Re-começo

Chovia muito forte e a aquela sombrinha era pequena demais para as duas. A mais alta estava segurando o guarda-chuva. Ela tinha cabelos negros e levemente ondulados, que agora cascateavam logo após seus ombros; a pele dela estava ainda mais branca, devido ao frio, e seus lábios tremiam enquanto ela falava:

- ECAAAA!

- Pode dizer o que quiser, foi o melhor beijo do mundo!

- Mas era uma mulher!

- E foi o melhor beijo do mundo...

- ...

- Que foi? Vai ficar com essa cara até quando, posso saber?!

- Eu não acredito que você fez isso...

- Por que não?

Disse a mais baixa, com um olhar desafiador. Seus olhos castanhos combinavam perfeitamente com os cabelos de mesma cor, mas um pouco mais escurecidos pela água da chuva. As duas caminhavam devagar pela rua deserta, o que era comum naquele horário. E correr só aumentaria suas chances de se “ensopar” mais rápido.   

- Sei lá... é estranho.

- “Estranho” é o seu interesse súbito nesse assunto.

- Claro que não, eu sou sua melhor amiga!

- Que seja...

- Que tipo de amiga seria eu, se não me importasse?!

A mais baixa sorriu, já sabia que aquele era seu comportamento típico. Ela estava sempre arranjando desculpas de última hora, nas quais fazia questão de mencionar que as duas eram apenas boas amigas. Dessa vez, seria diferente. A mais baixa vasculhou suas lembranças até encontrar uma resposta que considerou adequada:

- Do tipo “ex-namorada”.

Aquelas palavras pareceram ter causado um impacto maior do que o desejado. A mais alta sentiu seus lábios tremerem, de pura hesitação dessa vez. Ela não esperava que a amiga se lembrasse de uma brincadeira tão boba, e menos ainda, que tivesse coragem de mencioná-la de modo tão casual, despreocupado.

- Ah, mas isso foi quando a gente era criança...

- Verdade... não sei porque me lembrei disso agora.

- Eu pensei que você já tivesse esquecido.

- Eu não... eu pensei que você tivesse esquecido!

Continuaram em silêncio por um bom tempo. Julia, a mais alta, apertou discretamente o cabo do guarda-chuva e Carmem, a mais baixa, aconchegou-se ainda mais à sua amiga. Elas tocaram no “assunto proibido”, algo que Julia considerava um tabu desde que Carmem revelou que tinha um interesse real por garotas.

- Por que você achou que eu me esqueceria do meu primeiro beijo?

Julia parou de andar, já estava arrependida por ter feito aquela pergunta. Carmem também parou, abismada. Nesse instante, uma rajada de ar mais forte levou embora a sombrinha que as protegia, mas nenhuma das duas pareceu se importar com a chuva. Carmem teve a impressão de que Julia estava realmente chateada com aquilo.

- Porque nunca teve um segundo.

Nada mudava o fato de que as duas tinham se beijado, mas ouvir uma acusação tão direta era ainda pior do que essa lembrança. Anos depois, quando a amiga assumiu que também gostava de garotas, a possibilidade de concretizar seus desejos assustou-a tanto que Julia preferiu ignorá-la. E agora, Carmem tinha beijado outra garota.

- Foi melhor que o nosso?

- Não sei... não me lembro exatamente de como foi nosso, se você quer mesmo saber.

- Eu também não.

Logo em seguida, Julia aproximou sua boca dos lábios de Carmem, permitindo que eles se tocassem. Foi um beijo tímido, nenhuma das duas sabia exatamente o que fazer para não desagradar a outra. Mesmo assim, a suavidade e o calor daquele contato foram suficientes naquele instante. A possibilidade de re-começar também.

- E agora?

- Continuo sem lembrar!

- Mentirosa.

- Ok, ESSE foi o melhor beijo do mundo.

- Eu estou falando sério!

- Eu também. Ou você acha que eu mentiria para a minha melhor amiga?!

- Talvez sim... e para a sua namorada, você mentiria?

Carmem piscou várias vezes, incrédula. Ela entendeu perfeitamente o significado daquela pergunta, mas ainda não sabia se “era seguro” acreditar nele. Ia perguntar diretamente, mas Julia segurou suas mãos com força, reafirmando seu pedido. Sem palavras ou promessas, era apenas um gesto de união. E foi assim que tudo re-começou.

FIM