Do Barro e Coisas da Minha Terra escrita por Goldfield


Capítulo 1
Capítulo Único




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DO BARRO E COISAS DA MINHA TERRA

Do barro veio, e ao barro retornaria.

O dito remeteria àquele já conhecido se o termo usado fosse “pó”, mas o pó molhado era barro, e naquelas condições o barro não voltaria a ser pó – visto que a nascente brotando da terra sempre faria com que ficasse úmida. Algo que se tornava raro, já que os homens queriam soterrar a nascente – e aí tudo permaneceria eternamente pó. Mas ali ainda brotava água; e assim como na crença ou na ciência ela era fonte da vida, resolveu brincar por si só de divindade e dar vida ao barro.

A erupção aquosa da nascente começou a agitar a argila ao redor, fazendo-a subir e formar pequenos vulcões de poeira submersa. Aumentando em intensidade, uniram-se pouco a pouco, até tornaram-se uma autônoma fábrica de modelar. Manipularam o barro ao redor para primeiro formar um tronco, as costelas e a espinha sendo compostas de argila mais dura, enquanto os músculos, vulga “carne”, ganharam uma consistência mais mole. Como apêndices da primeira estrutura, braços e pernas escorreram de início em pequenos veios mais líquidos do que sólidos, rapidamente assumindo dureza e ganhando detalhes em suas extremidades, o habilidoso escultor invisível lapidando os dedos de modo invejável. Por fim veio a cabeça, com um contorno oval subindo da poça lamacenta, e o esmeril misterioso fê-la ganhar olhos, nariz, orelhas e boca. Os lábios moveram-se num espasmo, rachados como terra seca; e os olhos tinham pupilas feitas de pedregulho brilhante – quiçá diamante, embora a pedra preciosa jamais houvesse sido encontrada naquelas terras. Talvez fora guardada por milênios apenas para aquela criação, a natureza não desejando desperdiçá-la na fútil cobiça dos homens.

Com a obra concluída, o Frankenstein do solo erodido ergueu-se da nascente como um titã adormecido, ainda pingando lama e perdendo algumas sobras de argila que faltavam para deixar seu contorno perfeito; desejando não vingança contra os olimpianos que o haviam prendido, mas descobrir aquele mundo do qual até então fizera parte tão passivamente.

Ousou um passo desajeitado, quase tropeçando e voltando a ser somente barro ao encontrar a terra-mãe. Mas a perna ganhou mais firmeza, e logrou dar o segundo, então o terceiro. No início quase arrastava os pés, até conseguir andar com quase naturalidade após instantes de rápido aprendizado. Os olhos acostumaram-se à claridade, delineando o céu anil de poucas nuvens, os abutres nele voando por cima do vale de paredes avermelhadas que o cercava. Não sabia como, mas já conhecia o nome de seu berço – e havia duas, e divertidas, maneiras de descrevê-lo: “boçoroca” ou “voçoroca”. Sabia que as consoantes não eram as mesmas e nem necessariamente parecidas: um “bem” diferente de um “vem”, um “mau” diferente de um “vau”, um “Belisarius” tendo semelhanças, mas sendo ao mesmo tempo diferente de um “Vercingetórix”; mas, com “b” ou “v”, sob o sol vespertino e as camadas coloridas e sobrepostas de argila, tudo era belo.

Seguiu em sua caminhada incerta, cheia de novidade, rumo à saída do vale lamacento. Enxergou, à sua direita, uma serpente serpenteando serena sobre o solo, arrastando-se como ele próprio quando, há pouco, erguera-se do barro pela primeira vez. À sua esquerda, no alto do galho de uma árvore seca, um abutre abatido abanava as asas agourento, observando-o com um olhar fixo de caçador. Se o atacasse, no entanto, encontraria apenas carniça feita de argila, que provavelmente não o satisfaria. E, enquanto passava por aquelas aliterações naturais ao cenário, o homem de barro enxergou ao longe duas silhuetas, rumando na sua direção.

Andavam em duas pernas, assim como ele, porém eram indivíduos feitos de carne e osso, ou seja, o barro superior que recebera o sopro da vida divino ou prevalecera sobre os outros barros depois de milênios de seleção natural – fosse lá em que se acreditasse. Davam seus passos com facilidade bem maior que o homem de argila, fazendo com que conhecesse um sentimento novo ao invejar a firmeza de suas pernas erigidas com ossos de cálcio ao invés de barro duro. Vestiam roupas, ao contrário dele – mas, conforme se aproximaram, não demonstraram incômodo por ele estar nu, nem mesmo espanto por ele ser tão diferente deles; e, sabia, julgado impossível de existir. Concluiu, pela baixa estatura e olhares pueris da dupla de desconhecidos, serem crianças; e crianças costumavam aceitar o fantástico de uma maneira que os adultos, com seus corações mais endurecidos que o mais rústico solo, jamais conseguiam.

Já adorava as crianças antes mesmo de ter se separado da terra, pois sempre vinham brincar no atoleiro, sujando-se da cabeça aos pés e rindo ao invés de reclamar, e subindo ao alto das encostas em torno das (b)voçorocas para empinar suas pipas coloridas. Julgou que conseguiria por isso conversar com elas sem preocupação, travando seu primeiro contato com o mundo humano.

Os dois meninos, descalços e de boné, pararam diante dele a poucos metros de distância, fitando-o com uma curiosidade ausente de medo. O homem de argila também estacou, e abriu a boca barrenta para se comunicar. A voz saiu molhada, líquida, já que suas cordas vocais igualmente de argila precisavam de constante umidade para se movimentar; mas as palavras saíram com nitidez suficiente para serem compreendidas:

- Como faço para transformar meu barro em carne e osso? – indagou, como um Pinóquio disposto a procurar fora da boçoroca a Fada Azul que o transformaria.

As crianças se entreolharam, parecendo confusas enquanto pensavam numa resposta. Talvez o homem de argila houvesse iniciado a conversa com os dois de uma maneira difícil demais. Resolveu recomeçar como achava que as pessoas comuns de carne e osso faziam:

- Quais são seus nomes?

O primeiro dos meninos replicou alegre:

- Ganymedes, senhor de barro.

O outro respondeu quase simultaneamente:

- Percival, ao seu dispor.

Julgando que ainda precisava saber mais a respeito dos garotos, o homem de argila nascido do atoleiro continuou:

- E o que aqui fazem, visitando minha casa?

Ganymedes deu sua resposta de modo sonhador, como se flutuasse em suas próprias palavras:

- Aqui venho procurar a águia que me foi prometida por Zeus, na qual poderei voar até o Monte Olimpo e nele residir. Quero provar do néctar divino, que a mim, mesmo sendo mortal, por Zeus foi prometido. Nesta terra já existe um néctar, feito da saborosa jabuticaba, mas insiste o Senhor do Olimpo que aquele servido em sua morada é melhor que o produzido aqui. Por isso vim até a boçoroca aguardar a ave na qual farei minha viagem, na esperança de encontrá-la entre os abutres, socializando-se ao contar sobre todos os lugares que já visitou e coisas prodigiosas que já viu nesse vasto mundo.

Esperando que o amigo terminasse sua exposição, foi a vez de Percival explicar:

- Venho aqui procurar o Santo Graal, o Cálice Sagrado usado pelo Senhor Jesus Cristo na Última Ceia e que colheu seu sangue durante a crucificação. Dizem que José de Arimatéia, o fiel discípulo tornado imortal para guardar o segredo do Cálice, disfarçou-se de padre e veio esconder o Graal nesta terra há mais de duzentos anos, selando-o numa gruta existente numa destas voçorocas. Na época esta terra era habitada por pessoas sem compaixão, que expulsaram José de Arimatéia quando ele tentou defender os escravos que aqui residiam, três dos quais morreram neste mesmo vale, suas sepulturas indicando o local em que o Graal estaria escondido. José, indignado, agitou o pó de suas sandálias contra a terra e profetizou que as boçorocas um dia engoliriam os senhores arrogantes, e elas avançam com esse objetivo, a despeito dos esforços dos pobres mortais para contê-las. Mas, enquanto a erosão ainda não consome por completo estas cercanias, venho aqui em busca do Graal, tendo sido avisado pelo sábio Rei Pescador, arrastando-se coxo perto de sua casinha branca na beira do córrego próximo deste desfiladeiro, que posso encontrar o Cálice passando por um portão secreto oculto nas paredes de argila do atoleiro.

O homem de barro ouviu e ouviu, e foi tomado por imensa tristeza. Em seus séculos fundido ao solo, podendo assim observar e ouvir tudo que ali acontecia, jamais soubera de uma águia enviada por Zeus ou um cálice santo escondido nas entranhas do vale. Não poderia ajudar os dois meninos, e por isso temeu que eles também não o ajudassem.

- Ó, miséria minha! – lamentou. – Desconheço tais segredos, conhecendo da voçoroca apenas o mistério das águas que nascem aqui incessantes, mesmo se o homem tentar soterrá-las. Não poderei ajudá-los em suas demandas, e assim suspeito que também sejam incapazes de transformar este corpo lamacento no corpo formidável de um Homo sapiens de barro superior, desconhecendo igualmente quem possa fazer isso...

Ganymedes e Percival, compadecidos, adiantaram-se e colocaram cada um uma mão sobre os ombros do triste homem de barro, que havia se abaixado, fazendo seus joelhos unirem-se de novo à terra úmida. E, sorrindo, o primeiro dos meninos revelou:

- Podemos sim ajudá-lo, senhor de argila. Dominamos magia, e foi graças a esse poder que conseguimos chegar tão longe em nossa aventura. Se já fiz um ônibus virar instrumento musical e todos os homens ganharem rabo como se fossem bichos... Posso sim transformá-lo num ser de carne e osso.

- E eu, pela poesia, conseguirei encantá-lo através dos versos – Percival acrescentou. – Na lírica tudo é possível, nobre homem de barro, e eu, habilidoso bardo, posso recitar e cantar sua conversão num verdadeiro ser humano, já que lhe falta apenas o corpo de carne e osso, sendo capaz há muito, pelo que vemos, de amar e ser livre como todo ser humano pode e merece.

E, após assim falarem, as duas crianças retiraram ao mesmo tempo de seus bolsos papel e caneta... Escrevendo avidamente e com grande satisfação, ao mesmo tempo em que o homem de argila sentia seu tronco e membros formigarem. Pouco a pouco, a lama colorida ganhou o aspecto de pele, os ossos frágeis assumindo a dureza branca do cálcio, a cabeça sendo coberta por fios de cabelo que não eram mais apenas relevo na superfície de lama... e os olhos, mesmo perdendo o diamante, continuaram brilhantes ao se converterem em belas pupilas azuladas. Quando Ganymedes e Percival preencheram toda a superfície dos papéis com seus escritos, a caligrafia nas folhas brilhava de modo mágico, e o homem de barro agora era homem por completo...

Não mais ao barro ele retornaria, já que, afetado por aquele maravilhoso encantamento, era recebido de bom grado no círculo dos seres humanos viventes. E, tão logo o processo foi concluído, ouviu o imponente grito de uma ave de rapina acima de sua cabeça, mais precisamente uma águia pousando no topo de um arbusto; assim como um súbito brilho surgindo de uma das paredes da voçoroca, a luz de origem desconhecida aparentando indicar uma entrada.

Novamente trocando um olhar, os dois garotos deram um abraço apertado, cheio de alegria.

- Ó nobre amigo, temos muito a lhe agradecer! – afirmou Ganymedes pouco depois, voltando-se para o recém-convertido humano. – Era na verdade o guardião deste vale, e ajudá-lo fez com que os segredos dele a nós fossem revelados.

- Guardião? – o ser antes composto de argila não conseguia compreender.

- Tu és a alma destas boçorocas, amigo – Percival esclareceu. – Há muito tempo ansiava em ser livre, e a natureza cuidou para que pudéssemos providenciar seu pedido. Agradecido, o vale retirou o véu que cobria seus mistérios, e assim poderemos chegar ao término de nossas jornadas.

A águia voou para o chão, pousando no solo úmido para que Ganymedes nela subisse. Percival, por sua vez, desembainhou uma espada brilhante das costas e, a passos destemidos, seguiu rumo à passagem mágica que lhe era indicada até o Graal.

- E a minha jornada? – o antigo homem de barro, agora homem de carne e osso, queria saber, sendo apresentado à angústia.

- Só você pode trilhar... – Ganymedes, já alçando voo no pássaro, respondeu. – Mas, caso encontre uma casinha branca na beira de um regato pelo caminho, quando tiver os pés cansados e a alma alquebrada... Saiba que nela poderá descansar.

Desapareceu então no céu límpido, logo se tornando um ponto longínquo rumo às brumas do Olimpo... e, em terra, Percival sumiu através da parede de argila, a luz de sua espada sendo a última coisa a deixar a vista... Enquanto o mais novo membro da espécie humana, determinado, movia suas pernas agora firmes rumo a um novo mundo a desbravar...

Luiz Fabrício de Oliveira Mendes - "Goldfield".


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