Gris escrita por Petit Ange


Capítulo 3
Capítulo 2: Working Together




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GRIS
Petit Ange

Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira.
~ Anna Karenina (Tolstói).

 

 

Capítulo 2: Working Together. [7]

 

O rapaz de olhos e cabelos em nuances de azul teve um mínimo de quatro a cinco segundos para encarar aquele documento, gravando os detalhes necessários, antes de devolvê-lo com segurança para a carteira de couro (tosca, diga-se de passagem) e, em seguida, para a mochila (ainda mais tosca).

- Muito bem, senhor Demyx. Obrigado pela informação.

- De nada. – o idiota assentiu, com aquele seu sorriso despreocupado.

Mais tarde, Zexion ponderou, teria a certeza de vasculhar na net e nos sites do governo qualquer coisa que pudesse sobre “Demyx”. Aquilo não ia (e não podia) ficar simplesmente por isso.

- Ah! Isso me lembra... – ele desviou rapidamente os olhos para seu seqüestrado, para em seguida voltar a se concentrar na estrada. – ...Não me disse seu nome ainda.

Suspiro profunda e aparentemente cansado.

- Zexion. – se não abusasse dos monossílabos, iria cometer um assassinato.

- Ok. “Zexion”... – ele repetiu para si, talvez para gravá-lo na memória. – É um nome bem diferente, né?

Francamente, olhe quem está falando...”, pensou.

Um segundo solavanco no carro fez o rapaz respirar ainda mais profundamente. Será que, para completar seu dia, eles estavam atiraram contra seu pneu e furaram-no, na melhor das cópias descaradas de filmes de ação? Se forçasse um pouco a imaginação, já podia até ver-se algemado ou preso em um depósito fétido.

Cruzando os braços para poupar-se de qualquer ato realmente precipitado, ele encarou seu motorista.

E engoliu em seco.

Demyx, o idiota (este seria seu segundo nome a partir de agora) estava segurando um bloquinho de bolso e uma caneta – tirados sabe-se lá de que lugar –, e agora estava fazendo alguma anotação desconhecida.

- Hum... “Zexion” é com X de xícara, né? – ok, não mais tão desconhecida.

...Não. É com X de EU. VOU. MATÁ-LO. SEU... IMBECIL!”. Por sorte, Zexion nunca foi alguém cujos pensamentos acompanhassem, necessariamente, o corpo.

Ao menos, não sempre.

- COLOQUE ESSAS MÃOS NO VOLANTE. AGORA.

Demyx meio que estremeceu (aliás, este foi um movimento muito curioso – Zexion só podia compará-lo toscamente a uma mistura do total desengonçar de um pato e a tragicomédia motora de um macaco), largando os objetos que tinha em mãos quase que automaticamente depois do berro.

- Tá bom, tá bom! – ele voltou a prestar atenção na estrada. – Você quase me deixou surdo agora!

Ah, é? O rapaz de olhos azuis teve uma vontade incontrolável de esquecer-se de toda sua razão e pensamentos lógicos e simplesmente dizer-lhe alguma coisa bem desagradável, como mandar tomar em certos lugares impróprios para o horário (e a situação, de certa forma).

Se tirar as mãos deste volante outra vez...”, não. Controle-se, Zexion.

Pensando bem, se já havia gritado como um tolo, para mandar o tal Demyx realmente para onde merecia estava a um passo.

Antes que cometesse este erro, cruzou os braços com ainda mais força e obrigou-se a pensar na situação.

Quando viu-se calmo o suficiente para ser o dono da situação (hipoteticamente falando, claro) outra vez, ele entreabriu os olhos.

- Diga-me, senhor Demyx...

- Ah, não! – ele gemeu, parecendo ter levado um soco.

- O que foi? – sobrancelha erguida.

- Não me chame de ‘senhor Demyx’. Apenas de ‘Demyx’, ok? – explicou, muito calmamente, como quem fala alguma coisa que deveria ser óbvia. - É que ‘senhor’ me faz parecer um velho de terno.

Suspiro. – Tudo bem. Então... Senhor Demyx... – e ignorou totalmente os protestos anteriores dele. – Por que está fugindo?

Silêncio.

- ...Senhor Demyx? – sobrancelha perigosamente erguida.

Mais silêncio. E outro suspiro.

- ...Demyx?

- Oi? – agora, prestou-lhe atenção.

Passando a mão pelos cabelos (a ponto de ter perdido, por breves segundos, sua linha de raciocínio anteriormente estabelecida), Zexion repassou suas palavras outra vez, cuidadosamente.

Estava lidando com um verdadeiro lunático. Um idiota imaturo. Precisava perguntar com cuidado, de uma forma muito acessível...

- Por que está fugindo? – ...Mas achava-se exausto demais para tal.

(Ao menos, teve presença de espírito suficiente para dizer ‘está’ no completo singular, porque ele fora nada mais do que uma vítima infeliz, não uma parte essencial daquele plano maluco).

- Hum... Eu não sei como explicar isso aqui... – pensativo. – Ah, tá! Já sei! Por acaso você já viu “Missão Impossível”?

O suficiente para crer que você não vai explodir pelos ares e me deixar em paz”, pensou, pesaroso. – Já.

- Então, é mais ou menos assim... Eu estou sendo perseguido por uns caras maus.

Zexion apoiou a testa em sua mão. E suspirou pela milésima vez.

- ...Demyx, isso não tem nada a ver com “Missão Impossível”.

Gota. Unida a uma face de extremo descontentamento. – Ah, é mesmo...? Ah, mas todos os filmes de ação são iguais. Enfim, é isso!

Além de não explicado nada, o rapaz dos olhos azuis começava a desejar sinceramente que aquele Audi A8 W12[8] preto chamasse reforços, policiais ou não, e os emboscasse em algum canto de estrada. Não se importaria nem um pouco de ser preso, desde que se visse livre daquele... Idiota.

Encarou seu espelho retrovisor de novo, e como imaginou, o carro os seguia sem perder o rastro.

Daquela distância, Zexion não conseguia ver os rostos do motorista e passageiro. E, como o esperado, o vidro era fumê. Estava de mãos atadas: eles reconheceriam seu rosto e poderiam facilmente pegá-lo, mas o contrário só aconteceria com um milagre realmente milagroso.

E tudo isso porque Demyx era um idiota com a metade da idade mental que aparentava (e esta já era bem baixa) e resolveu seqüestrar, de todos os carros que passam pelas estradas de Mooka, justamente o seu carro. E resolveu, num ato que ele não sabia classificar como bondoso ou infame, levar também o próprio Zexion.

Na verdade, pensando agora, estava até bem confortável sobre a idéia daquela perseguição inimaginável.

A mente estava calma quanto àquilo. Irritadíssima quanto ao novo motorista de seu carro, que a qualquer momento podia olhar para o céu, encantado com um passarinho, e capotar seu precioso veículo, mas muito calma quanto à situação geral.

Seu primeiro impulso foi o de pegar seu celular e discar os três únicos números da emergência.

Mas, e então...?

“Boa tarde, senhorita. Chamo-me Zexion. Um homem estranho (ou nem tanto, já que me disse seu nome) está dirigindo meu carro – não faço idéia do destino –, e está me levando com ele. Mas, na verdade, ele só está fazendo isso para que eu possa ter meu veículo em segurança e ir embora depois. Ou este era seu plano inicial, porque infelizmente, agora, estamos sendo perseguidos por um Audi preto com dois passageiros, pelo que pude ver. Meu seqüestrador, a propósito, classificou-os de ‘caras maus’. Vago demais? Sim, eu também acho. Desculpe, não posso fornecer mais nenhuma informação. Ah, sim: se possível, senhorita, por favor, mande reforços imediatamente. O mais rápido possível mesmo, antes dos homens que nos perseguem sacarem revólveres e decidirem que nossas vidas não são assim tão importantes ou antes que o idiota do meu seqüestrador saia de Mooka e vá para a capital (ou, pior, destrua meu carro). Garanto que é complicado quando fazem isso. Grato.”

...Não, nada bom. Seria mais fácil se barreiras policiais montassem-se sozinhas no meio da estrada.

- Pretende ficar a 120km/h até esbarrarmos em algum estabelecimento ou tem alguma idéia, Demyx? – encarou-o de soslaio.

- Bom...

Uma curva digna do cantar de pneus que seguiu-se impediu momentaneamente Demyx de contar seu genioso plano.

O Audi negro percebeu aquele movimento perigoso e, muito mais cautelosamente, continuou seguindo-os.

- Na verdade, só pretendo aumentar a velocidade e fazer umas manobras.
- ...Você sabe que isso não vai despistá-los, não sabe?

- Claro que eu sei. – óbvio.

- Sei que vou me arrepender de perguntar isso, mas... – suspiro. – Por que?

- Ora, porque é divertido fazer manobras correndo a 130km/h! – ele sorriu. – Tem outro motivo?

(Ok, qual era o telefone da Emergência mesmo?).

Zexion pensou. Já que ele estava comprometido mesmo com aqueles homens, tendo sua cabeça a prêmio, de certa forma, já estava na hora de agir. Demyx era um motorista competente o suficiente, mas não era o bastante.

Passando a mão pelos cabelos e amaldiçoando mil vezes sua sorte, ele virou-se e encarou o rapazinho.

- Posso dirigir? – ergueu a sobrancelha.

- Hã? – e ele surpreendeu-se.

- Já concordei com os termos de meu seqüestro. Não vou fugir ou rendê-lo... – deu de ombros (apesar de ainda estar sem acreditar direito nisso). – ...Então, tudo que quero fazer agora é me livrar destas pessoas e descansar. Coisa que você, perdoe-me, não está fazendo com a devida diligência.

Demyx encarou-o de cima a baixo (por um tempo longo o suficiente para que Zexion sentisse vontade de berrar outra vez para que ele prestasse atenção à sua frente) e piscou, ainda surpreso.

- ...É uma proposta interessante. – disse, por fim.

- Meu carro, meu território.

- Promete que se livra deles, então? – agora, foi a vez do moreno de erguer a sobrancelha e encarar aqueles olhos azuis.

- ...É claro que sim. – disse, enfadonhamente.

Demyx, então, sorriu como uma criança. – O volante é todo seu.

- Não o solte ainda! – ralhou.

Zexion olhou pelo espelho retrovisor uma terceira vez. Um bom veículo, aquele. Estavam perseguindo-os perfeitamente. Eram profissionais.

Ele teria, mais ou menos, de dois a três segundos para trocar de lugar, rapidamente, com Demyx (essa parte prometia ser infame...). Alguns milésimos para pôr o cinto de segurança.

E, depois, constatou tranqüilamente, precisaria de menos de um minuto para fazer aqueles que estavam transformando suas férias em verdadeiras desférias infernais, como diriam por aí, “comerem poeira”.

 

~x~x~x~

 

- Tá bom! Agora você vai me contar como fez aquilo, né? – impressionado. Muito impressionado.

- Por favor, não fale comigo agora... – cansado. Muito cansado.

Uma cena que prometia repetir-se muitas vezes por ali: Zexion sentou-se, exausto, na beirada da cama de colchão barato e escondeu o rosto nas mãos, num misto de absoluta vergonha e mais um tanto de fadiga física e mental. Suspirou tão fracamente que o próprio achou que fosse mesmo morrer.

Demyx, por outro lado, parecia bem mais animado e abismado na mesma medida, largando a mochila e sua grande sítar em cima da mesma cama na qual o outro estava sentado. Desde que desceram do carro, em frente àquele hotel, o moreno estava importunando-o e perguntando como ele fizera aquelas coisas.

Depois que sentara-se no banco da frente, deixando Zexion no comando do volante, as coisas aconteceram de uma forma tão inexplicável que ele ainda achava que era alguma pegadinha e, logo, as câmeras iriam ser reveladas.

- Quem diria que um cara tão certinho que nem você faria essas coisas! – ele bateu em suas costas.

Zexion, parecendo alheio àquele cumprimento, apenas suspirou de novo.
Mas, logo, ergueu os olhos. E neles, o rapaz com um tom mais esverdeado de azul nos orbes pôde ver, claramente, o ódio fulminante (e quase temeu por sua vida).

- ...Você tem alguma idéia do que nós fizemos?...

Seu tom de voz, para alguém que estava à beira de um ataque de nervos, parecia bastante controlado. Demyx diria que era até gélido.

- Hã... Demoramos menos de quarenta e cinco minutos para atravessarmos as fronteiras de Utsunomiya?... – “quando, normalmente, as pessoas demoram uma hora e meia ou duas, dependendo do trânsito?”, quis completar, mas controlou-se para não piorar ainda mais o estado do outro.

- Exato, meu caro. Exato.

- Sim... E daí? – tudo bem, foi perigoso. Foram perseguidos por malucos, quase capotaram três vezes e, enfim. Mas o moreno não entendia aquele drama excessivo. Ele, por exemplo, estava ali, firme e forte!

- ...Você tem idéia de que infringimos, no mínimo, umas 19 leis de Trânsito?

Ah, é. Essa parte já havia passado por sua cabeça.

- Foi divertido, né? – Demyx abriu mais um sorriso.

Zexion passou a mão pelos cabelos azulados, mais exausto do que nunca. – Você tem idéia do que as autoridades farão conosco quando nos encontrarem?...

Ah, não. Isso não tinha passado por sua cabeça.

- Já estamos no inferno. Abraça o capeta! – mesmo assim, continuava sem entender o porquê de Zexion fazer tanto drama por nada.

- Não... – ele meneou a cabeça. O rosto muito sério. – Você não está entendendo a gravidade da situação.

O rapaz tinha um plano muito claro do que fazer com suas férias.

Dirigir o mais demoradamente até Nagano, primeiramente. Chegando lá, iria passar na casa de sua mãe. As regras da boa conduta o forçariam a: 1) levar uma lembrança para ela e 2) passar uma noite ou duas em sua casa, ajudando-a com as tarefas domésticas e o que quer que fosse necessário.

Depois, com muita calma, reservando um tempo absolutamente especial apenas para aquilo, Zexion iria ao cemitério visitar seu irmão. O caçula estava sozinho há bastante tempo, já que o primogênito podia visitá-lo, e isso com dificuldades, só em seu aniversário. Seria bom ter uma visita que não fosse nesse dia. Compraria um manju[9], provavelmente, já que era o doce preferido de Ienzo, e o ofereceria. Oraria pelo irmão, conversaria um pouco, como sempre. E, depois, já no dia seguinte, sumiria dali.

O resto de seus trinta dias de tortura imposta seriam divididos entre atividades intelectuais ou enriquecedoras de espírito, leituras solitárias ou noites insones nas quais ele beberia um pouco de cabernet e dormiria insatisfeito. Ou, se alguma inspiração divina caísse sobre seus ombros, poderia até mesmo ir ao exterior.
Aqueles planos tinham tudo para transformar suas férias em uma coleção de dias tediosos e desmerecedores de maiores atenções.

E aquilo era-lhe o suficiente.

Mas parecia que alguma entidade realmente sádica olhara para aquele rapaz de pele pálida e olhos azuis e resolvera fazê-lo um pouco de palhaço. E, então, Demyx foi o escolhido para virar de cabeça para baixo o resto de sua paciência (e vida também, apesar da repetição da palavra).

Agora, estava sendo perseguido, por tabela, por loucos que ele sequer sabia o que eram, tinha infringido tantas leis de trânsito que passaria duas vidas suas na cadeia... E a lista só estava aumentando.

(E, só para terminar sua tragicomédia de menos de 12h: agora, estava preso com aquele idiota no mesmo hotel e no mesmo quarto. Mais um pouco e Zexion cogitava juntar-se ao irmão, num suicídio memorável e totalmente justificável).

- Eu preciso de um banho... Um longo banho. – concluiu.

Demyx, mais ocupado tirando algumas coisas de sua mochila do que prestando atenção no desespero silencioso do companheiro de quarto, abriu outro sorriso.

- É, você tá precisando mesmo mais do que eu. Pode entrar primeiro. – disse. – Afinal, depois temos que sair e jantarmos, né?

- ...Céus. – suspirou. Se achasse uma lâmina no banheiro, daria adeus ao mundo.

Assim que Zexion pegou suas roupas e a porta do banheiro fechou-se, imediatamente, Demyx fechou a mochila e colocou-a sobre o ombro. Deu uma rápida olhada ao redor, como quem memoriza os detalhes do quarto.

E pegou a única chave do mesmo, saindo em seguida.

 

~x~x~x~

 

- Moça! – chamou. – Ei, moça!

A jovem senhorita morena da recepção, surpreendida pela voz masculina, virou-se. Reconheceu-o de imediato: era o hóspede que acabara de entrar com um rapaz de aparência cansada e cabelos sedosos e azuis.

Sorrindo delicadamente, como o papel condizia, ela inclinou-se em uma saudação silenciosa.

- Boa tarde, senhor. Em que posso ajudá-lo?

- Preciso de uma informaçãozinha... – Demyx sorriu, amarelo. – Você saberia me dizer onde tem uma sex-shop aqui por perto?

A jovem piscou uma, duas, quase doze vezes. Engoliu em seco, sentindo o suor frio brotar na testa logo em seguida.

- ...O-o... O senhor di... O senhor disse... S-sex-shop...?

- Isso, uma dessas. Mas tem que ser rápido, antes que ele saia do banho! – o rapaz falou, apreensivo.

- E-eu... Ah... Eu...

- Ah, eu esqueci! Tá bom, tá bom. – ele riu, tocando em seu bolso. – Um momento.

Minutos depois, um Demyx esbaforido voltava das redondezas com um embrulho duvidoso. Ao passar pela recepção, piscou vitorioso para a recepcionista corada a quem havia dado uma generosa gorjeta pela informação.

 

~x~x~x~

 

Desta vez, quem viu-se suspirando foi o moreno. Jantar com Zexion provou-se ser uma das experiências mais tediosas de sua vida, perdendo, talvez, apenas para... Para aquelas coisas cheias de repetido marasmo que fazia antes.

O rapaz de cabelos azuis não fazia nada além de encarar seu próprio prato e, em seguida, fechar os olhos, como quem está absolutamente concentrado em alguma coisa muito particular e séria, e comia silenciosamente. Houve uma hora em que Demyx já estava ficando angustiado com o som dos talheres batendo no prato ou da taça de um bom vinho sendo colocada delicadamente à mesa depois dos goles.

Nas poucas vezes que tentou conversar, foi brutalmente interrompido, ignorado ou uma mistura desgraçada dos dois.

“Isso foi tão rude, Zexion!”, ele surpreendeu-se em determinada hora, agindo com um pouco mais de surpresa afetada do que Zexion tinha em mente (e o fez lembrar outra vez daqueles movimentos primatas do rapazinho de cabelos castanhos). Mas, muito mais do que envergonhar-se por aquela reação bizarra, o ex-cidadão exemplar apenas recolheu-se de novo ao seu silêncio.

Voltaram desanimadamente ao hotel, sem perceberem em nenhum lugar a presença de um Audi negro ou de homens estranhos seguindo-os.

Demyx pensou em tomar outro banho, mas viu-se indisposto demais para tal. Ao invés disso, depois de devidamente vestir seu pijama, ergueu os olhos para Zexion, que sentou-se na única poltrona do lugar, com um livro, com um marca-textos um pouco além da metade, que parecia bem grosso (e bem chato) nas mãos.

- Ei, Zexion! Não vai dormir? – perguntou o ‘meliante’.

- ...Não. – respondeu, gélido.

- Só pra sua informação: eu não mordo, viu.

- Sei.

Mais uma vez, Demyx foi presenteado com o silêncio brutal do outro, enquanto ele pegava os óculos de leitura e os colocava.

O rapazinho sorriu. – Ei! Olha só, você fica bem de óculos!

- Vá dormir, Demyx. – folheou a página após o marca-textos. – Temos uma longa viagem pela frente.

Beicinho. – Não precisamos ficar fugindo, sabe?

- Não me sinto muito confortável com a idéia de passar um bom tempo na cadeia. E, certamente, nem você. – finalizou. – Portanto, vá dormir.

Zexion tinha duas escolhas: ou iria ter de dormir, desconfortável, naquela poltrona ou teria de engolir seu orgulho e deitar-se na mesma cama de Demyx. O moreno deu de ombros, já imaginando qual a opção que uma pessoa tão certinha e séria como ele ia escolher.

Dando de ombros, virou-se e fechou os olhos, absorvendo naquele pouco espaço de tempo antes de adormecer todas as horas daquele dia tão estranho.

Zexion também deixou-se encostar o cotovelo no apoio da poltrona e a mão em seu rosto, depois de ajeitar melhor os óculos que usava para ler. Já era, na verdade, a terceira vez que lia “Anna Karenina”, de Tolstói, em sua vida. A primeira vez foi na escola. As outras duas, por vontade própria.

Lembrava-se como se fosse ontem de como o livro o capturou, não por sua história trágica da aristocrata russa ou de seu impetuoso amante, de sua gaiola dourada ou mesmo da narrativa envolvente. O livro simplesmente o capturou pela frase que abria o primeiro capítulo: “Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira”.

Ienzo ainda era uma criancinha quando ele lera isso pela primeira vez, então, não pôde compartilhar com ele aquele gostinho de satisfação.

Zexion lembrava-se de como se sentira satisfeito. E, ao mesmo tempo, um tanto quanto confuso. “Então...”, concluiu, depois de ler e reler aquela frase muitas vezes. “Isso quer dizer que a felicidade é chata?”. E percebeu o quanto era uma pergunta pertinente; seria a felicidade um tédio?

Suspirando, ele ajeitou de novo os óculos.

A luz alabastrina do abajur que deixara ligado para a leitura pareceu despertá-lo para a verdade: ele não podia ficar ali.

Sua consciência que o perdoasse, mas Demyx precisava tornar-se ‘Passado’ no sentido mais concreto e absoluto da palavra. E quanto mais rápido, melhor.
Mas é claro que ele não ia precipitar-se. Precisava de território. Fugir, assim, no meio da noite, não seria de bom tom. Nem aconselhável. Entretanto, se saísse logo de manhã cedo, na primeira hora, seria ótimo.

Tinha as chaves do carro consigo, como o prometido, estava vivo, com o corpo intacto... Nada o impedia de ajeitar suas coisas, pagar sua parte da estadia e ir embora como quem jamais viveu as 24h mais tortas, loucas e sem precedentes de sua vida, tudo em companhia de uma pessoa que englobava os três adjetivos citados e criava um novo significado para a palavra “irritante”.

Falando nele, ao desviar os olhos para olhar primeiramente aquele sitar azul e chamativo que ele trouxe consigo e, em seguida, o próprio Demyx, percebeu, distraído, que o mesmo dormia placidamente. Zexion invejou-o por um momento: queria ter aquela facilidade toda para dormir.

Com a tensão de uma perseguição e leis de segurança burladas à exaustão, ele sabia que não fecharia seus olhos.

Ao menos, consolou-se, trouxera seu PDA e seus livros; podia navegar pela net (assim que a bateria recarregasse) e ler o quanto precisasse.

E, amanhã (para sua felicidade), nesta mesma hora, já estaria bem longe de Tochigi. E, principalmente, bem longe daquele maluco.

Mas preciso admitir, Demyx...”, ele pensou, rindo ironicamente. “Você foi a pessoa mais fascinantemente estranha que eu já conheci.

(Sobraria pensar no que fazer a respeito daqueles que o perseguiram e, certamente, já sabiam o número de sua placa e onde encontrá-lo. Isso sim mereceria longas horas de meditação e medidas drásticas).

Zexion virou a página do livro, disposto a ficar acordado até quando pudesse.

E a noite arrastou-se lentamente daquele jeito.

 

~x~x~x~

 

A manhã de Utsunomiya trazia no ar o cheiro das casas de soba da redondeza, da mesma forma que uma cidade à beira da praia traria o cheiro salgado do mar.
Zexion abriu um olho apenas, e quase sentiu vontade de fechá-lo e entregar-se sem nenhum receio, mais uma vez, ao sono reparador. Mas aquela dor em suas costas e a visão que teve do quarto o impediram de adormecer.

A primeira coisa que perguntou-se foi “que horas são?”. A fuga. Lembrou-se, como se a mesma pertencesse à um monte de decisões que ele fizera há anos atrás, num tempo desconexo e irreal, de que prometera a si mesmo levantar-se na primeira hora da manhã, pegar seu carro e fugir dali. Para o mais longe possível.

Depois, ao perceber o silêncio do quarto e dar-se conta de que Demyx ainda não acordara (ainda bem), ele ficou um pouco menos tenso.

Percebeu, assim, que estava deitado na cama que evitara ontem.

Como será que vim parar aqui...?”, perguntou-se, sonolento. De fato, pouco se lembrava daquela noite, depois de um dado horário.

O sono veio sorrateiro e sem ser notado, sussurrando-lhe no ouvido e levando-o sem resistência alguma para o mundo dos bons sonhos. Só estava mesmo muito surpreso por ver-se deitado; será que estava até meio sonâmbulo de tanto sono? Talvez, fora um erro deixar para dormir tão tarde... Como iria dirigir daquele jeito?...

Tudo o que sei é que preciso sair daqui.

Sim. O mais rápido possível, antes que o maluco acordasse. Não importava como parara ali, ao lado dele na cama. Alegrava-lhe saber que a cena jamais se repetiria.

Disposto a passar a mão pelos cabelos, erguer-se e deixar para tomar um banho em outro lugar, onde estivesse mais seguro (que lástima notar que dormira com a roupa! Amassara-a consideravelmente. Teria de passar uma imagem desleixada à recepcionista devido à pressa em desaparecer dali), Zexion ergueu a mão.

Ou, ao menos, tentou...

Alguma coisa estava privando seus movimentos do pulso.

Suando frio, com medo do que ia encontrar ao sentir aquele toque gelado, o rapaz de olhos azuis virou-se, lentamente, como um personagem de filme de terror que encontra-se, literalmente, dormindo com o inimigo.

E, ao puxar as cobertas, empalideceu. Mais do que já era.

Demyx e ele estavam presos por...

“ALGEMA?!” – e, pela segunda vez em menos de um dia, Zexion sentiu que poderia matar alguém com as próprias mãos ali mesmo.


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Notas finais do capítulo

[7] Nome da faixa 16 da OST de Kingdom Hearts II.

[8] Apenas a título de curiosidade: o Audi A8 W12 é um modelo bastante usado pelas empresas de Segurança.

[9] Doce feito de farinha de trigo, ovos, açúcar e recheado à base de feijão Azuki. É bastante apreciado no Japão.



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