Elétrica escrita por Tenebris


Capítulo 6
Lágrimas




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– Nossa, porque tá todo arrumadinho assim? - Scott se olhava em frente ao espelho de seu quarto, que estava com a porta aberta, permitindo assim que eu entrasse.

– Tenho um encontro. - ele abriu um largo sorriso enquanto apanhava um pequeno vidro de perfume e borrifava algumas vezes no pescoço e na camisa. - Adivinha com quem?

– Ah, bom, eu não sei, talvez... Victoria? - sorri irônicamente enquanto ele ajeitava a gola da camiseta polo verde escura, que realçava seus olhos.

– Na mosca. Acredita que foi ela quem me chamou pra sair? Aquela gata me chamou pra sair?

– Claro que acredito. De nós dois, quem conquista as garotas é você. Mas... ela sabe que você tem tipo, quinze anos? Quer dizer, ela deve ser uma universitária e tal.

– Claro que não, irmãozinho. Ela acha que eu tenho tipo uns dezoito. Agora, vou esperar ela vir aqui me chamar.

Não consegui conter uma gargalhada.

– Você tem dezoito anos e é ela quem vai te levar?

– É ela que tem carro. - as bochechas dele coraram levemente.

– Você tem dezoito anos e é ela quem tem carro? - comecei a rir novamente. - Ela não achou meio estranho? Tipo, era pra você ter carro há uns dois anos.

– Cale a boca. Quem é que tá saindo com uma super gata mesmo? - ele colocou as mãos em torno da boca em forma de concha. - Uhhhhh, sou eu né espertalhão?

Revirei os olhos e nós dois descemos as escadas, chegando ao fim dela bem na hora que o som da campainha soou pela casa.

– Pai, tô indo! Até depois! - Scott gritou para meu pai que estava na cozinha. Ele gritou algo de volta, algo como "tudo bem" ou sei lá. Me sentei no sofá enquanto meu irmão abria a porta, revelando uma das cenas mais bonitas que eu já havia visto na vida: Victoria.

Ela estava absurdamente linda vestindo aquele vestido vermelho justo e curto e botas de salto e cano alto pretas. Um grosso cinto de mesma cor dos sapatos apertava sua cintura, realçando ainda mais aquelas belas curvas. Os cabelos negros levemente enrolados cascateavam pelas costas e colo. Não usava quase nenhuma maquiagem, e eu podia sentir o cheiro do perfume indescritívelmente delicioso que ela exalava. E, cara, naquele momento, eu senti uma inveja muito grande de Scott.

Victoria sorriu e me cumprimentou com a cabeça. Os dois trocaram algumas palavras e sorrisos, até que meu irmão acena para mim e fecha a porta atrás dos dois.

Que ótimo. Enquanto meu irmão estava saindo com uma menina linda, eu ficaria o resto da noite na droga do meu quarto lendo HQ's ou assistindo algum anime.

E vendo aquela cena ali na porta, eu não pude deixar de pensar na hipótese de ser eu e Ariana algum dia. Será que isso iria acontecer?

Respirei fundo e já estava chegando à escada quando o telefone toca, e eu volto para atendê-lo.

– Alô? - digo com desânimo.

– Brandon? Me encontra no parquinho daqui cinco minutos.

E desligou. Subi correndo para colocar meu tênis.

Era Ariana. Como ela conseguiu meu telefone eu não sabia; eu só sabia que iria para lá imediatamente.

–----------

– Eu disse cinco minutos. - uma voz mal-humorada grunhiu de cima da casinha-escorregador de madeira. Subi pela escadinha de tábuas e me sentei ao lado dela.

– Desculpe. Eu meio que me perdi. - ajeito os óculos.

– Eu já devia esperar. Você se perdeu na minha casa. - a luz que nos iluminava era apenas a fraca luz da lua, mas mesmo assim eu consegui vê-la revirando os olhos, mas rindo logo em seguida. E eu ri também.

– Porque me chamou aqui? - disse depois de alguns segundos que os risos já haviam cessado.

– Sei lá, eu só queria sair um pouco daquela casa. Eu não estou muito bem hoje.

– Aconteceu algo? - mordi o lábio levemente.

– Não. Não hoje. Sabe Brandon, eu tava pensando no que me disse ontem. E... eu quero me prometa uma coisa. - ela se virou de frente para mim.

– Diga.

– Prometa que não vai mais se menosprezar. Prometa.

Eu não sabia o que dizer em relação à aquilo. Tudo que eu consegui fazer foi confirmar com a cabeça.

– Ótimo. Brandon, você não pode se importar com o que as pessoas vão achar da sua aparência. Se as garotas que você conhece são idiotas o suficiente para te desprezar por causa de como você é por fora, então deixe para lá, porque elas certamente não valem a pena.

Suspirei.

– Para você é fácil falar. Você é bonita.

Aquilo pareceu atingí-la. Eu senti a súbita mudança no tom de sua voz: de calmo para rude e frio.

– Sou? Eu sou agora, Brandon. E sabe, eu passei a minha vida me importando se eu era bonita ou não, pra perceber agora que ser bonito é fácil. Qualquer um pode ser bonito com um pouco de dinheiro e de tempo. Agora sabe o que não é fácil? Ter caráter. Conhecimento, cultura, inteligência, conteúdo Brandon. O mundo está cheio de rostinhos bonitos, porém totalmente vazios. E o mundo não precisa de mais disso. Eu estou cansada disso. Eu não era bonita até meus, sei lá, dezessete anos. Tenho dezenove. Aconteceram tantas coisas na minha vida para que eu parasse de me importar com a minha aparência, mas mesmo assim essa... essa praga não desistia de mim. Até o dia em que... bom, até o dia do acidente dos meus pais.

Eu gelei. Os pais dela sofreram um acidente? Eu tentava imaginar como seria para mim se meus pais sofressem um acidente.

– Sabe porque eu moro nessa casa, Brandon? Sabe porque eu moro com Scarlett e Jack? Eu não sou universitária. Vou prestar vestibular no começo do ano que vem. Tenho dezenove anos, eu sou a mais nova daquela casa. Todos tem mais que vinte e estão cursando algo já. Menos eu. E porque eu fico lá?

– Porque você é amiga de Scarlett. - respondo, ajeitando meus óculos. Aquela conversa já estava começando a me deixar nervoso. Eu estava prevendo um longo desabafo.

– Bom, Scarlett ser minha amiga foi um dos motivos pelos quais eu tive uma casa para morar. Depois que meus pais morreram naquele acidente. - ela abaixou a cabeça. - Eu tinha dezessete anos, foi dois meses antes do meu aniversário de dezoito. Eu não tinha nenhum parente próximo, então até eles arrumarem um que ganhasse minha guarda legal, eu já teria dezoito e isso não importaria mais. Scarlett tinha dezenove, e Jack vinte e dois. Eles já estavam construindo a casa havia um tempo, mas ela não estava totalmente pronta, embora eles já morassem aqui. Naquele mesmo dia, Scarlett me trouxe para cá com as minhas coisas. E... bom, eu fico aqui. Simplesmente isso. Eu tenho dinheiro, eu poderia sair daqui e alugar um apartamento, ou sei lá, mas... Jack não quer que eu vá. E eu também não sei se eu quero ir. Jack sempre foi como o irmão mais velho que eu nunca tive. Eu acho que ele tem medo de algo ruim me acontecer se eu for embora. Algo como... o que aconteceu antes. Não, não o acidente, se é o que está pensando, mas é algo tão ruim quanto. Sabe Brandon... muitas coisas ruins acontecem na minha vida. Sempre aconteceram, e estão sempre acontecendo. É por isso que eu sou rude com as pessoas que conheço: eu só não quero mais arrumar coisas ruins para mim. Porque, bem ou mal, as coisas ruins vem com as pessoas. Se não existirem pessoas, não existirão coisas ruins. Você me entende?

Caramba, além de perder os pais num acidente, mais coisas ruins tinham acontecido à ela?

– Ahn sim, eu entendo. Mas... o que poderia ser tão ruim quanto... você sabe...

Ela suspirou.

– Vamos começar do começo. Eu nunca tive amigos até meu primeiro ano do ensino médio. Eu era a esquisita, ninguém queria andar comigo ou chegar perto de mim. Eu sempre era agredida por algumas meninas da escola; física e verbalmente.

– Mas e Scarlett? E Jack? - lanço à ela um olhar confuso.

– Eu vou chegar lá. Por favor não me interrompa mais. - ela fechou os olhos por alguns instantes e eu assenti. - Me chamavam de apelidos odiosos, mas o pior deles era Ariana Red. Meu sobrenome é Gray, então eles faziam esse trocadilho ridículo com as cores, porque uma vez eu estava almoçando macarronada e derrubei molho em cima da minha calça branca. Eu tentei, mas não conseguia limpar, então eu andei o resto do dia com uma mancha vermelha na frente da minha calça, e todo mundo começou a falar que eu estava menstruada. Foi tão horrível. - a voz dela estava começando a vacilar, como se ela fosse desabar em lágrimas a cada instante. - Eu estava na sétima série. Mas isso não foi nem de longe o pior que me aconteceu. Eu nunca fui bonita, Bran, e eu sofri muito por causa disso. Mas depois que eu acabei com a aparência que sempre tinha desejado, eu vi que aquilo não era nada. Era inútil. Bom, mas vamos lá.

A história dela era tão deprimente que eu quase não me importei de ela ter me chamado de Bran de novo.

– Eu estava no primeiro ano. Sabe como é difícil o primeiro do ensino médio, ainda mais para a "Ariana Red". - ela imitou aspas com as mãos, revirando os olhos. - E mais ou menos no meio do ano, Fred Givens me chamou para sair. Ele era aquele esteriótipo sabe? Bonitão, jogador de futebol, todas as meninas dariam qualquer coisa para ficar com ele. E ele tinha me chamado para sair.

"Bom, tudo bem. É claro que eu aceitei, eu nunca tinha tido um encontro antes. Na verdade, nunca tinha chegado perto de um garoto antes. Ele passou na minha casa para me buscar. Ele estava no terceiro ano.

"Ele me levou até uma espécie de sítio, eu não sabia onde estávamos. Ele disse que era uma festa na casa dos amigos dele. Nós saímos do carro, mas tudo estava quieto demais para ser uma festa. Eu comecei a sentir medo, mas entrei na casa assim mesmo; ainda mais porque eu não tinha pra onde ir. Tinham uns... cinco ou seis amigos dele na casa. Todos da escola. E eles me... eles...

Ariana começou a chorar. A dor era palpável em sua voz, e eu podia ver o trauma refletido em cada lágrima iluminada pela luz da lua que caía de seus olhos azuis, que agora estavam se tornando acinzentados; perderam a eletricidade que tinham sempre. E aquilo partiu meu coração em mil pedaços. Eu já tinha entendido perfeitamente o que aqueles monstros tinham feito com ela. Senti vontade de abraçá-la, mas ela ainda não tinha terminado:

– Bom, você já entendeu. Seis caras. Uma menina fraca e indefesa. Eles me jogaram na caçamba de uma caminhonete e simplesmente me deixaram em um lugar da estrada, que era cercada por mato. Eu ainda me lembro de Fred sorrindo maldosamente para mim, enquanto dizia antes de ir embora: "Te vejo na escola amanhã".

"Eu estava perdida. Suja. Violada. Machucada. Traumatizada. Tremendo. Eu comecei a andar pela estrada sem rumo, até que a luz de faróis chegando me cegaram. Eu senti o pânico me invadindo, eu achei que eram eles quem estavam voltando, mas...

"Era Jack. Eu não o conhecia, óbvio. Ele me pegou no colo e me deitou gentilmente no banco de trás, dizendo que tudo ficaria bem, que eu estava com ele, que nada de ruim iria acontecer comigo a partir dali. Eu lembro que segurei o pulso dele desesperadamente antes que ele pudesse fechar a porta e murmurei alguma coisa. Eu não lembro o que foi, mas o que veio a seguir eu jamais esqueci: o sorriso mais sincero que Jack já tinha me dado na vida.

"Ele me levou para a casa dele, que por Deus, estava vazia. Não queria que ninguém me visse daquele jeito. Ele me deixou tomar banho e também me emprestou algumas roupas da irmã mais velha dele. E a partir daquele dia, era ele quem me levava e buscava na escola todos os dias, sem exceção. Ele se tornou o irmão mais velho que eu jamais tive. Ele era tudo para mim.

"Eu nunca contei à minha mãe sobre o estupro. Ela morreu sem saber disso. As únicas pessoas no mundo que sabem são Scarlett, Jack e...

– Eu. - murmurei.

– Sim. Você. Brandon, você deve ser alguma coisa muito especial, sabia?

– E porque? - ajeito os óculos. Ela havia parado de chorar.

– Porque você me viu chorar duas vezes em menos de uma semana. Porque, por motivos desconhecidos, eu senti que deveria te contar sobre a minha vida. Que, por algum motivo, toda vez que eu olho pra esses seus olhos cor de âmbar, eu sinto como se já te conhecesse há anos. Scarlett só me viu chorar uma vez, assim como Jack. E você, que eu mal conheço, já me viu duas vezes em três dias apenas. Isso não pode ser alguma coisa irrelevante.

Eu sorri.

– Acho que tem razão.

Ela sorriu de volta, mesmo com o rosto ainda molhado pelas lágrimas recentes.

– Mas agora fale você. Quero saber um pouco mais da sua vida, agora que você já sabe as piores coisas sobre mim.

Em toda aquela conversa com Ariana, eu não me sentia mais atraído pela aparência dela. Eu não conseguia ver a Ariana que eu conheci naquele dia no quintal.

Eu só conseguia ver a garota por quem eu estava profundamente apaixonado.


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