Cécile escrita por Rebecca Lima


Capítulo 1
Letters from Nantes


Notas iniciais do capítulo

Capítulo único.



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de uma
delicadeza
que parecia
sem fim
passou do
puro jasmin
para a flor
mais podre
do meu jardim
J. Castro


Minha pequena e amada filha,


Posso recordar cada palavra dita naquela tarde ensolarada e assustadoramente delicada. Posso recordar cada detalhe de seus traços sutis e encantadores, aquelas feições que pareciam ter sido cuidadosamente esculpidas.


Estávamos nos casando, pode acreditar? Exatamente como a havia prometido, não faz tanto tempo, quando escapávamos do mundo pra observar as estrelas. "Em meus sonhos", ela dizia em um tom aveludado, tão singular e característico arrepio-me apenas ao lembrar, "nos casamos sob os salgueiros. Você e eu. A brisa suave que bate, chacoalhando as árvores e varrendo as folhas, será nossa única testemunha. Os pássaros se encarregarão da música. Você e eu. E o vasto infinito que nosso amor nos oferenda". E assim foi. Éramos apenas nós dois.


Vivíamos da nossa música. Não digo "vivíamos" apenas para mostrar que era nossa principal fonte de renda, mas para mostrar que era nossa única e fundamental fonte de vida. Nós fizemos a música, e a música nos fez. Não éramos famosos, muito pelo contrário — fomos, muitas vezes, julgados insanos por viver como gostávamos. Mas nossa música sempre foi bonita o suficiente pra nos alimentar a alma.


A inspiração sempre se fez presente, mais ainda quando me foi dada a notícia de que teríamos um filho. Essa criança é você, minha filhinha. Pode soar egoísta chamá-la de "minha" filha, sendo que tu és tão filha desse universo quanto eu, mas bastou vê-la tão frágil e pequena para me sentir responsável por mais um filho do universo. Por mais que fosse uma criação divina, estava sob meus cuidados.


Você nasceu em casa, meu amor. Sua mãe recusava qualquer vago pensamento de que lhe desse à luz em um hospital branco, frio e fechado. Dizia ser melancólico demais para uma cena tão bonita quando o nascimento de um novo ser. Ela conseguiu repelir essas ideias até o último momento, e você nasceu da forma mais bela, mais natural possível.
Poucos dias após seu nascimento, nós a levamos para as margens no rio Reno, lugar que tanto amávamos. Assisti ao nascer do Sol, agradecendo a oportunidade de tê-la comigo. Naquela manhã, pude contar a você e sua mãe toda a história do rio. Contei sobre a queda do Império Romano e a conquista da Alsácia por Luis XIV e sobre como o rio fazia parte do mundo germânico, que o denominava Vater Rhein, ou o "Reno Paternal".


Voltamos para casa. Pude perceber como sua mãe estava fraca. Nunca soube ao certo o que aconteceu, mas a cada dia que passava, o brilho de seus olhos diminuia. Minhas tentativas de renimá-la sempre foram em vão. Ela perdia, devagar, não apenas a felicidade que antes a inundava, demanchando-se em um sorriso largo em seu rosto — sorriso do qual comecei e sentir saudades —, mas a cada dia me parecia menos saudável. Eu sempre cuidei de você, tantas vezes sozinho. Mas tenha certeza de que amor e cuidado nunca lhe faltaram. Sua mãe não passava o tempo que gostaria contigo por limitações que a saúde lhe impôs.


Levamos uma vida um tanto monótona por algum tempo. Não demoramos muito nessa rotina, fomos surpreendidos por uma desagradável surpresa. Sua mãe acabou por morrer, com a cabeça recostada em meu peito, no meio de uma das histórias que eu a contava enquanto observávamos as estrelas. Foi uma cena um tanto traumática, mas eu a entreguei. A entreguei para a imensidão. O que seria dela após desencarnar desse mundo? Não tenho tanta certeza. Ninguém tem.


Ela foi cremada no dia seguinte. Levei suas cinzas até as margens do Reno, onde plantei um salgueiro — sua árvore predileta, curiosamente também conhecida como árvore da morte —, derramando as cinzas na terra.


Daquele dia em diante, éramos só nós dois. Você cresceu rápido e tinha os olhos da sua mãe. Não demorou pra que começasse a falar, andar, fazer amigos. Eu fazia músicas como antes, mas não eram iguais às que sua mãe e eu compúnhamos. Com a ajuda financeira dos meus pais, pude continuar vivendo da minha música. E saiba, meu amor, que você foi a inspiração de muitas e muitas canções.
Mas a cada dia você crescia, foi se tornando uma mulher. Eu, por minha vez, envelheci tão rápido. Me sentia um velho ranzinza por conta da solidão que passou a me acompanhar desde que sua mãe se foi.


Pelo o que vem a seguir assumo total responsabilidade. Talvez eu pudesse ter tentado me aproximar, talvez eu pudesse ter me esforçado um pouco mais. Mas você nunca foi fácil, filhinha. Sempre custou pra aceitar nosso estilo de vida. Você crescia, cada vez mais independente, e tantas vezes tentou iniciar incansáveis discussões, aos gritos, ansiando por respostas imediatas. "O que aconteceu com a minha mãe?", essa era a mais frequente. Por algum motivo, até então a mim completamente desconhecido, você sempre custou a acreditar que ela morreu, ainda mais quando não havia um motivo aparente. Eu não tinha mais respostas pra lhe dar, mas as perguntas não acabavam.


Nessa época nos mudamos para Nantes, a cidade da arte. Lá, cheguei perto de alcançar algumas oportunidades na carreira. De tempos em tempos você ouvia uma ou duas de minhas músicas antigas, feitas ainda na companhia de sua mãe. Mas qualquer um notava que você não era minha fã número um. Mas pareceu gostar de Nantes, sabia? Se adaptou muito bem, fez amigos. Ia a festas quase toda noite. Eu, um velho inocente, permitia que saisse e voltasse enquanto eu já dormia. O que poderia acontecer? Você estava se divertindo.


Uma noite, em especial, o noticiário alertou perigo em algumas ruas. Algo sobre roubos, estupros e toda essa parte ruim que passa a se tornar uma grande preocupação quando você mora em uma metrópole, principalmente quando tem uma filha jovem, bonita e por vezes explosiva. Naquela noite, não a deixei sair de casa. Você levantou a voz, me lembro bem, mas eu sabia que você havia entendido, apesar de insistir em discutir. Era só isso que sabíamos fazer, filha? Discutir? Não parecíamos nem pai e filha. Eu a amava tanto, mas raramente tinha a oportunidade de demonstrar, e quando isso acontecia você mal me respondia. Pedi ajuda, mas todos diziam que era "a fase". Mas eu estava tão assustado, tinha tanto medo de te perder. Na sua idade, dezessete, eu já morava com a sua mãe. Mas você sequer me apresentava seus namorados, enquanto eu fingia que eles não existiam. No fundo, eu sabia até que não foram poucos. Mas qual era o problema, afinal? Nunca fomos próximos mesmo. Havia jogado fora meu medo. Em um ano ou mais, você voltaria ao "normal", era o que todos diziam.


Mas houve um dia em que você foi e nunca mais voltou. Largou em casa todas as suas coisas, imagino que quando alcançou certa liberdade financeira, nada mais lhe prendia lá. Desde então, nunca mais a vi. Alertei a polícia, alertei os conhecidos, até falei com seus amigos. Mas ninguém a havia visto. Por que isso tinha de acontecer justo comigo? Só sei que, quando você partiu, tive a certeza de que, novamente, perdi a mulher da minha vida. Não que eu a houvesse deixado escapar. Eu, de fato, a perdi.


Essa não é uma carta fácil de escrever. Não me pergunte como consegui seu endereço, por favor, se é que a essa altura você ainda possa cogitar me responder. Estou enviando apenas pra que saiba que eu estou bem aqui, te esperando, assim como estava há três anos. E continuarei por mais trinta, quarenta, cinquenta se for necessário. Eu te amo, minha eterna pequena Cécile.


Sinceramente, seu pai
(não importa o que você pense disso)


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Notas finais do capítulo

:)