A bússola escrita por Lua Barreiro


Capítulo 1
Capítulo único.


Notas iniciais do capítulo

Escrevi essa história para o desafio natalino, acredito que não tenha erros gritantes. Afinal, a história foi betada e revisada várias vezes.E boa sorte para todos :3



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Todos os noticiários cumpriam a tarefa de anunciar sobre o desaparecimento do senhor Noel durante a madrugada do dia vinte e três. Grande parte das crianças desistiu do natal, jogando suas cartas, carregadas de pedidos, fora e se deliciando de todos os biscoitos que um dia seria do velhinho. Os pais se incumbiam de correr aos atacados a fim de comprar os brinquedos que ainda restavam.

Meus pais não possuem alguma condição capitalista, vivemos em uma singela casa, que pode cair a qualquer tempestade. Grande parte do telhado que deveria cobrir o meu quarto já não existe mais, eu poderia me incomodar com isso, mas, admito que eu sinta falta apenas nessa época do ano, quando os flocos de neve caem. Nas outras me contento em dormir sob a luz das estrelas.

Encontrava-me aconchegado entre alguns cobertores, assistindo a todos os noticiários em uma TV que ganhamos em algum dos sorteios que minha mãe insiste em participar. Grande parte do que temos em casa é originário desses jogos, pelo fato de que um cupom custa apenas alguns dólares e um aparelho eletrônico custam milhares. Meu avô está deitado sob a única cama que nós temos em casa, há muito tempo ele não consegue se mexer ou falar. Minha mãe diz que ele está em estado de vegetação, mas, eu não entendo já que ele não possui folhas e continua da mesma cor.

— Filho, eu preparei essa sopa com alguns dos legumes que restavam. – Entregou-me um prato. — Espero que encontrem logo o Noel ou nosso natal estará acabado.

— Mamãe. – Engoli uma generosa colher de sopa. – O natal só estará acabado se nós deixarmos de acreditar nele.

— Claro filho, claro. – Respondeu com voz baixa.

— Mãe, onde está o papai? — Indaguei.

Poucas das vezes que vi meu pai em casa ele estava dormindo, nunca fiz questão de acorda-lo já que muitas das vezes que despertei durante madrugada ele havia acabado de chegar. Em todos esses dias pude ouvir gritos por parte da minha mãe e algumas coisas sendo jogadas ao chão, pensava em levantar para ver o que estava ocorrendo, mas ela sempre ordenou que nesse caso eu continuasse deitado.

E foi o que eu sempre fiz, continuei deitado. Algumas vezes conversando com as estrelas e em dias de chuva me transferia para a parte do quarto que os pingos não alcançavam.

— Deve estar perdido por ai. — Suspirou. — Como sempre.

— Nós devíamos ir procura-lo, não acha? Vai que ele está em perigo. — Levantei-me rapidamente.

— Anthony, ele não precisa da nossa ajuda. — Segurou minhas mãos para que eu sentasse novamente. — Posso-te contar uma história?— Sim, mamãe. — Sucedi.

— Em um passado, não muito distante, o seu pai foi pego por um monstro. Um monstro feio e importuno, que sempre se aproveitou dos momentos mais frágeis, mas mesmo que a ação do

monstro o fizesse mal ele se sentia bem. Então isso acabou se tornando um vício, toda vez que seu pai sentia-se desestimulado ele cedia ao monstro. Hoje, seu pai vive pelo monstro e não por ele mesmo.

— E como podemos nos livrar desse monstro? — Indaguei furioso

— Apenas com a vontade do seu pai, caso contrário tudo continuara do mesmo modo que está.

— Mãe, esse monstro tem nome? — Perguntei, eu faria de tudo para acabar com esse maldito bichano.

— Sim filho, alcoolismo.

Enalteci-me e usei um dos cobertores como capa. Dei alguns socos no ar e fui correndo até o meu quarto para pegar uma bússola antiga do meu avô. Guardei ela para que um dia pudesse dar uma melhor para ele, já que vivia reclamando daquela quando ainda podia falar. Dizia coisas sobre apontar para o sul, enquanto deveria estar apontando ao norte.

Não faço a mínima noção do que seja isso.

Fiquei no quarto treinando alguns golpes para mata-lo de certeiro. Chutes seguidos de socos e tapas, com certeza não deixaria aquele monstro em pé. Guardei a bússola em um dos meus bolsos e esperei até que a minha mãe dormisse.

Queria que fosse uma surpresa para ela, eu salvar a vida do papai.

Deitei diante dos meus cobertores, para que o tempo passasse mais rápido. O céu não possuía muitas estrelas, mas a mais brilhante estava lá. Em um livro que eu encontrei beirando ao meio fio de nossa casa, dizia que a estrela que se sobressaísse às outras, próximo à noite de natal, era o papai-noel chegando para entregar os nossos presentes.

Mas, neste ano o papai-noel havia sumido. Minúsculas são a chances de aquele ser o seu trenó, porém eu nunca deixarei de acreditar na magia do natal.

Desci as escadas bambas que davam até a sala para ver se minha mãe já estava dormindo, cheguei à conclusão de que ela estava. Tirei os meus sapatos desgastados para que não fizessem barulho e fui até a porta de saída. Abri-a com tamanha delicadeza, a fim de não acordar a minha mãe com seus rangidos extremos. Os flocos caiam de modo calmo, diferentemente do vento que poderia derrubar qualquer velhinho a qualquer minuto. Corri até a rua e parei em alguma das esquinas, para que eu pudesse-me localizar com aquela velha bússola.

Segui a letra N. que apontava para uma rua ainda movimentada, desviei de carros e cachorros perdidos. Entrei em um local cheio de pessoas, elas riam e algumas choravam. Pareciam pronunciar coisas sem noção, digamos que eu não conseguia entender grande proporção do que elas diziam.

Parecia-me que aquela bússola realmente era mágica. Avistei meu pai em um dos bancos, ele estava abraçado a uma mulher estranha, seu rosto havia marcas vermelhas e sua boca possuía uma cor muito forte.

Possivelmente aquele seria o monstro.

Apertei o nó que prendia a capa ao meu corpo e fui correndo até eles. Não perceberam minha presença, então decidi atacar de prontidão. Comecei puxando ao espinho vermelho que havia em seu pé.

Algo parecido com um sapato.

Logo depois chutei suas pernas e estapeei sua barriga, não deixando de sobra o mínimo de força. Ela se afastou rapidamente jogando uma bituca de cigarro em mim, o que de certo modo trouxe uma queimadura ao meu braço. Mas, isso são marcas da batalha.

Pisoteei a bituca e novamente comecei a soca-la, até que senti alguém me segurando. Nos primeiros momentos me rebati, mas parei quando vi que era o meu pai. Ele parecia bravo e extremamente decepcionado.

— Quem te mandou vir aqui? Seu pirralho. — Gritou enquanto segurava a gola da minha camisa.

— Eu vim-te salvar papai. — Vê se cresce moleque. — Jogou-me no chão. — Vai embora daqui, quando chegar em casa nós conversamos.

Senti algumas lágrimas descerem sobre meu rosto nada que me impediu de abraça-lo. Para mostrar que sempre estarei ali quando ele precisar. Ele empurrou o meu corpo e ordenou que eu fosse embora rápido antes que ele perdesse o controle.

Corri até a minha casa, o tempo de percurso seria mais rápido caso eu não fosse interrompido por um velho. Ele era alto e barbudo, sua pele é branca, mas ao mesmo tempo rosada. Perguntei o que ele queria e com certa dificuldade me respondeu:

— Eu estou morrendo de fome jovem menino. — Disse segurando as minhas mãos.

Demorei um pouco para respondê-lo.

— Senhor, eu não tenho comida agora. Mas, posso ir até a minha casa buscar o resto da minha sopa. Você poderia esperar? Eu juro que te trago o mais rápido possível. — Respondi já me preparando para correr.

— Sim, eu espero. — Suspirou alegremente.

Eu havia guardado aquela sopa para comer no dia seguinte durante o café da manhã, pensei em não voltar para ajuda-lo. No entanto eu deveria fazer isso, pois sua necessidade era maior que a minha. Enquanto eu dormia em algumas cobertas o seu único aconchego era um velho jornal, como pude perceber.

Entrei novamente em silêncio para que minha mãe não acordasse, já que certamente não deixaria que eu levasse o prato de comida até o homem. Procurei algum talher limpo para que ele comesse, mas não encontrei. Enquanto eu saia o meu pai estava entrando, tentei explicar para ele o que eu iria fazer, mas o mesmo pareceu extremamente zangado com isso:

— Nós mal temos comida em casa e você quer alimentar esse velho imundo? — Gritou e logo depois goleou um pouco de sua bebida.

— Ele é um bom homem pai. — Respondi.

— Eu sou um bom homem e nem por isso tenho uma boa mulher o um bom filho. — Jogou o prato que estava em minha mão no chão. — Agora vá dormir, para que amanhã você colha alguma coisa. Talvez, só assim você faça algo que preste.

— Entendido. — Andei até o meu quarto.

Subi o telhado para que eu pudesse sair sem que algum dos meus pais visse, andei sobre eles com tamanho cuidado, para que eu não caísse ou fizesse barulhos. Não era um telhado alto, já que estava quase caindo então pulei facilmente, o máximo que senti foi um choque entre minhas juntas.

Eu não possuo comida, apenas uma bala. Um doce tão pequeno como uma bala não sustenta, mas pelo menos disfarça fome. E isso faria com que ele dormisse um pouco mais feliz do que todos os outros dias de sua vida. Fui correndo até o homem que ainda estava lá acordado.

— Desculpe, eu tentei trazer a sopa, mas meu pai jogou toda ela fora. — Denotei enquanto lhe oferecia a bala.

— Tudo bem meu filho, essa será uma das minhas melhores ceias de natal.

— O natal é só amanhã. — Esbravejei.

— Talvez, amanhã ninguém tão bom quanto você me ajude. — Cerrou seus olhos e dormiu.

Voltei para a casa enquanto o dia ainda nascia, peguei alguns legumes que sobreviveram à neve e finalmente entrei. Minha mãe limpava os assoalhos, meu pai estava dormindo e meu avô continuara de mesmo modo. Liguei a TV em busca de alguma informação sobre o natal, mas nada veio à tona.

As potências mundiais ainda procuravam o Senhor Noel e todos os seus presentes. Entrevistavam duendes e todos que tiveram contato com ele antes de o mesmo sumir, ninguém sabia de nada. Bem, era o que eles diziam.

Dormi um pouco, meus olhos não conseguiam se mantiver abertos depois de toda a noite que passei acordado. A luta, a fome, a mulher tudo se passava em minha cabeça até eu cair em sono profundo, onde nem mais o barulho da palha em atrito com a parede me incomodava.

Já estávamos no dia vinte e quatro, todos andavam animados pelas ruas com gigantescos presentes em seus carros. As crianças corriam com suas novas bicicletas e patins, até mesmos os animais abandonados se aparentavam felizes por conta de que os ativistas sempre aumentam suas doações no fim do ano. Minha véspera sempre foi à mesma, minha mãe passava a tarde preparando alguns pães para a nossa ceia, com farinha que doações sempre nos trouxeram e meu pai naquele mesmo lugar estranho. Eu passava a tarde vendo filmes na TV que de algum modo me traziam a esperança de um natal melhor.

Sempre acreditei que tudo pode acontecer nessa noite e nunca deixarei de acreditar. Mesmo que o Noel não esteja conosco nesse natal, a minha família está e isso é o suficiente para que eu seja feliz.

A tarde passou rápido e o cheiro de pão atiçava ao meu estômago cada vez mais, é a única vez no ano que comemos algo gostoso. Peguei alguns dos cobertores vermelhos que nós temos e forrei a mesa a fim de ela ficar mais bonita. Corri até ao quintal para brincar, mesmo que algumas crianças não gostem de se divertir comigo eu tenho meus fiéis amigos.

Beijei a bochecha de minha mãe e fui até lá.

— Cuidado Anthony, você tem apenas sete anos. — Gritou enquanto eu saia.

— Tudo bem mãe, te amo.

Ela sorriu.

Procurei poucos de meus amigos, mas todos eles brincavam com seus robôs e triciclos. Pedi para que me deixassem experimentar um pouco, mas recusaram, alegando que eu iria sujar seus brinquedos, dei de ombro para os mesmos e fui brincar sozinho. Colhi centenas de pedrinhas para jogar em traças que eu visse por ai.

Encontrei apenas duas dessas filhas da mãe.

Alguma das pedras me chamou tamanha atenção, por ser extremamente brilhosa e redonda. Soprei a fim de tirar um pouco de sua poeira e pude perceber que era uma moeda. Senti o entusiasmo tomar conta de todo o meu corpo, talvez esse tesouro pudesse-me render a algum refrigerante. E essa seria a nossa melhor ceia de natal de todos os tempos.

Fui correndo até a venda que se encontra o mesmo velho que eu ajudei na noite anterior. Percebi que ele estava indo embora, então o parei para me despedir. Ele estava vestido de modo diferente, com um gorro e roupas vermelhas. Virou rapidamente quando eu o cutuquei e soltou um largo sorriso.

— Para onde o senhor vai? — Indaguei.

— Eu tenho que ir embora, estava-te esperando até agora. — Afirmou.

Olhei para a minha moeda e resolvi que eu deveria oferecer a ele. Estendi minhas mãos para que ele pegasse o objeto, mas o mesmo recusou.

— Pode ficar meu pequeno, você precisa mais que eu. — Suspirou. — Em meio de tanta gente você é o único que realmente carrega o espírito de natal consigo e me provou isso ontem, quando me ofereceu a única comida que havia para você se alimentar. — Pigarreou. — Eu quero-lhe realizar um pedido. — Um pedido? — Perguntei.

— Sim. — Ele riu.

— Eu gostaria de uma bússola nova, para o meu avô. — Decidi rapidamente, eu poderia pedir para salvar o meu pai do monstro que o cercava, mas certamente seria em vão.

Puxou um saco vermelho de suas costas e tirou de lá uma bússola nova e me entregou. Acariciou os meus cabelos e logo depois foi embora. Despedi-me dele e entrei na loja para pegar ao refrigerante, consegui comprar apenas uma lata, mas que seria suficiente para toda a nossa família.

Sai da loja, a noite já havia chegado e as luzes estavam mais visíveis do que qualquer outra parte do dia. Guardei novamente a bússola em um dos meus bolsos e voltei para a casa, quando mostrei para minha mãe o que eu havia comprado ela ficou extremamente feliz e colocou a lata em cima da mesa.

Deite-me até que a ceia fosse servida, liguei a TV e novamente os noticiários anunciavam sobre o Noel. Ele ainda não havia sido encontrado e provavelmente o natal perderia toda a sua magia esse ano, sem presentes, sem biscoitos ou leite. Mas, o que poucos viam é que o mais importante do natal é a nossa família.

— Filho, venha comer. — Minha mãe ordenou-me trazendo grande euforia.Levantei apressadamente e peguei um pedaço de pão e um gole de refrigerante a minha mãe fez o mesmo. Logo fomos sentar em volta do meu avô, para que a família estivesse completa. Comemos antes da meia-noite, por nossa fome não aguentar até o combinado, mas mesmo assim esperamos até o horário correto, antes de irmos dormir.

A exata meia-noite o sino da catedral mais próxima soou por toda a cidade, fazendo com que meu vô despertasse de seus sonhos. Nesse mesmo momento me levantei e fui até a sua cama, fui cuidadoso no momento de me apoiar, já que é um móvel frágil. Tirei a bússola de meu bolso e coloquei-a sobre o seu peitoral.

Percebi seu tamanho esforço para abrir um sorriso, seus olhos brilhavam como jamais brilharam. Mesmo assim levantei-me e fui até a minha mãe, já que eu sei que ele supostamente não poderia falar nada ou pegar o objeto, porém devolver aquilo que já era dele aquece o meu coração. Quando nós dois estávamos de costas guardando os dois pratos que sujamos, pudemos ouvir algo:

— Obrigada. — Meu avô disse com tamanha dificuldade.

Nós dois corremos para abraça-lo, aquilo certamente foi o nosso milagre natalino. Tanto a comida em nossa mesa quanto a fala do meu avô, marcariam esse dia como nenhum outro marcou, tudo o que eu desejava estava lá comigo. Meu desejo foi realizado e eu agradeço o homem bom que eu encontrei na rua, sem ele nada disso haveria acontecido.

Faz exatos onze dias desde o dia do natal, muitas das decorações já estavam no lixo juntamente com os restos da grandiosa ceia que muitos fazem. Os jornais voltaram ao seu ritmo normal, mortes, aumento da moeda entre outras notícias populares. Eu brincava ao lado da minha mãe enquanto ela aguardava o começo da novela, até que uma noticia me chamou a atenção. Larguei as pedrinhas de lado de vidrei meus olhos ao televisor, juntamente com todos os outros presentes na sala, ou seja, meu avô que havia tido um grande avanço em seu grau de mobilidade.

— No dia quatorze de janeiro o Senhor Noel, popularmente papai-noel, foi encontrado novamente em sua mansão. — O âncora anunciou. — Entrevistamos o velhinho para sabermos todos os detalhes de seu desaparecimento.

Na tela apareceu o mesmo homem que eu havia concedido ao meu pedido dias atrás, no natal.

— É ele. — Murmurei.

— Ele quem filho? — Minha mãe indagou, sem ao menos fitar-me.

— Deixa para lá. — Respondi.

A entrevista havia sido interrompida pelos malditos comerciais, voltando somente agora:

— Qual o motivo de seu desaparecimento Noel?— O entrevistador perguntou.

— Esse ano eu me dediquei somente a uma pessoa, uma única criança. A qual realmente demonstra se importar com o natal pelo que ele é e não por o que representa. Presentes são apenas mais um modo de dar ênfase a uma data tão especial, para que ela não se torne como qualquer outro mero feriado. Devemos comemorar o natal como uma data cristã, não capitalista. — Pigarreou. — Mas, quem sou eu para dizer isso? Apenas um símbolo dessa aldeia capitalista? Talvez, digamos que eu seja apenas um homem que tentou salvar o natal mais agora está desistindo disso. Ajudei a última criança que eu desejava ajudar e espero que ela tenha tido um dos melhores natais de sua vida. — Completou.

— Eu tive (...). — Sussurrei.


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