Entre Segredos e Bonecas escrita por Lize Parili


Capítulo 183
Começando por mim.


Notas iniciais do capítulo

Será que a Sol vai contar a novidade para a tia?



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# 08/04 #

Faltavam poucos minutos para encerrar a última aula daquela 2ª feira. Os alunos da turma C do 2ème davam as últimas pinceladas nas suas telas.

Salvo um ou dois, no geral, os alunos daquela turma não eram ruins na pintura. Claro, não eram reencarnações do Van Gogh ou do Juan Miró, mas cada um, do seu jeito, conseguiu pintar sua releitura surrealista, cada um trazendo para a sua própria realidade e conceito de surreal. Enquanto Nathaniel invadiu 'O Jardim' de Miró com gatos esquisitos, trazendo a toma um sonho de criança, Castiel 'derreteu' sua guitarra sobre o cenário de 'O Tempo', de Salvador Dali. Já, Lysandre, inundou o céu da 'Noite Estrelada' de Van Gogh com notas musicais, saídas da janela escura de uma casinha no meio de uma fazendinha, de frente para uma floresta. E à frente de tudo isso, no lugar do cipestre, a silhueta de uma dama de cabelos e saia esvoaçante, dançando como se nada mais importasse. Que garota era aquela? Ninguém de fato; apenas a lembrança de um sonho que teve ao dormir ouvindo música, e que naquele momento ele resgatou.

Emília estava na biblioteca, tirando suas dúvidas em relação a sua cruel Geografia com um dos estagiários. Mas a preocupação com sua atual situação roubou sua atenção e o segundanista, na maior parte do tempo, nem foi ouvido. Assim que o sinal soou, avisando que podiam ir para casa, ela esperou todos saírem da biblioteca para poder levantar da cadeira, receosa. Quando se viu sozinha com a bibliotecária foi até ela é, morrendo de vergonha, perguntou se sua calça estava manchada, postando-se de costas para aquela senhora, que sorriu e disse que não, tirando um peso dos ombros da jovenzinha.

Naquele dia Sol nem quis saber de dar aquela enroladinha de 10 minutos na frente do portão principal conversando com suas amigas. Foi direto para o ponto de ônibus, louca para chegar em casa rápido.

 

***

 

No fim da tarde...

Maitê chegou em casa pouco antes das 18h00, cansada e com o corpo dolorido. Só o que ela queria era se enfiar embaixo do chuveiro e uma bela massagem nos ombros. Como o banho ela podia ter, largou a bolsa sobre o sofá e foi direto para o banheiro.

Ao abrir o cestinho de lixo a organizadora de eventos ficou surpresa. Pelo visto, a garotinha da titia não era mais tão garotinha - ou então havia recebido uma visita feminina no apartamento -. Mais um motivo para querer um banho relaxante.

 

***

 

Minutos antes do jantar, enquanto Emília assistia TV, Maitê foi ao seu quarto, pegou um pequeno envelope e voltou para a sala.

— Emília. — chamou-a, e a jovem apenas a olhou. — Sua mesada. Não é muito, mas é mais que o mês passado. E como as telas de proteção da sacada e das janelas ficaram um pouco mais caras do que previ, vou descontando aos poucos; assim você não ficará sem dinheiro.

Apesar de não poder dispor de dinheiro, pois ela mal começara no seu novo emprego e o ordenado era menor que o que ganhava no Buffet, Maitê cumpriu o combinado.

Emília não esperava receber sua mesada naquele mês. Desconfortavelmente ela pegou o envelope e agradeceu, voltando os olhos para a TV enquanto a tia ia arrumar a mesa para o jantar. Sem conseguir prestar atenção no capítulo da sua novela favorita, Sol foi até o quarto para guardar seu dinheirinho, mas ao invés disso sentou na cama e o encarou. Minutos depois a tia bateu na porta e a chamou para comer.

Antes de sentar à mesa Emília olhou para a tia, um pouco sem graça, e lhe devolveu o envelope. Como Maitê, já sentada, não o pegou, querendo saber o porquê ela o estava devolvendo, Sol explicou.

— A senhora mal começou no seu novo trabalho e ainda vai demorar para receber seu primeiro salário. E eu sei a senhora tem contas pra pagar. — para driblar a sensação ruim de que havia pisado na bola, ela fitava o envelope e enrolava e desenrolava os cantos. — Não é certo eu ficar com o dinheiro.

Maitê realmente ficou surpresa com a postura da sobrinha, e feliz. Quantas adolescentes teriam aquela atitude?

— Eu agradeço sua preocupação, mas está tudo bem, querida. Você também tem seus gastos e a sua mesada não afeta o orçamento da casa. — o que não era totalmente verdade, pois havia tirado o dinheiro das suas economias e posteriormente, ia ter que apertar um pouco o orçamento para manter o combinado. — Agora sente-se para jantar antes que o seu purê esfrie demais e perca a textura que você gosta. 

— Por favor, tia. Pega. Os seus gastos são mais importantes que os meus.

— E por que você acha que seus gastos não são importantes, Emília? Você tem que preencher seu cartão de transporte, comprar os tickets do refeitório, comprar suas coisas...

— Eu sei tia, mas tudo o que a senhora gasta é pensando em nós duas e eu só gasto comigo. E quando eu vim pr...  — titubeou um instante, prosseguindo. — A senhora disse que somos uma famí-ília... — deixando seu pequeno copo derramar. — Então e-eu também preci-iso fazer a minha parte...

— Ôh, meu amor... — levantou e a abraçou, chorando junto com ela, porém, mais contida.

— D-Desculpa, tia... eu... — era tanta coisa que ela queria dizer, e que a estava machucando, que não conseguia verbalizar, só chorar com a cabeça recostada no ombro da tia.

— Está tudo bem, querida. Está tudo bem... — Maitê sabia o que ela estava sentindo, pois sentia o mesmo. — Nós duas cometemos erros; eu mais que você.

Maitê sabia que para aquela convivência dar certo e a relação ficar mais forte, ela precisava ser o mais sincera possível. Estava na hora delas conversarem, então esperou a sobrinha se acalmar e depois se acomodaram no sofá da sala.

 Sol estava com o coração apertado. Ela sabia que estava tudo bem, pois a tia havia dito que estava, mas não conseguiu evitar. Ela não estava acostumada a sentar e conversar para resolver os problemas. Seus pais não faziam isso.

Por um breve instante Maitê a fitou, pensando em como começar aquela conversa, que palavras usar. Ela era tão boa com as palavras, mas daquela vez elas pareciam lhe fugir da boca.

— É nessas horas que a gente constata que se muitos responsáveis não conversavam com os filhos, não é por falta de paciência ou não quererem, mas por não saberem como fazer. A gente até sabe o que quer falar, mas não sabe como e nem quando. — refletir em voz alta lhe pareceu uma boa ideia para começar. — Mas então eu olho pra você e vejo que esse receio não é exclusivo nosso; vocês também não sabem como e quando fazer isso. Talvez pelos mesmos motivos, o medo de não sermos entendidos ou mesmo compreendidos e até respeitados, ou por motivos diferentes, não importa; no fim, o resultado é o mesmo, o silêncio, de ambos os lados. E é esse silêncio que eu não quero mais entre nós duas, Emília.

— ... — Sol sentiu como se a tia estivesse descrevendo a história da sua vida com os pais, mas não que aqueles seriam os motivos deles e sim os dela. Contudo, ela ainda não sabia o que dizer, mantendo o olhar lagrimoso fixo na direção da mesinha de centro, limpando as gotas que corriam sua face, querendo apenas ouvir.

— Mas eu não posso apenas cobrar que você fale comigo, se eu mesma tenho evitado algumas conversas. Então... — sorriu, sentindo que aquela conversa estava começando a parecer mais fácil para ela, embora ainda estivesse nervosa. — já que precisamos quebrar o silêncio, sendo eu a mais velha, a mais madura e, ao que parece, a que mais gosta de falar nesta casa... nada mais justo que começar por mim.

Sol limpou as lágrimas do rosto novamente, mais calma, e olhou para a tia, confusa e curiosa. A tia falaria de si ou dos problemas que as duas tiveram?

— Sabe, querida. Quando sua mãe me pediu para cuidar de você até eles se estabilizarem em Londres, eu fiquei surpresa e confusa. Eu morava sozinha, tinha uma rotina louca de trabalho e passava muitas noites fora de casa. Não tinha obrigações ou responsabilidades familiares. Se eu quisesse dormir fora ou comer um lanche na rua antes de vir para casa, tudo bem. Eu só era responsável por mim e apenas a mim eu devia satisfação de alguma coisa. E eu gostava de tudo isso. E foi por isso que a minha primeira resposta para a sua mãe foi... "Não sei, Sara. Preciso pensar"... Não que eu não te ame, mas eu não esperava por aquilo.

Emília não sabia mais se queria continuar aquela conversa, mas ficou lá, sentadinha no sofá, ouvindo, ora roendo as unhas, ora cutucando-as. Ela também estava cansada do silêncio.

— Eu tive que pensar muito, porque, pra mim, não era só uma questão de trazer ou não você para cá por um tempo; era mais que isso. Era uma responsabilidade que eu não sabia se estava pronta para ter. Uma situação que mudaria a minha vida por completo, porque não ia mais ser apenas eu. E isso me assustou... e ainda me assusta. Mas... de certa forma, eu sentia que o melhor pra você, naquele momento, era vir morar comigo, então aceitei o pedido da sua mãe... e com a certeza de que não seria temporário, mas definitivo. — Maitê realmente acreditava que Emília teria tido muita dificuldade para se adaptar na Inglaterra. A própria jovem também tinha aquela certeza.  

Uma dúvida começou a martelar a cabeça de Emília e apesar do medo da resposta, criou coragem e perguntou:

— A s-senhora se arrependeu de... ter aceitado q-que eu viesse pra cá? — fungou, olhando pros dedos.

— Não, Emília. Nem por um instante. Nem mesmo quando tivemos os nossos problemas. Mas algumas vezes eu me perguntei se você estava feliz aqui, principalmente nos últimos dias. — Emília tentava conter as lágrimas, mas estava difícil. — Você é feliz aqui, Emília?

A jovem passou as mãos nos olhos para secá-los e num murmuro disse a tia:

— S-Sou.

— Desculpa querida, não entendi. E não tenha medo de me dizer a verdade. Se você não estiver feliz aqui, pode dizer. Não vou me zangar com você.

— Eu s-sou, tia. Eu sou f-feliz aqui... — Não dava mais para segurar, então se deixou chorar, novamente nos braços da tia. — E-Eu adoro morar com a senhora...

— Eu também estou feliz que esteja aqui, Emília... E por favor, tenha paciência comigo. — pediu com certo aperto no peito. Emília deixou os braços dela para fitá-la. — Tudo isso é novo pra mim e nem sempre eu vou saber como agir ou mesmo o que dizer. Terá momentos em que eu vou precisar de espaço, outros em que eu vou me estressar, perder a paciência, querer te acertar com meus chinelos; e talvez eu até faça isso... — Sol riu, enxugando as lágrimas, fungando, limpando a coriza com a blusa - ela ia para a máquina de lavar mesmo - Mas não significa que eu não te ame e nem que eu não te queira aqui. É só que... — ela não imaginou que dizer aquilo mexeria com ela, mas mesmo com os lábios tremulando, continuou. — E-eu nunca fui m-mãe... e eu não s-sei como ser... Então... e-eu ainda vou fazer m-muita besteira. E é por isso que eu preciso que você me diga, s-sempre... o que está s-sentindo e pensando em relação a nós duas. É a única forma de eu saber se estou fazendo tudo c-certo... ou t-tudo errado.

Emília não imaginou que a tia tivesse alguma insegurança em relação a elas duas, tampouco medo de estar cometendo erros. Ela era sempre tão forte, segura e sorridente. Vê-la tentar controlar o que estava sentindo, talvez até para evitar se mostrar frágil, a fez perceber que a tia não era tão forte quanto acreditava que era e que, assim como ela, também precisava se sentir acolhida e principalmente, esvaziar o copo de vez em quando.

— A senhora está fazendo tudo certo, tia. — disse-lhe, colocando sua mão sobre a dela, esboçando um sorriso, mesmo que um pouco choroso. — E não se cobre tanto em relação a mim. A senhora não precisa ser como uma mãe perfeita, a senhora só precisa ser como sempre foi, uma tia carinhosa, amorosa, brincalhona, atenciosa, com muitos conselhos, alegre e que sorri igual modelo de comercial de pasta de dente... Como agora. — ela ficou feliz por ter feito a tia esboçar um sorriso largo. — A senhora pode até continuar sendo cheia de regras, desconfiada, principalmente com os garotos, perigosa quando fica brava, louca quando fica muito brava e até puxando o saco daquele besta. Tá tudo bem, porque é tudo i-isso que faz a senhora ser... a melhor tia.

Maitê sorriu, e beijou-lhe a face, emocionada, sentindo-se privilegiada por tanto amor. Sol respirou fundo e continuou:

— E por favor, tenha paciência comigo também, porque eu, com certeza, vou fazer muita besteira. E se a senhora puder, troque seus chinelos por pantufas. Dói menos. — Maitê não aguentou e riu. Ambas riram, sentindo-se mais leves.

— Acho que teremos que esquentar a comida e usar pedrinhas de gelo no suco. — disse Maitê, levantando, dando por encerrada aquela conversa.

Emília sorriu, levantou e a abraçou novamente.

— Eu te amo, tia.

— Eu também te amo, Emília.

 

***

 

No meio da noite...

— Isso é normal, Emília. Dependendo que como está o fluxo a gente nem sente descer.  E como foi a sua primeira menstruação não tinha como ficar alerta com a data. 

— Mas eu não tive nem cólica, tia. — ela tinha muitas dúvidas — E eu sempre vejo as garotas reclamarem disso.

— Também é normal. Nem todas as mulheres sentem cólicas horríveis. Tem quem sinta cólicas mais leves, assim como tem mulheres que sentem cólica vez ou outra, como eu. — explicou enquanto passava a calça do Natanhiel, depois de tê-lo lavado. Claro que Maitê ganhou uma bela massagem nos ombros em troca daquilo.

— Entendi. — bocejou de sono.

— Não se preocupe com isso, Emília. Amanhã ligarei para a minha ginecologista e marcarei uma consulta pra você. Ela vai tirar suas dúvidas melhor do que eu. E não se preocupe, ela não vai pedir para ver a sua fouffe[1]. — brincou, por ver a cara de preocupada da sobrinha.

Sol riu da forma que a tia falou aquilo, depois pegou as roupa do amigo, macias, passadinhas, dobradinhas e com cheirinho cítrico, e foi para o quarto, dormir.

Maitê riu sozinha enquanto dobrava a tábua de passar e guardava o ferro, lembrando da sobrinha tentando se convencer que não tinha TPM enquanto a massageava.

 

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Notas finais do capítulo

[1] Fouffe: Bichano - Apelido popular para vagina. Os franceses têm diversos apelidos para suas genitálias (assim como nós), alguns populares e bonitinhos, como fouffe, outros considerados vulgares, como 'garage à bites' (garagem de galos) e engraçados como 'tarte au poil' (torta de cabelo). Na linguagem vulgar, bite (galo) é apelido para pênis.



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