pele que inflama qualquer partícula que se acomode no seu corpo. Ter gordura em alguma parte do corpo era realmente a graça, já que eu nunca tive condições de me alimentar muito bem.

Minha mãe iria gostar que eu estivesse aqui; já Keila não gosta nem um pouco. Ela vivia insistindo para que eu fosse trabalhar com ela naquela oficina escura e apertada. Eu disse a ela que se ganha muito bem em lugares como este. Ela disse que não confia neles. Contratando crianças para servirem empresas, talvez como experimento, sem nunca declarar realmente como todo o esquema funciona. “Eles nunca foram honestos. No final, destruíram todo o planeta e hoje ele está desse jeito” resmungou para mim uma vez.

Eu lhe disse que eram tempos diferentes, que agora não existia mais gás, ou petróleo, ou peixes, ou animais de fazenda. A água custava cento e cinquenta dólares por galão e adquirir plantas ou frutas frescas era mais caro ainda. Eles não iriam e não podiam continuar manipulando coisas vivas e recursos limitados, pois não existia quase mais nada.

Keila nunca acreditou em mim. “Esses caras sempre dão um jeito. Você acha que eles vão passar o resto da eternidade fazendo energia de luz, vento e sal?” ela debochou, irônica, “Vou te dizer o que é feito de luz e sal” e puxou um daqueles biscoitos salgados, que parecem feitos de vento “Essa belezinha aqui”.

Mas a opinião dela não importa. Eu não tenho ninguém da minha família pra me sustentar. E tudo o que vejo são propagandas estimuladas pelo governo de crianças muito felizes servindo como voluntárias em empresas científicas e ganhando rios de dinheiro. Então porque não? Não sou obrigada a assinar nenhuma cláusula contratual que não deseje, pois o governo oferece garantia para esse tipo de coisa em menores. Isso tudo é inclusive uma ótima oportunidade de tirar meus próprios documentos como uma cidadã real. Não quero passar o fim dos meus dias a mercê da sociedade, trabalhando em oficinas irregulares, sem plano de saúde e sem comida nenhuma. Estou cansada de passar fome. Quero trabalhar.

Assim que pisei no tapete azul do grande edifício perolado, uma voz eletrônica surgiu. Nos tempos de hoje, essas vozes sintéticas são tão reais que você nunca sabe de onde o som está sendo emitido. Parece que alguém está do seu lado.

Bem vindo à TimeWatch TM Corporation. Por favor, identifique-se.

−Jane Adams, dezesseis anos, residente do Entulho−disse em voz alta.

Qual o propósito de sua visita?

−Vim fazer uma entrevista.

Ouvi um “click” discreto. Um pequeno compartimento com uma bandeja de prata revelou um crachá escrito “convidada”. Pelo jeito eles não tem nada específico para menores recrutas. As portas de vidro se abriram e eu entrei em um amplo saguão.

O espaço era dez vezes maior do que o terraço de qualquer prédio no Entulho, e mais limpo que toda a parte inferior da cidade. Ao caminhar por ali me senti algo errado, um pedaço de sujeira que destruía a harmonia esterilizada do local. Vi resquícios de coisas que só poderiam existir na Era Sombria, como colunas de mármore, mesas de madeira e alguns copos de cristal. Uma grama daquilo valia mais que três meses de salário em qualquer oficina nojenta da Keila.

A Era Sombria já foi conhecida como os nossos séculos XX e XXI. É chamada desse jeito por ser um período banhado em violência e exploração. Considerado, muitas vezes, como a época negra da sociedade contemporânea em que vivemos. Marcada por conflitos ideológicos, preconceitos diversos e governos de um homem só, chamados de “ditaduras”. Hoje, coisas como essas não existem mais. Naquela época, este país era rico. Naquela época, este país dominou o mundo. Mas agora, seu estado atual é triste comparado ao passado. Trabalhamos para abastecer outros lugares além do oceano.

O saguão tinha um teto alto, revestido de candelabros antigos, claramente decorativos, já que tudo era coberto por uma afetada luz sintética. Havia uma mesa baixa de mogno e taças de vinho transparente, poltronas macias que eu desejava loucamente experimentar, mas tinha medo de deixar marcas. Estranhamente, a cabine da secretária não era ocupada por ninguém. Eu estava sozinha.

Caminhei delicadamente até a parede feita de espelhos e me encarei de verdade pela primeira vez em meses. Eu estava péssima. As roupas estavam ficando pequenas, e a minha magreza doente não compensava mais. Tanto a blusa quanto a calça estavam cinzentos de poeira. Meu rosto, que eu já imaginava sujo, parecia ter saído de uma luta na lama.

A única coisa docemente familiar e intacta eram meus olhos. Eram uma mistura estranha de azul/verde muito sólido e rústico. O rabo-de-cavalo fora uma péssima ideia, mas eu achei que seria pior mostrar que não lavo os cabelos faz duas semanas. Xampu é caro. E os mais antigos são ilegais. Eles podem criar uma reação química que explodiria os esgotos da cidade. Eu estava tão entretida, que mal reparei que tinha um homem atrás de mim no espelho.

−Senhorita Adams! –dei um pulo e tentei me ajeitar rapidamente, mas o homem me interrompeu− estávamos esperando sua visita. Por favor, me acompanhe.

Ele tinha uma voz ritmada, tão comercial que me perguntei se não tinha o visto na televisão antes. Tinha cerca de quarenta anos e seu bronzeado artificial lembrava um Chester natalino. Contanto, era alto como uma parede. Por um segundo pensei que o edifício era grande só para acomodar pessoas como ele.

Atravessamos o saguão em direção ao elevador, e fiquei nervosa por um momento em ter que dividir alguns segundos dentro de um lugar sem rotas de fuga com um completo desconhecido. Mas, surpresa: o elevador era grande como tudo no prédio. Não era nenhum quarto, mas dava para umas quinze pessoas.

O homem passou a mão em um receptor movido à luz solar, revelando 23 botões que giravam em espiral. Ele apertou o botão com um “2” escrito e as portas se fecharam automaticamente. Ele aguardou paciente, parado no mesmo lugar que entrou, mas eu caminhava pela extensão. Nunca tinha visto algo parecido: Na parede oposta vários espelhos se projetavam criando uma bizarra sensação de fundo infinito. O elevador parou emitindo um som que veio acompanhado de um grande “2” surgindo acima de nossas cabeças e desaparecendo lentamente.

A sala que se seguiu não era muito diferente da primeira, mas esta era branca e tinha exclusivamente uma mesinha de madeira com dois assentos e um jogo de chá, dessa vez de prata. Uma lareira crepitava a alguns metros de nós. Uma musiquinha suave preenchia a sala enquanto o homem me servia um pouco da bebida em seu bule.

−Então, senhorita Adams, você está aqui pelo nosso programa de recrutamento Inter-Espacial, estou correto?

−Sim, exatamente.

Levei ambas as mãos à xícara e bebi o líquido com um delicioso sabor de abacaxi e amoras, desfrutando do calor que passava pelas minhas mãos.

O homem me deu uma rápida avaliada enquanto empunhava sua xícara com dois dedos na asa e sorvia delicadamente. Após o primeiro gole, ele recolocou o objeto na mesa e deu um suspiro.

−Acho que então devo ser o primeiro a fazer as honras−sorriu−meu nome é Viktor Johansson.

Johansson. Então ele era sueco? Pensei que como uma empresa de energia deveria esperar líderes indianos, mas... ele fazia parte de um dos países que eram supremacia no planeta. Keila tinha me avisado, eu nunca fui muito boa com política... Dane-se. Nada isso importa. Não tenho família, preciso me sustentar. Preciso de comida.

−Você trouxe os documentos? – perguntou.

Fiz com que sim. Esvaziei da bolsa os documentos recém tirados no cartório: Identidade, certidão de nascimento e CCI. O Cadastro de Cidadão era algo novo, talvez o documento do qual eu tinha mais orgulho, que registrava todos os moradores oficiais de uma cidade e os permitia todos os direitos civis. Com um pai que já foi militar, consegui ter um com mais facilidade. Viktor os examinou, e aprovando, empurrou-os de volta a mim na mesa.

−Esse...programa−continuou Viktor−Tem como objetivo uma espécie de... viagem, e provavelmente você será enviada para o espaço, como foi explicado no contrato original. Você tem ciência disso, certo? –assenti com a cabeça. Estava concentrada demais no chá− Bem, nossa empresa costuma trabalhar fora do mundinho azul com o qual está acostumada. Mas isso não será problema para você, certo de que já fez esse tipo de viagem na escola, ou...

−Eu entendo, senhor−interrompi− nunca fui fisicamente ao espaço, mas meu pai costumava servir ao governo. Sei que é um lugar seguro e habitável hoje em dia.

O homem pareceu sentir notável alívio ao ouvir essas palavras. Prosseguiu:

−Nosso objetivo seria, digamos, salvar o estoque de energia do planeta, extraindo o que gostamos de chamar de “a única opção viável no momento”, que seria tirar de um planeta onde ainda existe energia.

De repente, Viktor assumiu uma expressão grave. Ele se inclinou educadamente em minha direção, com olhar de sugestiva cumplicidade.

−Senhorita Adams, você já ouviu falar em... viagem no tempo?

A xícara vazia caiu no meu colo. Houve um silêncio incômodo.

− O que você quer dizer com isso? –perguntei, alarmada.

O que quero dizer, senhorita, é que a única maneira viável de salvar a Terra nesse momento é extrair energia de nossos antepassados, e o tempo está acabando.

Eu o encarei, perplexa. Não, não era possível. A energia do planeta estava acabando? Isso ia contra tudo que eu ouvira falar; tudo o que tinha sido dito pelo presidente, pelos famosos, pelas pessoas. Só uma pessoa praguejava contra o sistema atual, e essa pessoa era Keila. Mas Keila era doida, uma reles mecânica que sobrevivia consertando máquinas que funcionavam com a energia atual, sol, luz, água... Não. Era mentira. Tudo era um golpe.

−Você está mentindo. Temos sobrevivido de energia eólica por mais de trinta anos. A eletricidade vem da mecânica biológica, os Megawatts são fornecidos pelos passos das pessoas que...

Viktor deu uma sonora gargalhada. Fiquei boquiaberta, olhando o homem jogar a cabeça pra trás e em seguida me olhar com súbita raiva.

−A energia atual é FRACA, senhorita Adams. Qualquer um sabe disso. Me responda uma coisa−desafiou, irritado−como podemos sobreviver do sol em um planeta que não tem mais OZÔNIO? Como tirar energia de moléculas de água se a água atual esta altamente INFECTADA? Qual o sentido de usar física mecânica para extrair energia dos passos das pessoas se a população está DIMINUINDO, e os mais ricos quase não ANDAM mais? O sal está acabando, o Oriente Médio emergiu e se RECUSA a fornecer para os países que considera inimigos, e o planeta vai parar. Ele já está parando, senhorita, e nosso dever atual, com o mínimo de domínio já alcançado entre o espaço-tempo, é de prover energia antiquada o mais rápido possível até que possamos encontrar outro planeta ou, sei lá, tirar eletricidade dos pulos de um esquilo.

Aquilo foi coisa demais pra mim. Eu não poderia saber, jamais, que o planeta estava parando, porque nunca ninguém do Entulho teve o suficiente nem pra dar para os próprios filhos. Sempre achamos que os ricos estavam bem, os ricos tinham o poder, e acredite, em 2114 existe uma clara e grotesca diferença entre cada camada social. Somos literalmente empilhados, do pior para o melhor. O que vem depois de um Entulho é um Dejeto, e eu garanto a você que não gostaria de entrar lá.

Viktor deve ter percebido que foi grosseiro demais, pois se recompôs e continuou:

−O que nós queremos, senhorita, não envolve de forma alguma qualquer tipo de experimento de alto risco ou qualquer coisa que possa machucar você−ele me fitou severamente com pequenos olhos azuis− o que nós queremos é que você sirva como teste final no nosso experimento. Tudo está quase pronto, então é como se você fosse a estreante na primeira viagem no tempo já feita pelo homem. Nós já tentamos macacos, ratos e pequenos invertebrados, mantendo, claro, muito respeito e monitorando tudo cuidadosamente.

“Nenhum dos animais sofreu dano algum, mas é claro que todos são irracionais e por isso não puderam causar nada que alterasse o fluxo do universo como o conhecemos. É claro, Jane, que não estamos pedindo para você ser cobaia nas diferentes maneiras de destruir o tempo, já que o nosso plano é simples e direto: Quando avançarmos nossos estudos em viagem tempo-espacial, mandaremos trabalhadores que irão fornecer matéria-prima e transportá-la de volta para nossa época”.

−Espera. Existe um problema nisso.

Ele me encarou com visível dúvida enquanto eu recolocava a xícara de volta na mesa e suspirava profundamente. Isso tem coisas muito, muito erradas.

−Senhor Johansson, já passou pela mente do senhor que, quanto mais extraírmos energia do passado, isso vai afetar diretamente a quantidade de energia que temos hoje? Se o mundo tiver, supondo, 25% de energia a menos em 1950, isso vai se transformar em 50% em 2040, e logo não teremos nada? Nós ainda temos alguma coisa, mas é tão caro que nem sei se meu salário trabalhando aqui daria o suficiente.

Viktor deu um risinho com meu último comentário e esclareceu:

−A extração é uma medida provisória, Jane. É que no momento estamos realmente desesperados, e com poucas alternativas. O plano é que em breve faremos viagens mais distantes, com milhares e talvez milhões de anos, onde a matéria-prima ainda é abundante. Temos cientistas maravilhosos e sei que em breve tudo isso vai ser motivo de piada. Você sabe, a humanidade naqueles tempos sempre teve, digamos, um truquezinho extra, uma reserva escondida na manga. Um pedacinho não vai doer...

−Então me esclareça outra coisa. – continuei, firme – Eu quero ter uma garantia, de que não estamos afundando o mundo abaixo, de que tem gente especializada lidando com isso e eu não vou acabar explodindo no milênio passado pra ninguém próximo de mim não ter um corpo pra reconhecer.

−Você é uma garota esperta.

−Pode crer que eu sou−disse sem hesitação.

Vi uma mala ser puxada de debaixo da mesa e ser aberta na minha frente. Dentro dela continha um certificado da própria ONU com o selo da águia estampado. Continha várias assinaturas, de pessoas importantes, inclusiva a do homem que fazia a proposta.

−Essa é a primeira garantia, a de que não estamos afundando o mundo abaixo. Ou pelo menos, não sem o consentimento dele− a maleta foi fechada e guardada. – A segunda garantia, onde os seus entes tem um “corpo” a reconhecer, foi devidamente assinada e conferida como sua responsabilidade quando assinou o contrato original. Eu creio que os seus pais, ou avós, ou...

−Não tenho família−interrompi secamente.

−... bem, qualquer um que possa reconhecer você tem conhecimento do que você está fazendo e dos prováveis riscos. Agora, no que me diz a terceira garantia... Eu posso dar a você uma visita aos laboratórios daqui a três dias, no exato momento em que você assina o contrato adicional com todas as cláusulas, e que vai validar ou não as regras contidas no primeiro contrato. Se tudo der certo, em uma semana a partir de agora, você estará embarcando em um foguete em direção à base lunar para a sua primeira volta ao tempo.

−Enquanto eu estiver em outra época, eu vou estar por mim mesma, sem acompanhamento?

−Certamente não, mas isso será conversa para a próxima visita. Mas por enquanto−ele se levantou e puxou algo de dentro do paletó perfeitamente alinhado. Um envelope− eu quero que fique com isto, como, você sabe, um agradecimento pela primeira visita.

Ele jogou o envelope em cima da mesa. Pela abertura sem nenhum selo dava pra ver... Impossível. Haviam notas e notas ali. Senti minhas mãos tremerem.

Ele me mandou uma piscadinha. Injusto. Não, totalmente desleal.

O que tinha ali poderia me alimentar por semanas, eu nunca tinha pego uma quantidade tão incrível de dinheiro em minhas mãos. Minhas costas se esticavam lentamente, a espinha congelada enquanto eu erguia o envelope e contava as notas, como se estivessem cheias de jóias incrustadas.

Uma quantidade gorda, mas precisa o suficiente para me deixar querendo mais. Era como um tiro na água.

−Mu-muito obrigada− murmurei, pasma.

Johansson fez um gesto indicando o elevador. Ele não iria comigo desta vez. Guardei minhas coisas e me preparava para ir...

−Ah, e você pode ficar com essa sua... –ele fez um gesto distante, e que parecia com repulsa−xícara aqui.


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Notas finais do capítulo

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