Entre Segredos e Bonecas escrita por Lize Parili


Capítulo 56
Vestindo as luvas - parte 2/10 - Confiança


Notas iniciais do capítulo

Aqui começa o nosso flashback.
Aqui você vão conhecer um pouco mais sobre o Nath e entender o porque ele é como é.
Espero que gostem desta minha visão de Nathaniel.

REVISADO 16/11/17



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FLASH BACK

Guerin se formou em Educação Física aos 25 anos, mas dedicou-se as Artes Marciais, sua paixão, primeiro ao Karate, que conheceu ainda criança, tornando-se instrutor da modalidade e assistente de seu sensei já aos 16 anos, e depois ao Muay Thai que começou a praticar na faculdade, migrando totalmente para esta modalidade de luta aos 31 anos, inaugurando sua própria academia 3 anos depois de começar a dar aula da modalidade. Aos 42 anos ele assumiu algumas aulas no Sweet Amoris, como substituto, pois o professor do Collège fez uma cirurgia e estaria de licença médica por seis meses. Mas ele só assumiu as aulas a pedido do coordenador pedagógico da escola, Ailton Sartre, que era, além de seu aluno de Muay Thai, seu amigo; e ainda assim porque sua academia, a SYLVER'S GYM, estava em reforma.

 Não demorou muito para Guerin começar a prestar atenção em Nathaniel, devido seu comportamento agitado. Ele estava no 5ème, 2º ano do Collège.

Analisando sua ficha escolar o professor descobriu que ele tinha acabado de completar 13 anos, o que indicava que ele havia perdido um ano escolar, visto que deveria estar no 4ème, 3º ano do Collége. Ao ler as informações curriculares dele viu que na verdade ele deveria estar no 3ème, último ano do Collège, pois ingressou no Curso Preparatório, 1º ano do primário, com 4 anos, tendo completado 5 no meio do ano letivo, 1 ano e meio antes da idade normal. Os registros mostravam que até o CE2, 3º ano primário, ele foi o melhor aluno da turma, mesmo sendo mais novo que os demais, porém, no CM1, 4º ano do primário, o rendimento dele caiu drasticamente e ele acabou sendo retido por considerarem que ele não tinha condições de acompanhar a série seguinte. Depois disso o rendimento dele melhorou, mas o comportamento foi piorando gradativamente, até que no 6ème, 1º ano do Collège, ele foi retido novamente, por excesso de faltas, geradas por não assistir boa parte das aulas, comportamento inadequado e por zerar no brevet des collèges— propositalmente -, o exame aplicado no final de cada ciclo do Collège. Porém, nada indicava que ele era um garoto agressivo ou desrespeitoso, a não ser com a irmã caçula. Apenas isso já fez Guerin se interessar por ele.

Na visão do professor Nathaniel estava perdido. Não tinha como um rapaz cujas reclamações eram apenas sobre brincar durante a aula, não prestar atenção, atrapalhar os colegas, não ficar no lugar, correr pelos corredores na hora do intervalo, sair da sala sem permissão dos professores, bolar determinadas aulas e notas que oscilavam de baixas a altas ser, de fato, um garoto problema. Ele estava mais para um garoto com problemas.

Guerin se viu em Nathaniel quando tinha um pouco menos que a idade dele, então, considerando sua própria história de vida, decidiu que ajudaria o rapaz, que na visão dele, só precisava de orientação; e já que os outros professores não enxergavam isso, ele seria este orientador. Ele só precisava se aproximar do garoto, conquistar sua confiança, o que não foi tão fácil quanto ele imaginou que seria.

Nathaniel percebeu que o novo professor prestava atenção demais nele e passou a tumultuar ainda mais sua aula. Mas sempre que o garoto fazia isso Guerin o colocava de canto, deixando-o assistir a aula, sem participar, e ao término da aula, eles sempre conversavam, pois Guerin queria que ele entendesse que sua postura era inadequada e que só quem perdia era ele.

Nathaniel não ligava se era colocado sentado no canto ou não, obrigado apenas a observar o que os outros faziam. Ele cresceu sendo colocado no cantinho da reflexão por seu pai. Fora que as aulas eram sempre a mesma coisa, jogos coletivos, resistência e tudo mais que englobasse atividade física escolar, então não fazia diferença participar da aula ou não naquele dia específico. Porém, embora ele fingisse não se importar com as palavras do professor, de certa forma, elas lhe soavam diferente. Ele estava acostumado com sermões, mas aqueles eram diferentes. Não havia cobranças, mas conselhos e isso ele nunca havia recebido, mesmo daquele que o colocava no canto, em casa. Mas apesar disso, ele não mudava sua postura.

Como todo bom observador, Guerin percebeu que tinha dias em que Nathaniel assistia às aulas tranquilamente, mas bastava alguns minutos com a irmã para ele se transformar. Guerin, então, passou a observar Ambre para ver que problemas eles teriam para viverem em pé de guerra, e não tardou para o professor perceber que a garotinha de 11 anos não era tão inocente quando os professores achavam. Longe das vistas dos outros ela aprontava e para fugir da advertência dava um jeito da culpa recair sobre o irmão, que por mais que negasse o fato, ninguém acreditava, pois todos já o haviam rotulado. Ela também gostava de provocá-lo por diversão, só para vê-lo irritado; bastava ela o ver tranquilo, geralmente lendo, para perturbá-lo, dizendo-lhe coisas que o irritavam. Indignado pelas injustiças Nathaniel ficava agitado e exteriorizava aquela frustração através da rebeldia, comportando-se mal na escola e maltratando a irmã, às vezes dando-lhe uns puxões de cabelo, outras quebrando suas canetas e jogando as coisas dela longe.

O que Guerin mais levou em consideração foi ver o que acontecia depois disso tudo; o rapaz sempre se arrependia e repunha o que estragava, mas a irmã não levava aquilo em consideração, deixando claro que ele não fazia mais que a obrigação, assim como não contava aos pais que o mais velho se desculpava e repunha o que danificou, tampouco assumia sua culpa. Não foi difícil para Guerin perceber que na verdade o que acontecia entre aqueles dois era uma disputa de atenção. As cobranças direcionadas ao rapaz eram muitas, principalmente por parte do pai, que apesar do professor não ter tido o prazer de conversar pessoalmente, o viu algumas vezes na escola, fosse conversando com Sartre, seu amigo e coordenador pedagógico da unidade escolar, ou com a diretora. E estas conversas sempre resultavam em olhares nada amistosos do pai para o garoto, que sempre baixava a vista perante ele. A mãe do rapaz estava sempre junto, mas esta, apesar de não lhe lançar um olhar repressor, como o esposo, cobrava-lhe uma postura de irmão mais velho zeloso e protetor, ignorando totalmente o que a filha fazia de errado. Filha esta que parecia ter o dom de enganar os pais com sua lábia mentirosa.

Mas o que deixou Guerin mais intrigado foi o efeito que a visita destes pais na escola tinha sobre o Natahniel. Ele retornava para a unidade escolar no dia seguinte mais agitado e arredio. E por dias ele evitava as atividades de educação física e se fizesse, dava um jeito de não usar o vestiário enquanto houvesse alguém lá dentro. Não tinha como Guerin não desconfiar dos métodos de punição aplicados no garoto.

Quando Nath estava agitado Guerin não conseguia se aproximar dele e era difícil controlá-lo. Parecia que ele queria descontar no mundo suas frustrações, e era isso que os outros professores achavam, mas na verdade ele queria ser notado pela família, e se não fosse por coisas boas, então que fossem por coisas ruins, mas ele seria notado. Para Guerin, cada brincadeira fora de hora, cada chute que ele dava nas bolas, mandando-a para o outro lado do ginásio, sem nem mesmo eles estarem usando bolas na aula, cada vez que ele ficava andando pela arquibancada ao invés de participar da aula ou assoviando alto só para ouvir o próprio eco, atrapalhando a aula, soava como um pedido desesperado de ajuda, como se ele estivesse dizendo com aquelas ações: "Por favor, me ajudem. Eu não sei mais o que fazer para que meus pais me enxerguem!"

Guerin não tinha escolha a não ser repreender o garoto e colocá-lo de canto em suas aulas, mesmos sabendo que ele não se importava com aquilo, ainda mais depois que percebeu que o professor não fazia ocorrência e nem o levava para a direção, embora não entendesse direito o porquê. Mas tinha algo que Nath se interessava e muito, e não demorou a Guerin perceber. O garoto gostava de ver os treinos da equipe de Wrestling, tanto que bolava aula para ver – ele só bolava aula por este motivo e quando queria ficar sozinho por estar muito chateado –, escondido claro, pois se o inspetor o pegasse era diretoria na certa, e geralmente ele era pego, o que lhe rendia detenção, visita dos pais na escola, castigo e às vezes uns tapas e até cintadas, do pai. Mas nada que pudesse ser considerado um ato de violência; mas como o garoto era branquinho, sua pele alva ficava marcada facilmente.

Certo dia Guerin pediu ao Nathaniel, no início do período matutino, que o ajudasse a levar uns sacos de nylon para o ginásio. Ao terminarem o professor percebeu os olhares do garoto para o treino da equipe de Wrestling, então se sentou na arquibancada para assistir. Nath ficou surpreso ao ver que seu professor de Educação Física também gostava de luta greco-romana.

Assim que Nath sentou ao seu lado Guerin começou a analisar a luta dos garotos, dizendo o que um e outro estava fazendo de certo ou errado, arriscando até um palpite de quem venceria a luta, acertando é claro. O olhar de Nath para Guerin mudou de surpreso para admirado.

— O senhor gosta de lutas, professor? — perguntou o rapaz, que começou a ficar curioso sobre aquele homem.

— Mais do que você pode imaginar, Nathaniel. Mas meu estilo é outro. — respondeu, perguntado em seguida:

— Se você gosta tanto da luta greco-romana, por que não pede para entrar para a equipe?

— Meu pai não permite. Ele diz que esportes de luta são para arruaceiros e encrenqueiros.

— Pois seu pai está enganado, as Artes Marciais são para pessoas disciplinadas e de boa conduta. — disse Guerin olhando para o aluno, sério, e este que não era bobo, muito menos tolo, entendeu a indireta e baixou o olhar. — Pelo menos é isso que eu prego aos meus alunos na academia.

— O senhor tem uma academia de Artes Marciais? — perguntou, ainda sem graça. Mas antes dele ter sua resposta o inspetor chegou e o repreendeu na frente de Guerin que o defendeu, surpreendendo ainda mais o aluno.

— Desculpe, inspetor. A culpa foi minha. Quando Nathaniel chegou eu estava levando o material para o ginásio e pedi sua ajuda, então vi o treino dos garotos e parei para assistir e acabei segurando ele aqui. Esqueci-me da hora.

O inspetor não acreditou muito, pois Nath sempre se atrasava para a primeira aula nas 5ªs feiras por ficar vendo o treino, mas como era a palavra de um professor, não pôde questionar.

— Vá para sua aula Nathaniel. Depois eu converso com seu professor e explico o que houve. — pediu, e Nath, sem pensar duas vezes saiu e foi para sua sala. O inspetor, apesar de desconfiado nada fez, só voltou para o seu trabalho.

Nath saiu tão apressado que deixou a mochila para trás. Guerin, como queria saber mais do rapaz, abriu-a, confirmando suas suspeitas. Nela tinha um livro de romance policial e dentro dele uma carteirinha da biblioteca, de membro vip, o que indicava que ele era um assíduo frequentador do local. O caderno dele tinha poucas páginas escritas, mas estava cheio de observações sobre o conteúdo. Tinha algumas revistinhas de sudoku, de palavras cruzadas e caças palavras, todas sobre literatura e temas culturais, e até revistinhas com exercícios para desenvolver o raciocínio lógico, e todas de nível médio a avançado. A única dúvida que ainda restava na mente de Guerin era: "Se Nathaniel era um CDF, porque tinha problemas com notas?"

Depois de vasculhar a mochila do garoto, Guerin foi devolvê-la.

— Bom dia, professora. — cumprimentou ao ter permissão para entrar na sala do garoto, que havia perdido metade da aula de Matemática e tomado um esporro da professora diante dos colegas. — Eu vim entregar a mochila do aluno Nathaniel. Ele estava me ajudando no ginásio e quando se deu conta que se atrasou para sua aula saiu correndo a esqueceu comigo.

A professora se surpreendeu com aquela história, pois além de Nathaniel sempre se atrasar para a aula dela na 5ª feira, não disse nada quando foi repreendido, só se desculpou e sentou. Na verdade, ela se surpreendeu mesmo com o comportamento do rapaz, que desde que entrara na sala naquela manhã, não levantou da cadeira e manteve silencio, com a atenção voltada à sua aula. Na verdade, as palavras de Guerin "pessoas disciplinadas e de boa conduta" ficaram martelando na cabeça do garoto e isso o manteve quieto.

— Peço que me desculpe. Foi culpa minha ele ter se atrasado. Eu o segurei por mais tempo do que precisava.

A professora pegou a mochila e ao entregar para o aluno, desculpou-se por tê-lo repreendido.

— E fico feliz em saber que estava ajudando o professor Guerin. Estou orgulhosa de você hoje, Nathaniel!

"Estou orgulhosa de você hoje, Nathaniel!". Esta frase soou nos ouvidos do rapaz como uma canção cuja melodia é capaz de alegrar o coração de qualquer um. Foi a primeira vez que ele ouviu aquilo de alguém. Ele ficou feliz.

No final do dia Nathaniel pensou em falar com Guerin, mas desistiu, indo para sua casa.

Nos dias seguintes Guerin o percebeu mais tranquilo. Num momento ou outro ele se agitava, mas bastava vê-lo de longe que desviava o olhar e mudava de postura, parando de enrolar no corredor, de correr, e voltando para a sala. Bastava Guerin olhar pela janela de vidro da porta da sala dele e o avistar que este voltava para o seu lugar, quieto e assim ficava até o término da aula. Até os outros professores perceberam que por algum motivo, aquele aluno tinha medo daquele professor substituto. Mas na verdade, não era medo que Nathaniel tinha, mas vergonha. Ele não queria ser visto por aquele homem como um arruaceiro.  

Na semana seguinte, no dia da aula de Educação Física as coisas complicaram de novo. Nathaniel chegou na escola agitado, pois Ambre havia ganhado um dia no shopping por suas notas terem aumentado, conseguidas através de suas colas, enquanto ele, apesar de ter tirado notas melhores e por ter estudado muito, ouviu apenas que aquela era sua obrigação e que ele tinha que melhorá-las mais, pois para entrar numa boa Universidade ele tinha que ter excelentes notas. Como se o objetivo dele naquela fase da vida fosse a Universidade.

O inspetor viu o garoto perturbando na aula de Educação Física e se intrometeu, puxando-o pelo braço para levá-lo para a inspetoria, bradando com ele, dizendo que iria chamar seu pai. Mas Guerin se impôs e impediu. O inspetor se estressou e disse que ele estava deixando o garoto fazer o que queria na aula e que ainda o estava acobertando. Guerin se irritou e o colocou no seu devido lugar.

— Vou deixar uma coisa bem clara, inspetor. No ginásio a autoridade sou eu! Seu território são os corredores. O que acontece na minha aula eu mesmo resolvo, e do meu jeito. E como eu lido com meus alunos é um problema meu, então se atenha aos alunos que estão soltos pelos corredores e esqueça o ginásio enquanto eu estiver aqui dentro. — proferiu austero diante dele, que não abriu a boca para retrucar. — E se o senhor ousar interromper a minha aula novamente, e mais que isso, se eu o ver tratando algum dos meus alunos como delinquentes, eu mesmo irei até a direção desta escola e farei uma queixa formal sobre sua postura! — o rabugento do inspetor saiu do ginásio tão rápido quanto entrou, sem olhar para trás, proferindo dezenas de palavrões em sua mente, jurando que ainda daria o troco naquele garoto e em seu professor.

— O-obrigado, professor Guerin. — agradeceu, mas este não aliviou, ordenando que ele sentasse no banco e dali não levantasse até o termino da aula, e que nem se atrevesse a abrir a boca para pedir para ir ao banheiro. Nath nunca o viu tão enérgico, mas entendeu, pois sabia que havia pisado na bola.

Naquele dia Nath se arrependeu amargamente de ter atrapalhado a aula e por isso ter sido colocado no banco. Seus olhos encheram d'água ao ver Guerin abrir os sacos que ele mesmo ajudou a guardar no ginásio na semana anterior e tirar deles luvas de boxe, caneleiras com proteção de pés, apara-socos e apara-chutes. Naquele dia os alunos tiveram uma aula demonstrativa de Muay Thai.

Nath observou com olhos curiosos e ao mesmo tempo tristes, louco para participar da aula, mas não se atreveu a pedir permissão ao professor, pois este havia sido bem claro quando o mandou sentar e ficar quieto. Seus colegas se aqueceram pulando corda, sendo os meninos sarriados pelas meninas por serem ruins no exercício, aprenderam a saltitar como boxers, a postar as mãos diante do rosto em defesa, vestiram as luvas e as caneleiras e sentiram a emoção de deferir alguns socos e chutes nos colegas que seguravam os aparadores.

Guerin percebeu a tristeza por trás do olhar de Nathaniel, mas não o chamou. Se Nath pedisse para participar da aula ele deixaria, feliz até, pois ele preparou tudo aquilo visando ele, mas o garoto não o fez.

Ao termino da aula Guerin mandou a galerinha para o vestiário.

— Você fica, Nathaniel. Vai me ajudar a guardar o equipamento! — disse entregando o saco para ele guardar as luvas e as caneleiras.

No quartinho de materiais embaixo da arquibancada, enquanto eles guardavam tudo, Guerin questionou o olhar de Nathaniel para ele.

— Não olhe para mim deste jeito, rapaz. Se quer me dizer algo, diga! Faça-se ouvir!

Nathaniel respirou fundo para criar coragem e sem olhar diretamente para seu professor, desculpou-se por seu comportamento inadequado. Mas Guerin não abrandou, repreendendo-o de forma enérgica pela primeira vez.

— E você acha mesmo que tudo se resolve com um pedido de desculpas, Nathaniel? — questionou, lembrando que aquela não foi a primeira vez. — Até agora eu tenho sido legal com você, pegando leve, pois te entendo e imagino o porquê age desta forma, mas nada justifica o que você faz! — ralhou. Nath não ousou olhar para ele. — Você não tem o direito de atrapalhar o processo de aprendizagem dos seus colegas, seja aqui no ginásio ou dentro da sala de aula. Você está tirando deles o direito de aprender com sua postura inadequada, e porque não dizer, egoísta! Nenhum deles tem culpa das coisas que acontecem com você e que te machucam. Então pare de descontar neles a sua frustração!

Enquanto o professor falava, sem bradar, pois aquelas palavras eram apenas para Nathaniel ouvir e mais ninguém, o garoto sentia um nó se formar na garganta. Ele sabia que estava errado e que merecia aquelas palavras. Ele já havia ouvido muitos sermões e até acostumado em ser chamado de rebelde, bagunceiro e até de desordeiro por algumas professoras mais estressadas, mas nunca lhe foi dito que ele estava "tirando o direito de aprender dos colegas", nem que ele estava sendo egoísta.

Ele não era egoísta.

Foi a primeira vez que ele realmente ouviu e prestou atenção em cada palavra, de verdade, de uma repreensão; talvez por ter percebido que Guerin se importava com ele, mesmo sem entender o porquê daquele interesse.

— Você precisa entender que com este comportamento só tem a perder. Hoje você perdeu a chance de participar da aula, aula que eu preparei pensando em você. E amanhã, o que será? Você realmente está disposto a perder mais que isso? Até quando? — questionou. — A vida segue seu rumo, Nathaniel, independente do que você fizer; mas ela cobrará seu preço, cedo ou tarde, e não é barato. Se você fizer coisas boas, você pagará sorrindo, mas se não for assim, cada vez que ela lhe cobrar vai doer e você vai sofrer, e não poderá culpar ninguém, pois foram suas escolhas e de mais ninguém. — falando-lhe sobre a vida, diferente dos outros professores, que só lhe falavam sobre suas notas, sobre não conseguir passar de ano, daquilo o prejudicar no futuro, impedindo-o de ir para uma boa Universidade. No fundo eles queriam dizer a mesma coisa, mas Guerin parecia estar falando de algo mais importante, que ia além dos portões das Universidades.

— E se você quer que as pessoas mudem com você, mude-se primeiro! Prove que merece ser tratado como você quer ser tratado. E não me peças desculpas, nunca mais, prove com seu comportamento que merece minha consideração, porque você a perdeu hoje! — concluiu, deixando o garoto com seus pensamentos, saindo do quartinho.

— Assim que terminar de guardar o material pode ir para o refeitório.

Nathaniel não disse uma única palavra. Pois além de estar envergonhado por saber que o professor o considerava ao ponto de preparar uma aula especial por causa dele e que ele havia colocado tudo a perder, perdendo inclusive a consideração dele, não parava de pensar no que ouvira: que a vida cobrava um preço alto.

No refeitório o assunto entre seus colegas de turma foi a aula de Muay Thai e a cada comentário entusiasmado que ouvia dos outros ele se chateava mais por ter ficado de fora. Da sua turma Kim era a mais entusiasmada. Até os alunos das outras turmas estavam comentando, ansiosos pelo momento em que teriam aquela aula, principalmente Castiel, que era do 5ème, uma série acima da do Nath, que por sinal, o admirava como lutador da equipe de Wrestling e não perdia suas lutas.

Cansado de tantos comentários Nath se recolheu num lugar que só ele e o senhor da limpeza frequentavam - de ficar mais que o tempo necessário para guardar alguma coisa -. Ele costumava jogar xadrez com o velhinho gentil e educado que mesmo depois de aposentado ainda trabalhava no S.A., por ser viúvo e solitário. Ele era o único que acreditava na boa índole e no potencial do garoto, além de Guerin.

Naquele dia seu parceiro de xadrez não foi trabalhar, mas Nath sabia onde ele guardava o molho de chaves, então o pegou. Ele queria ficar sozinho, então se escondeu no porão.

Ele voltaria no tempo se pudesse, mas como não era possível chorou sentado num cantinho, encostado numa das tantas caixas de quinquilharias que estavam amontoadas no lugar. As palavras de Guerin ressoavam em sua mente, como um balde de água gelada sobre um corpo adormecido, despertando-o para a vida. Ele estava envergonhado e arrependido, e mais que isso, ele estava cheio de dúvidas, medos e sentindo-se totalmente perdido, cansado de ser tachado negativamente. Naquele dia ele não voltou para a sala, tendo, pela primeira vez, sem perceber, bolado todas as aulas do 2º período, dando-se conta do horário ao ouvir o soar da sirene da saída, pois esta se seguia do som dos alunos saindo para a liberdade.

— Que droga! — proferiu, já imaginando o que o esperava, correndo direto para sua sala de aula, que já estava vazia. Seu material estava na inspetoria e seu pai já havia sido avisado. Ele poderia ir embora e enfrentar a fera em casa, longe de todo mundo, mas depois do que ouviu mais cedo e do tempo que passou refletindo, ele não podia fazer aquilo antes de fazer outra coisa.

Toc, toc, toc. Ouviu-se bater na porta, indo um dos professores abri-la.

— Nathaniel! Por onde você andou, garoto? — questionou a professora ao recebê-lo na porta da sala dos docentes. Todos estavam reunidos e preocupados com ele, imaginando o pior, pois ele nunca havia feito algo como aquilo e apesar do seu comportamento inadequado, todos gostavam dele, embora não demonstrassem muito. — Nós te procuramos por todos os lados, até do lado de fora, indo na lanchonete da esquina e na livraria. Você nunca fez isso! — contou demonstrando toda a sua preocupação. — O que aconteceu?

Nath nunca havia visto os professores tão preocupados. Ele nunca havia sido tratado daquela forma por eles, sendo todos tão atenciosos. Nath ficou feliz e triste ao mesmo tempo, feliz por saber que era querido e triste por ter sido um péssimo aluno para eles, envergonhando-se ainda mais por seu comportamento.

— P-Professores, eu... — titubeou, respirando fundo e se controlando para não chorar. — Durante estas horas em que... estive sozinho... eu pensei m-muito e... — dando pausas entre umas palavras e outra para respirar, devido o nervosismo. Sua voz estava trêmula e seus olhos lagrimejavam. Os professores olhavam para ele preocupados, pois podiam perceber a angústia que ele sentia naquele momento. — E percebi que... minha p-postura diante de vocês... não é certa. Eu transferi para vocês... um problema que é só meu... — revelou, sem dar detalhes, pois não queira compartilhar suas angústias, apenas se desculpar.

Nathaniel estava mostrando que estava, enfim, amadurecendo, pois se desculpar é algo difícil de fazer, ainda mais admitindo que estava errado. E aquela postura tocou os professores, que também perceberam que haviam errado em não ter percebido os sinais de que havia um problema na vida daquele aluno.

 — Desculpem-me... por favor...

Guerin olhava para ele, que não levantou os olhos um minuto sequer enquanto se desculpava, e sentiu que dali por diante seria fácil ajudá-lo, pois Nath havia se aberto para si mesmo.

— Professor Guerin... — dirigiu-se àquele professor, erguendo os olhos marejados, caminhando na direção dele, baixando o olhar assim que ficou na sua frente, segurando o próprio braço com força, como se estivesse se abraçando. — Eu ouvi... c-cada palavra que o senhor me disse... e entendi... eu sei-i que sou eu que tenho que mudar... E-Eu... só não sei se consigo... s-sozinho... — rendendo-se ao choro, deixando a água turva daquele copo transbordar, levando lágrimas aos olhos de algumas professoras mais sensíveis, que tentavam imaginar que problema aquele aluno tinha para ser do jeito que era e chorar daquele jeito.

Guerin o abraçou e os demais professores saíram da sala, deixando-os sozinhos, afinal, ele foi o único professor capaz de ouvir um pedido silencioso de ajuda nas atitudes dele.

— Você não está sozinho, Nathaniel! Não mais! — confortou-o, mantendo-o entre a proteção de seus braços, silenciando-se depois, deixando-o chorar até se acalmar. Pela primeira vez o garoto sentiu totalmente a vontade e que podia confiar plenamente em alguém.

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Notas finais do capítulo

Os filhos estão sempre em busca da atenção dos pais e quando estes não a tem, alteram seu comportamento para conseguir. Por falta de maturidade muitos acabam se autodestruindo. Assim como o excesso de atenção estraga, a falta também. Aos meus olhos, Nath e Ambre são reflexo disso. Enquanto ela sofre pelo excesso, se tornando uma garota sem limites, Nath sofre pela falta, se tornando um garoto sem freios.
Por sorte, na vida de muitos jovens aparecem anjos que os direcionam, que se tornam espelhos na vida deles que conseguem se libertar desta dependência afetiva e se descobrir como indivíduo. Aos meus olhos Nath teve este anjo, e aqui ele se chama Guerin, inspirado no meu namorido, um japa que foi e ainda é um anjo na vida de muitos jovens como Nath, jovens que encontraram nele e no Karate um estilo de vida, uma filosofia.

Wrestling: luta greco-romana. É uma modalidade de luta (olímpica). Na França o esporte pertenceu a grade de educação física durante muitos anos, sendo uma disciplina optativa. Hoje ela não é mais obrigatória e as escolas podem ou não ter o esporte na grade.

CICLO ESCOLAR NA FRANÇA detalhado nas notas do capítulo 2.



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