Gris escrita por Petit Ange


Capítulo 14
Capítulo 13: A Step to the End


Notas iniciais do capítulo

Sim, "GRIS" agora está em sua reta final.
Espero que continuem acompanhando até a última linha que nem essa autora sabe como será... u_u'

E desculpe pelo atraso, Syn. Prometi há duas semanas que postaria e só hoje pude fazê-lo. ;__;



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/44834/chapter/14

 

GRIS
Petit Ange

Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira.~ Anna Karenina (Tolstói).

 

 

Capítulo 13: A Step to the End. [50]

 

Antes mesmo de sentir na própria pele, ele já lera a respeito. A pior hora do dia – aquela onde tudo parecia querer simplesmente rasgar e somente desaparecer – era justamente o despertar.

Seu primeiro reflexo foi estender a mão para o criado-mudo. Era assim desde o princípio: estender. Pegar. Engolir sem questionar se tomar algo tão forte sem nada no estômago não lhe faria mal. E esperar, se possível. A dor estabilizaria sozinha e passaria a ser um latejar constante e ardente em sua cabeça, mas seria a dor “de sempre”, aquela com a qual já se acostumara, não aquela tortura.

Mantendo os olhos fechados, como se aquilo, de alguma forma, fosse ajudar (“Fotofobia”, a voz em sua cabeça avisou), tateou a mesinha, procurando as caixas. Tudo o que sentiu foi as superfície lisa debaixo da palma da mão. Imediatamente, abriu os olhos, arrependendo-se no instante seguinte.

A luz, mesmo deveras fraca, transformou sua visão em um amontoado de pontos brancos, indistintos, enquanto um borrão uniforme enchia sua mente de puro tédio (“Até quando isso vai durar?”). Enquanto isso, aquela parte mais racional de seu cérebro precisou de dois movimentos para averiguar a verdade.

Primeiro: não havia mesmo absolutamente nada na mesa. Nem nas adjacências. As caixas do remédio sumiram.

Segundo: não havia nada além do próprio na cama.

Demyx suspirou, pesadamente.

- ...Zexy. – resmungou em seguida, obviamente contrariado com a conclusão a qual chegou em seu caso particular.

Houve um breve momento de silêncio, antes do moreno ouvir, pronunciado, o som de alguma coisa macia sendo depositada na mesa onde ficava a TV.

- Diga.

- ...Onde estão meus remédios?

- Estão aqui. – ele respondeu, num tom neutro. – Não achei que fosse seguro deixá-los perto de você enquanto eu estivesse no banho.

Demyx resmungou alguma coisa intraduzível.

- ...Vai moderar isso, agora?

- Vou. Não quero ser testemunha ocular do suicídio por overdose, isso nos relatórios policiais que certamente ocorrerão, de um maluco.

Passando a mão pelos cabelos, o rapaz parou, ao menos, de fechar os olhos com força. Relaxando os ombros, rendeu-se:

- Eu prometo não exagerar. – falou. – Agora, por favor, me dê uma caixa.

- Dois comprimidos no máximo. – Zexion devolveu. – É o que diz a bula.

- ...Isso não chega nem perto do suficiente, Zexy. – ele replicou.

- Mais do que isso é perigoso.

Ele sorriu de leve. – Sem problemas. Eu até gosto do perigo!

- Não discuta, Demyx...

- “Não discuta” você, Zexion!

Em sua defesa, Demyx precisava dizer que agüentou bravamente. Não é todo humano que acorda com uma dor de cabeça terrível – e por terrível ele queria dizer “definitivamente horrível”, do tipo que ninguém poderia jamais imaginar, ao menos que passasse por isso – e, mesmo assim, é capaz de conversar com alguém.

Porque, na verdade, se possível, ele queria enrolar-se nas cobertas e ficar ali até que o mundo se explodisse. Cada buzina de carro, cada piar de um pássaro; tudo era como uma broca enfiando-se diretamente em sua têmpora, rasgando seu cérebro. Era uma pressão inumana, que o fazia sempre pensar quando diabos iria ter um aneurisma e morrer logo. Na verdade, ele estava era desejando ter um aneurisma, isso sim.

E, então, acordar daquele jeito para ouvir que um “leigo” o estava privando da doce redenção de algumas pílulas contra dor (que já não eram muita coisa) por algo tão ridículo quanto uma overdose era a gota.

Zexion devia era, ao invés de silenciosamente surpreso, estar era muito agradecido por Demyx ter agüentado tão estoicamente sua raiva até ali!

A maioria das pessoas acordava com um mau-humor igual ou até pior por bem menos. Aquilo era completamente justificável, compreensível e... Quem era o monstro por ali era o rapaz de cabelos azulados.

- Eu estou com muita dor. Muita – frisando de novo – MUITA. O pico da dor de cabeça é justamente pela manhã... – gemeu, fechando com força os olhos de novo. – Então, me faça o favor de alcançar essas caixas, porque agora é a hora que eu mais preciso delas. Depois, se quiser, me torture o resto do dia me deixando sem nada... Mas, agora, eu exijo esses comprimidos.

E engoliu em seco, tão logo o ponto final abandonou seus lábios.

...Estava errado. Totalmente errado.

Se ele e Zexion estavam ali, naquele dia, naquele quarto, naquele hotel, naquela cidade, naquela situação, daquele jeito... Só de estarem ali – se aquilo acontecera de verdade, não sendo apenas um sonho ruim (ou bom?) – então, o culpado não era ninguém além do próprio Demyx.

Então... Se ele era o verdadeiro culpado, o “imbecil” que os enrolou até o último fio de cabelo naquela insânia...

Não tinha, então, direito algum de estar reclamando, tinha?

- Desculpe... – replicou, então, de imediato. Escondeu o rosto no travesseiro, fechando os olhos com mais força do que antes. – Eu disse sem pensar. Foi idiota da minha parte... Desculpe, Zexy.

Não ouvira mais nada, então. Nenhum “tudo bem” ou “espero que morra” vindo do outro (ambas eram frases assustadoras, cada qual de sua própria maneira), nenhum som de movimentação. Só o completo silêncio.

E odiou-se por aquilo. Se pudesse, se mataria ali mesmo. Mas, aparentemente, pressionar o rosto contra o travesseiro não era o suficiente para tal.

- ...Abra a boca.

Surpreso o suficiente para abrir os olhos e ignorar a ardência que os assaltou quando o fez, Demyx percebeu Zexion, magicamente, sentado ao seu lado, com um copo de plástico numa mão e o que pareciam serem comprimidos na outra. Quatro; bem mais que o tal “limite” que ele mencionara antes.

O moreno não soube o que fazer, o que dizer, nem o que havia transformado a figura pálida do outro – ainda de cabelos um pouco úmidos, com a toalha jogada sobre os ombros e a camisa abotoada só até a metade –, contrastada com a luz do sol que penetrava pelas cortinas entreabertas, assim, tão estranhamente transcendental.

- Ah...

- Vamos, abra a boca. – insistiu, somente.

Fazendo o que lhe era ordenado, Demyx engoliu os comprimidos quando o outro lhe estendeu-os, e após beber a água do copo, subitamente viu-se sem saber o que fazer. Não no sentido que achou que estaria quando acordasse, mas naquele...

Olhar para Zexion e perceber que lhe doía. Aquele seu gesto, aquela sua aura tão estranhamente imaculável, aqueles olhos fixos nos seus.

Apenas doía.

- E então? – ele lhe perguntou, então. E aquela mão sempre quente, tão quente, tão estranhamente gentil tocou-lhe, de leve, no rosto. – Está doendo?

E Demyx apenas meneou a cabeça, esquecendo-se. Todas as dores sumiam com aquele calor inexplicável da mão do outro.

- ...Não. – sussurrou.

- Muito bem.

- Mas por que...? – a voz continuou um sussurro.

O outro não precisou de muito para entender sua pergunta. – Você tem razão. Se dói, então quem sou eu para contrariar alguém que nem mesmo a morfina derruba?

Haviam muitas coisas no rosto de Zexion naquele momento. Tantas coisas não ditas que Demyx sentiu – ah, pelos deuses! – o peito apertar-se em dor. Estranhamente, aquela era mil vezes mais pronunciada do que qualquer enxaqueca.

Ele sempre fora alguém que pensava muito mais do que falava. E isso, de alguma forma, assustava o moreno; porque imaginava quantas dores passavam despercebidas assim, como se nunca sequer houvessem existido para os outros, enquanto para ele, eram capazes de fazer aquilo: transformar seus olhos em um mar azul-real de sensações conflitantes.

Havia o medo. Demyx sabia; afinal, também o sentia todos os dias. Medo de quê, pelo quê? Talvez jamais saberia. E isso também o deixou mortificado.

Havia a raiva impotente. Aquela de alguém que sabe estar preso, mas também sabe ser impossível escapar por si só. Zexion era Zexion, e por sê-lo, imaginava quão difícil era fazer aquilo: fechar os olhos e esperar. “Confiar no futuro” não era algo que uma pessoa como ele pudesse fazer sem reservas.

E, talvez, a coisa que mais estava transbordando daqueles olhos fosse aquela pergunta silenciosa, tão potente, tão certa, que até mesmo alastrava-se pelo quarto – invisível, indizível – e fazia-se notar.

...O que faremos agora?

...Ah, sim.

Essa era uma pergunta a qual Demxy estava fugindo desde aquele dia em Shiojiri, onde os tons carmins do pôr-do-sol iluminaram aquela pequena idéia. Aquele pequeno desejo.

Lutando contra a sensação de alguma coisa entalando subitamente na garganta, o mais alto deles aproximou-se do outro sentado à cama, colocando a cabeça em seu colo e, sem nenhum aviso ou palavra, fechando os olhos.

- ...Desculpe. – sussurrou pela última vez.

- Já disse que estava certo. Não há porque pedir desculpas. – e porque Zexion era Zexion, ele jamais repetiria de novo que “Demyx tinha razão”.

Sorrindo diante daquela ciência, o moreno deixou-se ficar ali, naquele – ah, tão inexplicavelmente bom – calor, como se o outro fosse um travesseiro.

Zexion tocou, instantes depois, nos cabelos rebeldes. E, assim como o outro deixara a cabeça descansada ali, também o fez com sua mão na mesma.

- Está doendo alguma coisa? – perguntou, então.

- Ah... Não. – sacudiu negativamente a cabeça. – A dor de cabeça já está passando. Nah, na verdade, eu que estou me acostumando. – sorriu ao corrigir-se. – Mas... Afinal, acho que dá na mesma...

- Tem certeza?

No início, ele achou que fosse sentir embaraço. Mas aquilo nunca aconteceu. Estranhamente. Para sua própria surpresa, apenas riu.

- Não mesmo! – respondeu, imprimindo mais animação do que esperava. – Não é nada com o que eu não posso lidar.

- Muito bem, então.

Do fundo de sua mente latejante, Demyx lembrou-se:

- ...Que horas são? – dependendo do que Zexion diria, explicaria muito aquele vazio no estômago.

- Já passa das dez. – oh, sim. Explicado.

- Sério? – e, então, o desânimo. – Ah, droga...

- Se for rápido no banho, até pode chegar a tempo.

- Não...

E, assim, Zexion viu-se se surpreendendo com aquela frase. Não que alguém no mundo fosse descobrir isso, até porque seria um segredo guardado até dele próprio, mas ouvir o garoto dizer “não” para tal era...

Hum... “Deveras assustador” seria suficiente para descrever? Provavelmente, não. Teria de achar algo mais digno disso.

- Não quero sair hoje.

...E, claro, porque tudo que está ruim só tende a piorar, pela própria Lei Natural da situação, Demyx finalizou o combo de estranhezas do dia com aquela digna de chave de ouro.

- Mas o que...

- Acho que vou pedir algo para comer depois... – deu de ombros. – Mas hoje vou ficar por aqui mesmo.

Fechando os olhos, ele abandonou o colo do outro, voltando a encostar o rosto no travesseiro. Suspirou.

- ...O que aconteceu? – ok, desta vez, Zexion obrigou a perguntar-se.

- Estou... Não sei... Cansado? – perguntou-se, ponderando se aquela era mesmo a palavra certa. – De ficar fugindo do inevitável, de ficar andando por aí... Cansado. Só quero descansar.

Uma vez mais, o rapaz de cabelos em nuances suaves de azul-real sentiu aquele peso solitário no estômago. Aquela sensação ruim que vinha sempre quando o sorriso de Demyx desaparecia, e em seu lugar, aquela face de desgostosa melancolia se instalava, sem dar sinais de que iria desaparecer; e percebera, afinal, que aquela sensação só estava ali porque justamente ele sentia que aquela era a ‘verdadeira face’ do garoto.

Não o sorriso que o fazia tão radiante, tão surpreendente e improvável... Aquele Demyx, que Zexion até então achou ser o patético e verdadeiro, era, quem sabe, apenas a maneira dele de escapar da dor. Não somente a física, mas também a mental. E – ah, por todas as criaturas do céu – que espécie de dor desumana era aquela capaz de pisotear aquele sorriso tão perfeito até transformá-lo em sombras de nada? Era mesmo algo tão grave que chegava até mesmo a arrancar à força aquele brilho infantil e vibrante dos olhos azuis?

...Zexion não sabia. Ou melhor – e isso era o pior daquela situação! – ele só podia fazer idéia. Só suposições, só tatear às cegas.

E, tinha certeza, nunca iria deixar de sentir-se patético por isso.

- Ei. – chamou-o, então. – Vamos jantar em algum lugar, então.

Demyx ergueu o rosto, encarando o outro:

- ...Está me convidando?

Assentiu. – Já que não quer sair agora, à noite será melhor. Conheço alguns bons restaurantes por perto.

O outro sorriu. – Estou me sentindo em outra dimensão...

- Quer?

- Mas é claro! – respondeu na mesma hora.

- Pois bem.

E, então, Zexion deitou-se ao lado do outro, encarando o teto.

- Não vai pedir, ao menos, café-da-manhã lá embaixo, Demyx? – questionou, após um breve segundo pensativo. – Eles podem trazer até aqui.

Também encarando o teto, então, ele meneou a cabeça:

- Estou sem fome. – bem... Seu estômago estava reclamando, mas ele não sentia nenhuma vontade de comer. Muito estranho, precisava admitir. – Mas e você? Se tomou banho e está vestido já, isso quer dizer que ia lá embaixo, não?

- Já fui. Há tempos, aliás. – “você é que ficou aí dormindo”, quis completar, mas ele próprio teve sua parcela de culpa: o garoto parecia estar muito plácido em seu sono, tão diferente de quando desperto. Quis mantê-lo daquele jeito, ao menos, até quando pudesse.

- E comeu direitinho?

- Sim.

- ...Não está mentindo, está?

- Não.

Demyx, tentado a fazer outra pergunta, percebeu que, unindo o útil ao agradável, havia um método bem mais prático de detector de mentiras.

Colocando-se sobre o mais velho, beijou-o. Talvez porque soubesse que, se ficasse apenas perguntando, jamais chegariam à lugar nenhum. Talvez porque soubesse que Zexion era Zexion e, por isso, iria ganhar a discussão (maldito! Um dia, ele ia ver, ganharia uma e o obrigaria a lamber seus tênis – claro, como isso jamais iria acontecer, mesmo que hipoteticamente vencesse alguma discussão – aliás, hipoteticamente mesmo! – então contentava-se apenas em imaginar aquilo...) e acabariam, como já dissera, chegando à estaca zero. Ou pior: ele chegaria ao zero sozinho.

Aquela era uma coisa que, desde aquele dia (ou, melhor dizendo, noite) em Ohmachi, Demyx descobriu gostar no companheiro de fugas. Aquela tensão que acumulava-se, surpresa, em seu corpo quando as mãos do moreno seguravam seus ombros, trazendo-o para perto de si. E, então, de repente, tão sem aviso quanto aquele próprio beijo, aqueles mesmos ombros relaxavam.

Quando separou-se, enfim, do outro, ele o encarou, sério.

- ...Café. – resmungou.

- Não diga. – Zexion devolveu, irônico.

- Você não comeu nada. – continuou, ignorando a ironia.

O mais velho revirou os olhos. – Você idem.

Demyx sorriu. – Não estamos chegando a lugar nenhum por aqui, né?

- ...Não. – concordou.

- Se continuar assim, eu acho que vou virar algum tipo de “viciado passivo em café”... – suspirou.

- E isso é ruim?

O moreno, antes de responder, avistara aquele sorrisinho irônico. Muito antes do sarcasmo; muito antes de seu próprio corpo responder àquela pergunta.

- Nem um pouco.

Deitando, então, a cabeça no peito de Zexion, ele suspirou.

- ...Você tem de subir agora?

- Não. Voltei de lá não faz muito. – deu de ombros.

Então, sorriu. – Vai ficar aqui?

- ...E eu lá tenho escolha? – ele fingiu (e muito bem, maldito bastardo. Até parecia que estava mesmo se sentindo obrigado!) um suspiro resignado.

Demyx, deixando-se sorrir ainda mais, afrouxou o botão da camisa entreaberta de Zexion com seus dentes (até que enfim, estava ficando bom nisso, afinal!); e sentiu, com uma satisfação quase sádica, o outro estremecer debaixo de si.

- Pra quê se vestiu, então?... – perguntou. A súbita impaciência de suas mãos impediu-o de treinar ali mesmo tirar o resto da mesma só com seus dentes.

- ...São dez e meia da manhã, Demyx. – o outro suspirou.

- Oras, assim é divertido! – ele replicou. – Até parece uma lua-de-mel!

- Esse foi um exemplo muito infeliz... – devolveu.

- Ah, você entendeu o que eu quis dizer!

- ...Quem estava reclamando de dores de cabeça horríveis? – outro suspiro.

Desta vez, Demyx demorou alguns milissegundos a mais para responder. – Está tudo bem, ela já passou!

- Então você pode descer e ir comer alguma coisa.

- Prefiro ficar aqui!

Aparentemente, quando a lista de protestos do mais velho finalmente cessou – uma vez que cada um equivalia a um botão desfeito –, Demyx percebeu tarde demais, inexplicavelmente, que suas costas eram pressionadas no colchão.

Os olhos azuis de Zexion encaravam-no de uma forma tão profunda que ele não conseguia desviar. E, uma vez mais, haviam tantas coisas não-ditas naquele tom de azul – ah, um azul tão lindo... – que desta vez ele nem soube por onde começar a numerá-las. Apenas as sentiu, enquanto os dedos pálidos do outro deslizavam pelos braços dele.

- ...Teimoso. – sussurrou, apesar de seu tom de voz não demonstrar em nada a raiva que parecia ser lógica para aquela palavra.

Demyx apenas sorriu. – Desculpe...

Oh, sim. Porque ele sabia o quanto Zexion queria dizer com aquela frase. Da mesma forma que aqueles olhos diziam bem mais do que desejavam dizer.

Um dia...”, lembrou-se, então, de sua própria promessa. “Um dia eu vou contar.

...É. O dia parecia cada vez mais próximo.

Erguendo o rosto, o moreno depositou, sem quase perceber que o estava fazendo, um beijo em cada pálpebra do mais velho.

E ambos acharam, numa descoberta tácita, mútua e que jamais – por todos os deuses – seria verbalizada, que aquilo pareceu, mais do que nunca, uma despedida.

Zexion segurou os pulsos do outro, como se aquilo fosse o suficiente.

E Demyx não se opôs àquele impedimento.

Mesmo que ambos soubessem – ah, ironicamente – que aquilo era só uma ilusão tão frágil quanto um castelo de cartas.

 

~x~x~x~

 

Ele estivera somente uma vez na casa de Axel, antes daquele dia.

Conhecia aquela arquitetura simples. Aquelas paredes sem quadros, aquela TV em tamanho médio, a qual ao lado descansava um console de videogame (PlayStation, pelo que viu) e um receptor de canais fechados. Aquele corredor que levava para os dois quartos e o banheiro. Aquela cozinha simplista, mas que sempre tinha um cheiro bom, graças à vizinha ao lado que cozinhava magicamente (Axel até podia enganar os outros dizendo que vinha dali).

A primeira vez que visitara-o, não soube o quê fazer. O ruivo teve de dizer que se tirava os sapatos, que se sentava no sofá e esperava o anfitrião trazer algo para comer. Demyx não sabia: nunca soube, antes disso, o que era um ambiente assim, informal. Uma verdadeira conversa.

Porque, até então, ele esteve em salas impessoais, sentado ao lado de homens engomados e retrógrados, ouvindo palavras difíceis, sempre as mesmas conversas.

Em verdade, se bem se olhasse (e, mesmo se não o fizesse, o zelador do apartamento do ruivo o fez, e aliás, o fez bem feito), estava vestido de uma forma tão insuportavelmente formal para aquele ambiente que, de alguma forma, passou a sentir-se mal. Sufocava. Quis afrouxar a gravata (oh Deus, estava de gravata? Não conseguia lembrar/prestar atenção no que vestia), mas o corpo não se mexia.

Sentado no sofá, Demyx esperou. Esperou até que Axel voltasse e ali se sentasse com ele.

- ...Desculpe ter dado trabalho. – sussurrou.

- Já estou acostumado! – o outro riu. – Mas você também, viu! Onde já se viu pegar um ônibus qualquer se nunca andou de um antes? Tem idéia do quanto tive de andar até chegar onde te largaram?

Ele negou. Não. Não fazia idéia do quanto trabalho devia ter dado... Para seus pais, para o próprio Axel.

Saíra do hospital sem nem dar explicações. Fora praticamente uma fuga! Como deve ter ficado sua mãe...?

Ah. Nem pensara nela...

Simplesmente saíra, sufocado, destruído. Achou, por um momento, que fosse morrer. Mas não morreu. Apenas disse alguma coisa, provavelmente “estou saindo”, e quando percebeu estava num ônibus. Estava ligando para Axel; estava ouvindo a voz dele e sentindo-se sufocar ainda mais.

Encarou o ruivo sentado ao seu lado, num misto de confusão e estranheza.

...O que estava fazendo ali?

...O que estavam fazendo ali?

Axel tinha que trabalhar. Provavelmente, deixou o serviço. Será que não teria problemas com seu chefe? Ah. Mas sequer sabia onde o ruivo trabalhava; se trabalhava.

Ele não sabia. Jamais saberia quanto trabalho estava dando para todos...

Era isso. Seria sempre isso.

- Desculpe mesmo... – insistiu. Porque, pateticamente, isso era a única coisa que podia fazer.

- Nah, já chega. – revirou os olhos. – Já não basta vir arrumadinho desse jeito, agora quer dar uma de “engomadinho”? Corta essa, Demy-kins! – bufou.

- ...Sim. – assentiu.

Respirando profundamente, como que buscando paciência para lidar com o idiota, Axel mostrou-lhe duas latas de alguma bebida que Demyx obviamente não conhecia. Estendeu à ele uma delas.

- ...O que é isso? – perguntou o moreno.

- É Ayataka[51], já que o pobre Demy-kins ainda é menor de idade. – ele respondeu, com um sorriso jocoso nos lábios.

- ...Você também é. – devolveu, encarando-o feio.

Axel deu de ombros. – Dentro de menos de um mês, não mais. E você ainda nem fez vinte anos.

...Vinte anos. “Quatro mãos cheias”.

Demyx chegara aos dezoito, uma idade sagrada para todo adolescente que sonha em ser independente, e não vira nada de novo, senão a confirmação de seus deveres. Axel também dissera ter passado por isso, quando eles falaram a respeito. E, agora, ele faria vinte e um anos. Deixaria os “teens” para sempre para ser um “jovem adulto”.

...Vinte e um anos.

O moreno passou a mão pelo cabelo rebelde, delicadamente, e encarou seu chá gelado. Subitamente, percebeu que não conseguiria colocar nada no estômago.

Não conseguia mais sequer respirar. Algo o pressionava naquele sofá com tamanha força que lhe assustou. Parecia até mesmo algum tolo possuído por demônios naqueles filmes trash de terror.

- Então... Seu aniversário é daqui a menos de um mês, Axel...? – perguntou.

Sem entender, o outro ergueu a sobrancelha. – Sim, é sim, mas...

- Ah. Que bom. – sorriu. – Preciso te dar um presente. Afinal, acho que somos amigos, não é? Amigos presenteiam uns aos outros nessas datas...

Os olhos esmeraldinos de Axel arregalaram-se, surpresos, ao verem aquele pequeno brilho nascer dos orbes azuis.

- Ei, Dem...

- ...O que será que eu vou te dar de aniversário?

E Demyx viu a primeira das lágrimas cair no chão imaculadamente limpo.

 

~x~x~x~

 

Engraçado. Mesmo lembrando-se assim, não sentia vontade de chorar.

Muito engraçado. Ou, talvez, apenas fosse triste mesmo.

Meneando a cabeça, Demyx decidiu deixar aquelas lembranças que, no passado, soavam-lhe “trágicas”, mas que agora eram apenas “nostálgicas”, para trás. Suspirou, abrindo a porta do banheiro.

O ar fresco do quarto, contrastando com o bafo quente do banho, fez sua pele desnuda da cintura para cima (bom, não havia por que colocar uma camisa quando nem estava pensando – ao menos no momento – em sair, correto?) arrepiar-se. Jogou a toalha por sobre os ombros e, em seguida, seu próprio corpo na cama.

Zexion, que olhara o garoto de soslaio e depois voltara à calma leitura de seu livro, assustou-se com aquele peso repentino em seu colo.

Respirou, então, profundamente. – Saia.

- Nhaum! – o moreno respondeu, abraçando o mais velho.

Outro suspiro.

- Estou ocupado. Saia.

- Como ousa, seu cretino? – beicinho. – Não acredito que tenha dito isso logo para mim! E você está lendo.

- ...“” lendo? Eu vou ignorar essa frase. – e insistiu. – Agora, saia.

Demyx sorriu. Mesmo sentindo a força do outro tentar empurrá-lo para lá, seus braços foram mais fortes ao envolverem a cintura do outro, no claro desejo de não deixar-se sair dali. Escondendo o rosto no abdômen de Zexion, ele sacudiu a cabeça com mais vigor do que quis ter imprimido na ação.

- Deixa eu ficar aqui, ao menos, então... – bem, já que nenhum dos dois parecia disposto a desistir, era hora do plano B. – Prometo que fico bem quietinho!~

O outro continuou desconfiado.

- Sério, prometo! – insistiu.

- ...Muito bem. Vou lhe dar essa chance.

- Obrigado, Zexy.

Fechando os olhos e escondendo o rosto contra a camisa entreaberta do rapaz de cabelos azulados, Demyx tentou não concentrar-se no latejar irritante de sua cabeça, nem naquela estranha dança contorcionista que fazia seu estômago (ora, ora. Faziam horas que não ficava enjoado. Já estava até estranhando a falta daquele sintoma!).

Respirou profundamente, e o cheiro de sua pele se fez presente. Sentiu-se quase como uma criança; estava em paz. Teria jogado todos seus planos idiotas e loucos de viajar para todos os cantos do mundo para o alto por aquele ínfimo momento. Ou melhor, por momentos como aquele. Pela simples repetição deles, ou pelo seu guardar na memória, tudo aquilo parecia estranhamente valer a pena.

E, então, lembrou-se do porquê de estar ali. De porquê ambos estarem naquele quarto, naquela situação.

...Teve vontade de pedir desculpas. Mas o outro não entenderia.

E Demyx não sabia quando iria querer que ele compreendesse o real sentido de toda sua culpa.

Provavelmente apertou-o forte demais, naquela sua vontade inútil de parar o tempo e poder ficar ali até quando lhe fosse permitido, pois Zexion desviou sua atenção do livro para olhar o garoto.

- O que foi? – perguntou-lhe.

- Ah... Desculpe. – e sorriu. “Desculpas” de novo. – Eu o machuquei...?

- Não é isso. – suspirou. – Aconteceu algo?

- Hã? – piscou. E desconversou em seguida: – Não, não, eu estou ótimo! De onde tirou essa idéia, Zexy?

Aparentemente a mentira não colara, pois o rapaz de olhos azuis continuou encarando o outro deitado em seu colo, deixando o livro, com a página devidamente marcada, descansar ao lado deles, então.

- ...Então, por que está assim?

- Sério, estou bem. – sorriu.

- Você é idiota demais para seu próprio bem, Demyx. – Zexion replicou. – Posso ver de longe que não está “bem”.

O moreno assentiu. Jamais ia conseguir vencer Zexion, afinal.

- Deve ser fome... – mas podia, ao menos, empatar.

Ele revirou os olhos. – Não duvido.

Levantando-se da cama num salto (e percebendo que aquele fora um erro estúpido, já que sua cabeça reclamara na mesma hora), Demyx olhou para os lados, procurando a camisa que devia ter ficado no chão em algum momento da tarde, quando ele tentara vesti-la (e nunca chegou a fazer isso).

Ao achá-la, em meio à bagunça de outras roupas, jogou-a na cama e encarou o companheiro de fugas, animado.

- Vamos ao McDonnald’s que tem aqui perto? Eu estou mesmo com fome... – pediu.

Num misto que variava entre o abismado e o confuso, Zexion ergueu a sobrancelha, tentando achar a lógica em toda aquela conversa.

- ...Vai trocar o restaurante por McDonnald’s?

- Não, não! – riu. – Não esqueci do nosso jantar, mas eu realmente estou com vontade de comer um Mc. Só unzinho! Até deixo você pegar um daqueles McCapuccino ou sei lá o quê, sem reclamar!

Zexion sentiu-se subitamente voltando no tempo, para quando era obrigado a andar para lá e para cá com o idiota (não era há tantos anos assim, mas parecia...).

- Você quer mesmo ir lá? – gota.

- Agora mesmo! – assentiu.

Ele suspirou, de repente exausto. E de repente, frustrado.

Outra vez, aquele sorriso absurdamente falso. Não. Para quem não o conhecesse, seria fácil confundir aquele com um genuíno riso, uma alegria estonteante; mas para Zexion, não era mais um segredo. Aquilo era tão falso quanto qualquer noção de família que ele tivera em sua vida. Tão falso quanto aquela situação.

A mão rumou, inconsciente, para o rosto pálido do moreno. Sua pele estava morna. Sempre estava assim, como se uma estranha e quase imperceptível camada de frio de morte estivesse-o cobrindo para sempre. Mesmo quando ele estava debaixo de si, bagunçando os lençóis outrora imaculadamente brancos e perfeitos, havia sempre aquela sensação gelada a separá-los.

Zexion sentiu o rosto contrair-se em uma cólera passiva, uma raiva muda, silenciosa. O corpo retesou-se sozinho.

- O que foi? – e, então, Demyx perguntou-lhe. Com aquele seu sorriso tolo...

- Nada. – e ele, como sempre, só podia responder assim.

Porque sempre haveria aquela camada de mentiras geladas. Aquelas que nenhum dos dois ousava atravessar.

- Já que você quer tanto assim, vamos, Demyx. – entregou-se.

Os olhos do outro brilharam. – Mesmo?!

- Sim. Vou me vestir decentemente e podemos ir. – disse-lhe. – Faça o mesmo.

Demyx abraçou-o...

- Obrigado, Zexy.

...Como um condenado à forca abraça o último familiar. Como se aquele fosse o ápice da existência. Com uma gratidão tão inútil que o mortificou.

Zexion fechou os olhos, sentindo algo em si desmoronar inexplicavelmente.

Sem nenhum som, deixou seu rosto esconder-se na curva do pescoço do mais novo. Sentiu-se a criatura mais patética de todas, mas não conseguiu mover-se. Nem quando Demyx o abraçara. Nem quando ele retribuíra.

- ...De nada. – sussurrou. Tolamente.

 

~x~x~x~

 

Havia tanto que queria perguntar àquele garoto...

(E – aliás – ainda surpreendia-se consigo próprio, de certa forma, por estar ligando para a idade dele – não que isso não fosse certo! – e não para seu sexo. Para alguém que, até então, achava estar plenamente adequado às normas aceitas da sociedade, aquilo ainda era um... Choque? Não. Talvez uma palavra um pouco mais suave. Enfim, era assustador...).

Queria perguntar-lhe, assim, olhando naqueles orbes tão azuis o que fazia estes mesmos olhos nublarem-se em melancolia repentina. Uma tristeza que sumia tão rapidamente quanto aparecia, mas que, sem dúvidas, esteve lá.

Queria saber por que a pele de Demyx, mesmo quando estava quente, parecia mesmo assim sempre tão fria. Como se houvesse uma camada permanente de medo e tensão revestindo-o, transformando-o friamente.

...Queria perguntar-lhe o que ele tinha. Se podia fazer algo.

...Se iriam, afinal – diabos! – continuarem daquele jeito. Juntos.

Não se importava se fosse fugindo. Zexion assustou-se com o próprio rumo dos pensamentos, mas constatou que, afinal, há muito já não estava necessariamente preocupando-se com este fato. Era uma constante com a qual já se acostumara, assim como a mera presença do moreno.

E, então, queria perguntar, quando já não tivesse mais idéia do que mais poderia saber, se Demyx, afinal, tinha respostas para tudo isso.

Provavelmente, não teria. Era um imbecil.

Desviou o olhar, olhando através da porta de vidro. Ele ainda estava na fila, esperando, com aquele seu sorriso tolo. Zexion preferira ficar do lado de fora. Talvez porque já estivesse o suficiente sufocado em si próprio; não precisava estar assim também lá dentro.

A fila estava grande. Perguntava-se quando viria seu café...

(Ou se Demyx de fato ia pegar o mesmo. Maldito pirralho que implicava com as coisas mais inúteis!).

Suspirou. Se ele comesse demais, não ia conseguir jantar mais tarde.

(Apesar de que perguntava-se se iria mesmo ter vontade de sair para o dito restaurante. Aquele sorriso o mortificara de verdade – claro, ninguém jamais ficaria sabendo disso).

Virou-se para encarar o mais novo lá dentro de novo, checando a quantas andava a fila do caixa. Continuava a mesma coisa.

- Ei.

Quando iria voltar o pescoço para a posição normal, aquela voz fez Zexion, então, parar até mesmo de respirar. Retesou o corpo do jeito que estava.

Não soube se deveria encarar quem sabia que era ou se devia continuar daquele jeito. Não sabia. Tudo ao seu redor desapareceu, esfumaçou-se como brumas de inverno, enquanto milhões de pensamentos formigavam seu cérebro.

- Veja só quem encontramos, Xaldin.

Mas nada daquilo comparava-se àquela sensação de metal gelado em suas costas. Aquela que a mente de Zexion não precisou de mais do que milésimos de segundo para decodificar e temer.

- Foi mais fácil do que imaginei! – riu o homem. – Muito bem, rapaz. Hora de darmos um passeio.

E, engatilhando a arma que mantinha ali discretamente (graças ao seu casaco especialmente comprado para ocasiões do tipo), Xigbar virou-se, juntamente com sua nova vítima.

- Afinal, tem muitas respostas a nos dar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

[50] Faixa 3 do CD “Drammatica”, da OST de Kingdom Hearts 358/2 Days.

[51] Produzida pela companhia japonesa de Coca-Cola, é um chá verde gelado, vendido normalmente nas máquinas de bebidas.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Gris" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.