Entre Segredos e Bonecas escrita por Lize Parili


Capítulo 49
Délfica




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# 12/03 #

Ao terminar de saborear sua omelete com bacon e cebola, acompanhado de brioches e uma pequena taça do seu Beaujolais-nouveau, Leigh foi ao banheiro escovar os dentes, passando por Lys e Sol, que estudavam quietinhos na sala de jantar, sentados um de cada lado da mesa, sendo ela na lateral e ele na ponta, separados por uma quina. Ele olhou para o irmão se perguntando se ele havia contado alguma coisa da festa de despedida para Emília, mas logo dispersou o pensamento, pois tinha total confiança no caçula, tendo a certeza que este nunca lhe mentiria ou lhe faltaria com a palavra. Lys olhou para Leigh e logo desviou o olhar de volta para as folhas de Emília, que não conseguia fazer a atividade de Francês, que naquele mês estava abordando a escrita poética, onde só o que tinha que fazer era ler e interpretar uma poesia, identificando o tipo.

— Mas, Sol, o que você não está entendendo? — pegou a folha da mão dela. — É só ler e fazer uma pequena redação de 10 linhas sobre o que você entendeu do soneto. — explicou enaltecendo o poeta, cuja obra era bem conhecida por ele.

— Você fala como se fosse fácil! O poeta aqui é você, não eu! — enfatizou, fazendo bico e cruzando os braços. Lys já tinha esquecido como a amiga podia ser birrenta, atitude que ele considerava infantil da parte dela, mas deixava passar, pois o bico que ela fazia a deixava mais fofa. — Além do mais, eu não conheço metade das palavras que tem no texto! — confessou.

— Isso é normal. Gérard de Nerval foi um poeta do início do século XIX. A escrita é mais rebuscada. Mas nada que um dicionário não resolva. — disse a ela com a maior tranquilidade.

— E você está vendo algum dicionário aqui? — questionou com certa grosseria e Lys, que não estava a fim de se indispor levantou e foi até seu quarto, voltando com seu S4 protegido por uma capa decorada de notas musicais. Ele entregou para ela e a mandou acessar o Google e pesquisar as palavras. Ele mesmo teria "traduzido" o soneto, mas preferiu deixar que ela descobrisse o significado das palavras sozinha já que estava com tanta birra, além de que, o poema tinha certa erotização e ela podia "interpretar mal" a sua interpretação dos versos. Ele não queria parecer lascivo ou obsceno aos olhos dela.

Emília se incomodava quando Lys ficava "próximo demais", pois a deixava confusa e ela odiava ficar confusa em relação aos seus pensamentos ou sentimentos. Mas ela também não gostava quando ele ficava tão distante, como estava naquele momento. Como toda garota carente de afeto, ela gostava de receber atenção e Lys sempre lhe dava atenção, mesmo quando ela não estava prestando atenção nele porque seus pensamentos buscaram uma lembrança de Nathaniel, motivados por algo carinhoso que o amigo de cabelos nevados lhe dissera.

— Lys. — chamou-o, dengosa, manha que diminuiu a distância entre os dois.

Ao mesmo tempo em que Sol conseguia ser birrenta, ela conseguia ser manhosa e não hesitou em usar do artifício para amolecer a dureza do amigo, cuja delicadeza e atenção total lhe fazia falta.

— Lê para mim. Quem sabe eu consiga entender melhor com você, que é um poeta, lendo. — pediu, e Lys não hesitou. E por conhecer a obra do autor, nem mesmo a folha de atividade pegou, recitando com sua voz aveludada, o soneto, olhando nos olhos de Emília que sentiu aquela estranha palpitação perturbar seu coração novamente a cada verso recitado pelo amigo, cujo olhar continha algo que ela não conhecia, mas que a fez sentir como se ele estivesse a um palmo de distância dela de novo, embora estivessem separados por uma mesa.

DÉLFICA

Conheces tu, Dafné, este cantar de outrora

que junto do sicômoro ou sob os loureiros,

ou mirtos, oliveiras, trémulos salgueiros,

este cantar de amor… que volta sempre e agora?

Reconheces o Templo – peristilo imenso -

e os ácidos limões que teus dentes mordiam,

é a gruta onde imprudentes ébrios se perdiam

e do dragão vencido dorme o sémen denso?

Hão-de voltar os deuses que saudosa choras!

O tempo há de trazer da antiguidade as horas;

a terra estremeceu de um ar de profecia…

Todavia a sibila de rosto latino

adormecida à sombra está de Constantino

e nada perturbou a severa arcaria.

Emília prestou atenção em cada palavra, mas seu cérebro só conseguiu registrar três versos:

"É a gruta onde imprudentes ébrios se perdiam / e do dragão vencido dorme o sêmen denso?" repetia em sua mente. "Ele realmente disse isso?" "A terra estremeceu de um ar de profecia…" "Por que a terra estremeceu?" perguntou-se em sua cabecinha virgem inclusive nos pensamentos, tentando decifrar aqueles versos, pois percebeu que eles eram o ponto forte do soneto. Pelo menos isso ela sabia, aquela poesia era um soneto.

— Sol. Você entendeu? Quer que eu recite de novo? — ele estava adorando vê-la tomada pela dúvida, sinal que a pureza habitava inclusive seus pensamentos.

— NÃO! — respondeu de imediato, totalmente perdida em suas suposições. — Q-quer d-dizer, sim. E-eu entendi. N-não precisar ler de novo. — remedou-se não querendo admitir que ainda não havia entendido. Ela não era muito boa, para não dizer ruizinha, com interpretação de texto e literatura poética nunca foi seu forte. As poesias que ela conhecia e entendia bem eram aquelas feitas por garotas da idade dela que falavam sobre amor, amizade, saudade, beijos e coisas que elas conheciam, com palavras fáceis e nada complexas.

— Eu posso recitar de novo, não tem problema. — sua voz continuava aveludada.

Sem querer parecer burrinha, Sol, disfarçadamente, pediu ajuda.

— Sabe, Lys. Eu entendi mais ou menos. Eu só me perdi num pedacinho. — disse mordendo o lápis com tanta ansiedade que o platinado, incomodado com aquilo, pediu que ela parasse. Ele, literalmente, tinha aflição em ver lábios femininos, que ele tinha fascinação, mordendo ou roendo as coisas de forma tão pouco sensual, fossem unhas, canetas ou mesmo palitos de dente. Quando a boca lhe interessava ele prestava mais atenção do que devia nela e no que ela fazia.

— E que pedacinho é este? — perguntou segurando o lápis dela para evitar que este fosse levado a boca novamente. — Eu traduzo. Mas não vou interpretar por você. Isso é por sua conta. — avisou com um sorriso nos lábios. Sua frieza havia ido embora e ele nem mesmo lembrava mais do bilhete azul ou do gatinho que o trouxe.

Sol leu os versos que não entendeu, perguntando inclusive o que um dragão fazia naquela poesia e porque a terra havia tremido. Ela só conseguia pensar nos dragões da idade média que viviam em cavernas e num terremoto. Sua cabecinha inocente dificultava a sua interpretação, que já não era das melhores.

Lys não aguentou e riu, parando apenas quando viu o bico de Emília voltar a sua boca, um bico maior que o anterior, pois achou que Lys estava debochando dela.

— Desculpe-me, Sol. Mas seu entendimento foi engraçado. — justificou-se, voltando a sua face tranquila.

— Então se não é isso que falei, o que é então, sabichão metido a poeta! — ralhou de cara fechada, e Lys, com toda calma do mundo, recitou novamente o soneto, explicando a sua própria interpretação do poema, desde as árvores do primeiro quarteto, onde o casal um dia esteve deitado a suas sombras, o sexo do segundo quarteto, o êxtase do primeiro terceto e o descanso do segundo terceto.

Sol ouviu a explicação arregalando os olhos. Ela nunca imaginou que seria aquilo. Mas como? Sua professora só podia estar louca para pedir que lessem aquela poesia pornográfica, foi seu julgamento.

— Ela não é pornográfica, Sol. Ela fala de um momento de amor, entre um casal, e por metáforas. — comentou ele, que lidava muito bem com sua sexualidade, graças as orientações de sua amada avó Cecília. — E momentos de amor são normais entre um casal que se ama, e o erotismo faz parte. — disse. Sua voz não estava mais aveludada, pois sua intenção não era seduzi-la, mas estava calma e natural, como se tudo aquilo fosse algo conhecido por ele, levando Sol a ter quase certeza que Lys realmente era um homem na pele de um garoto. Ela recolheu as pernas para debaixo da cadeira, mordeu o lábio inferior, coçou a cabeça, tentando disfarçar que além de encabulada, não tinha ideia do que o rapaz estava falando, pois nem selinho ela havia dado num garoto. E ser BV não era algo que as garotas gostavam de admitir para um garoto.

— E c-como você sabe que o soneto quer dizer isso ai que você falou? — perguntou, na verdade querendo que Lys falasse mais sobre aquilo, pois nem para sua tia tinha coragem de perguntar sobre certos assuntos, com medo de ela achar que ela já estava querendo "praticar".

— O problema são aqueles três versos, não é? — perguntou e ela virou o rosto para o lado, mordiscando o lábio, dando os ombros, fazendo-o sorrir com aquela atitude tão infantil e ao mesmo tempo tão meiga, levando-o a perceber o quão menina ela ainda era.

— O que você precisa entender primeiro, é que cada pessoa interpreta um texto, principalmente uma poesia deste tipo, conforme sua própria visão das coisas, e até sua experiência de vida. — explicou. — Você é uma menina, Sol. Uma menina linda, meiga, delicada. — elogiou-a, fazendo-a sorrir com seus pequenos lábios rosados, olhando-o de lado, tímida. — A sua malícia ainda é pequena diante da sua inocência, por isso sua visão do texto te leva para uma fantasia mais infantil, diferente de mim, que entendo os versos de forma diferente. — comentou, respirando fundo.

— E-e como você entende estes versos, Lys? — perguntou, louca para saber como Lys pensava. Sua curiosidade sobre ele era maior que sua dúvida na atividade, arrependendo-se logo em seguida de ter perguntado, pois lembrou que Lys era um garoto, um garoto que tentou beijá-la. Mas era tarde demais.

Ao contrário do que Sol pudesse pensar, Lys não era um lobo mal na pele de cordeiro, muito pelo contrário, naquele momento ele só via uma garotinha inocente cheia de dúvidas e curiosidades diante dele, que por ventura, ele achava linda e sentia-se atraído. Mas embora ele não visse problema nenhum em falar sobre sexo, que ele achava tão natural e comum entre os seres vivos, racionais ou irracionais, ficou receoso de dizer algo que a chocasse. Ele pensou e pensou, tentando encontrar as palavras certas para explicitar os versos, mas não tinha outra forma dela entender se não fosse falando abertamente; usar algum sinônimo ou metáfora ia dar no mesmo e quem sabe até confundi-la mais.

— Ok, Sol. Se queres mesmo saber como eu entendo este soneto, vou dizer, mas por favor, não me entenda mal. É apenas a minha interpretação e não quero que ela influencie a sua. — justificou-se antecipadamente, para evitar constrangimentos entre os dois. As mãos de Emília já se inquietaram sob a mesa, só em imaginar o que Lys via em sua mente quando ouvia aquele soneto. Ele respirou fundo e rasgou o verbo, sem alterar sua voz, mantendo-a branda e calma, e explicando ao mesmo tempo, sem olhar diretamente para ela:

— Os ácidos limões que teus dentes mordiam, pode ser tanto os... — titubeou ganhando coragem — os testículos se pensarmos que ela é quem morde. — disse rápido e depois dessa palavra ficou mais fácil. — Ou os seios de Dafné se pensarmos que ele é quem o faz, e particularmente eu prefiro pensar que são os seios dela, pois seria doloroso demais pensar no contrário.

Sol começou a mexer as pernas sobre a mesa e seus olhos buscavam algum ponto fixo para olhar, ao seu lado, fugindo da face de Lysandre, que para conseguir continuar com suas explanações perdeu-se a uma lembrança, devaneando em sua mente enquanto falava.

— A gruta onde imprudentes ébrios se perdiam é a vagina da Dafné, seu templo, onde os homens se perdem, ou seja, se introduzem. — disse, agora mais seguro, com um leve sorriso nos lábios. Sol mordeu o lábio com mais força, suas bochechas não estavam apenas vermelhas, elas queimavam.

— E do dragão vencido dorme o sêmen denso? É o... pênis... depois de ejacular. — falou achando certa graça em ter que explicar aquilo para uma garota, que nem mesmo os lábios ele havia tocado, e provavelmente, nem outro garoto. — E sêmen você sabe o que é. Não sabe? Os futuros filhos ainda na sua forma "primitiva".

Ela não respondeu e sob a mesa apertou os dedos das mãos, balançando as pernas tão forte que se tivesse tampas presas aos seus joelhos, fariam muito barulho.

— Se percebeu ele está perguntando, o que leva a crer que ele quer saber se é o sêmen dele que ainda está dentro dela. — Sol não conseguia olhar para ele, que não parou para pensar, só continuou falando:

— A terra estremeceu de um ar de profecia, essa na minha visão, é a melhor parte, pois revela que ela chagou ao clímax.

Sol olhou para ele de rabo de olho, como quem quer dizer:

"Como assim, o que é clímax?", obtendo sua resposta sem nem mesmo perguntar.

— Significa que ela teve um orgasmo, porque essa é a reação do corpo da mulher quando acontece, ela estremece inteira! — concluiu seu raciocínio com a face voltada para baixo, mas o alvo do seu olhar não era a mesa, na verdade ele olhava para o nada, ou melhor, para dentro de sua mente, cujo doce aroma da flor de Iris parecia não abandonar. E ele falou da reação do corpo feminino com um sorriso que ela não conhecia, um olhar que ela nunca tinha visto nos olhos dele, nem quando tentava seduzi-la, dando-se conta que ele não olhou para ela em nenhum momento daquela fala sobre aqueles versos, mesmo quando olhou na direção dela, o que significava que sua mente estava longe durante toda aquela explicação.

Lys sorriu de forma expressiva, como se estivesse lembrando de algo, ou alguém, e logo depois o sorriso sumiu, como se a lembrança não fosse muito agradável de ser lembrada, respirando fundo. Por um breve instante ele havia esquecido totalmente que Sol estava ali, perdido nas suas próprias lembranças de momentos que ele gostaria de esquecer, mesmo gostando das sensações que estes lhe despertavam. Até que ele viu o lápis de Emília, em sua própria mão, lembrando de onde estava e com quem estava, olhando para ela com cara de "oi, voltei sem nunca ter ido!"

— V-você entendeu? N-não preciso explicar de novo, não é? — perguntou respirando fundo, de novo, sem graça, não pelo que disse, mas pelo que lembrou, embora não fosse ela a enredar seus pensamentos.

Sol se sentiu envergonhada durante toda aquela conversa, onde apenas Lys falava e ela ouvia, mas como ele não estava prestando atenção nela, conseguiu segurar a onda, mas assim que ele olhou diretamente para ela sentiu uma vergonha gigantesca invadir sua inocência de menina que nunca se quer pensou sobre aquele assunto, quanto mais falou com alguém, ainda mais um garoto.

— E-eu vou no banheiro! — disse ela, querendo se esconder, pois sentia seu corpo todo queimar, como se tivesse tomado um banho de tinta vermelha quente.

— É a porta no final do corred... — dizia ele que nem precisou terminar a frase para ela se levantar e sair, a passos largos, atropelando Leigh que saia de seu quarto.

Por beber apenas socialmente, e muito moderadamente, uma simples taça de vinho já aquecia a pele do estilista. Ele tirou a casaca e trocou a camisa sem botão por uma de seda branca com botões de madrepérola que deixou aberto, revelando uma pequena parte de seu tórax.

— Que cara é essa, Sol? Você está bem? — perguntou estranhando a pressa e a expressão no rosto da amiga do irmão.

— S-sim, e-estou. — respondeu, desculpando-se pela trombada, — S-só preciso usar o banheiro! — apressando-se em direção ao banheiro social, trancando-se lá dentro.

Leigh voltou para a cozinha, passando por Lysandre. Ele não ia falar nada, pois não queria se meter naquela história, mas como a tia de Emília só permitiu que ela fosse a casa deles para estudar, com a promessa que ele ficaria de olhos nos dois, se viu obrigado a pedir que o irmão se "comportasse", até porque, ele ia sair com a Rosa.

— A tia dela confiou na palavra da Rosa, que disse que eu ficaria de olhos em vocês dois, então segura a onda. Apesar de a Rosa ter falado por mim, eu concordei, comprometendo-me. É a minha palavra! Não a quebre por mim! — enfatizou pedindo ao caçula para prometer que iam apenas estudar e ele o fez, pois não tinha escolha. Se não prometesse Leigh não iria sair com a Rosa e como eles pouco saiam, valia o sacrifício.

Enquanto isso, Sol se repreendia no banheiro, ao mesmo tempo em que admirava a moldura de madeira entalhada do espelho oval a sua frente, pintada de branco, mesma cor da pia. Ela abriu a torneira prateada e lavou o rosto, tentando esfriar suas bochechas, xingando-se baixinho, perguntando-se se tinha caraminholas na cabeça, pois Lys era um garoto e garotos "só pensavam naquilo", então ela não devia ter perguntado nada.

"O que ele vai pensar de você agora, sua imbecil!" murmurou pegando a pequena toalha que ficava sobre uma bandeja prateada ao lado da pia, reparando no recipiente de vidro retangular que continha um cremoso sabonete líquido hidratante, comprado por Rosa, que adorava sentir as mãos do namorado bem macias.

Segurando a toalha nas mãos ela tentou voltar ao seu estado natural de menina ingênua, porque depois daquilo seria difícil não olhar para Lys e pensar "abobrinhas", enquanto admirava o bom gosto daqueles dois irmãos até para decorar o banheiro de paredes brancas com faixas pretas na parte da pia, vaso ao lado desta e que ela sentou sobre a tampa, também branco, e banheira de pés, sendo estes prateados e que ficava no fundo no sanitário.

"Eu devia ter esperado chegar em casa e ter perguntado para a minha tia. Ela não é chata e super conservadora. Ela ia entender." martelou em sua cabecinha.

— E agora, como eu vou encarar o Lys? Na certa ele já se tocou que eu sou TV[1]! — resmungou baixinho, morrendo de vergonha de ser a única da sua turma que nunca beijou um garoto e que provavelmente nunca havia falado de sexo com alguém. Até Viollet, com toda a sua timidez, já tinha ficado com um garoto do seu curso de desenho. — Que ódio de você, Sol! — disse a si mesma, assustando-se em seguida com o vibrar do seu celular que estava no bolso traseiro da calça. Por sorte ela estava sentada sobre a tampa do vaso, pois ao tirá-lo, ainda sentada, como sempre, o derrubou.

Era apenas um SMS de um número desconhecido que imaginou ser de alguns dos parceiros da operadora da sua linha fazendo propaganda de algum produto, como de costume, mas ao abrir para conferir, apesar de não conhecer o número, soube de quem era só pela foto que recebeu, com os seguintes dizeres:

"Fui à padaria da esquina e lá estava ela, sozinha, perdida, amuada num cantinho; seus olhinhos pareciam buscar alguma coisa. Pensei em você e a levei para casa! (91225519)"

 

No mesmo instante ela levou o aparelho a boca e deu um beijo estalado na tela. Mesmo sem assinatura ela sabia de quem era e sua alegria foi tanta que esqueceu tudo o que havia acontecido na sala. Ela só conseguia pensar naqueles gatinhos, a bolinha de pelos e o outro de cabelos dourados.

Ela saiu do banheiro totalmente diferente de quando entrou. Lys estranhou, mas não perguntou. A curiosidade extrema não era uma característica dele, que preferia esperar que ela contasse o motivo da sua animação repentina, se ela assim desejasse.

Ela sentou no seu lugar a mesa, pegou sua folha de Francês, leu novamente o soneto e pediu o lápis de volta para Lysandre, iniciando sua pequena redação, inspirada por uma gatinha de olhar curioso. Ela escreveu e apagou a mesma linha umas três vezes, então Lys a aconselhou a pegar uma folha do caderno e fazer um rascunho, e ela achou um ótima ideia, pois não queria rasurar a folha.

"Ele vai ler, eu sei que vai!", pensou enquanto abria seu caderno, querendo que sua redação fosse mais que uma interpretação de texto, que fosse "um bilhete" disfarçado.

Assim que ela arrancou a folha Lys apagou seu semblante, como se Sol houvesse puxado a cordinha do lustre, deixando-o no escuro. Ela pegou justamente a folha com o clipe de papel, sem tirá-lo, e enquanto rascunhava passava os dedos na carinha da gatinha, olhando para ela com um sorriso que ele queria que fosse para ele, inspirando-se.

Nenhuma palavra foi dita enquanto ela escrevia, mordendo o lápis a cada vez que parava para reler e pensar. Naquele momento era ela quem não via Lys a sua frente, presa aos seus próprios devaneios. Lys se levantou e a deixou só com seus pensamentos, esperando que estes findassem logo, da varanda da sala, de onde pôde sentir o vento soprar. O tempo estava mudando e o cheiro da primavera estava mais forte.

"Eu não devia ter lido aquele soneto!" pensou passando a mão na nuca, com força, perdendo-se em seus próprios devaneios, esquecendo que na sala de jantar havia alguém que lhe despertava sensações ternas, diferente daquela brisa que esquentavam sua pele, embora fria.

 

 

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Notas finais do capítulo

[1] TV = Totalmente Virgem. (boca, pé, mão, cabelo, nariz, orelha, umbigo e por ai vai...kkkkk)

Faça sua própria interpretação...rs Pois como disse Lys, cada um interpreta o que lê de acordo com sua visão e sua história de vida....

E cada louco com suas manias:
Sol torce uma mechinha de cabelo quando devaneia e leva os dedos, lápis ou caneta a boca quando está nervosa ou ansiosa.
Lys tem fascinação por lábios femininos e aflição de ver as garotas levando à boca qualquer objeto que ele considere nada sensual ou ache que vá vulgarizá-los. Mas isso só quando ele tem interesse na garota. Do contrário, ele nem repara...rs

Gérard de Nerval: http://pt.wikipedia.org/wiki/G%C3%A9rard_de_Nerval