Lua escrita por asuoS sucraM


Capítulo 1
Capítulo único (será mesmo?)


Notas iniciais do capítulo

Este não é bem um livro, mas uma crônica que, creio eu, será o meu ponta pé para realmente criar uma história maior e com vários capítulos.
O meu maior (mas não único) objetivo é mostrar, através dessas poucas palavras, a luta diária por parte de quem busca igualdade e reconhecimento, seja por parte de gênero ou qualquer outra forma de diferenciação entre nós, seres humanos que, no fim, não nos diferencia em nada. Somos iguais e essa é a mais irrefutável verdade.
Bem, espero que gostem...



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Ainda éramos tenras crianças quando se mudou para a mesma rua em que eu morava. Seu nome era Aline, mas o odiava, pois dizia soar muito “frágil e vulnerável”. Então, apelidara a si própria de Lua. Certa vez perguntei o porquê de ter escolhido esse apelido como nome ao invés de outro qualquer.
-Olhe para a Lua, Allan. Veja quantas crateras há em sua superfície, fruto de choques com asteróides durante milhões e milhões de anos. E mesmo assim, lá está ela, brilhando e fascinando nossos olhares com suas fases e eclipses, além de definir o movimento dos mares, o qual nada tem a ver com “Poseidon”. É assim que eu me vejo. Da mesma forma que a Lua, meu corpo e minha alma carregam marcas de “asteróides” do machismo e da opressão do dia-a-dia e ainda sim estou firme e forte, definindo os sete mares da minha própria vida, sem precisar da ajuda de nenhum “deus prepotente” que auto intitule-se superior somente por ser homem.
Foi através de Lua que conheci uma nova concepção a respeito do que realmente venha a ser uma mulher. Enquanto todas as garotas da rua estavam ocupadas demais com suas roupas e maquiagens ou brincando de casinha e boneca, lá estava ela, jogando bola conosco e envolvendo-se em brigas e discussões por causa de gols e faltas mal marcadas e, às vezes, sequer marcadas. Alguns garotos eram contra o fato de uma garota jogar bola, pois afirmavam que “futebol era coisa de menino”, mas ela não se importava, pelo contrário, jogava muito bem - melhor do que muitos garotos da rua- e tratava de fazer muitos gols para calar a boca dos preconceituosos. Desde criança Lua já tinha um espírito justiceiro, de quem lutaria com unhas e dentes por respeito e igualdade. Tinha uma personalidade forte e marcante. Eu sempre a observava, admirando-a e amando-a em silêncio.
Levava uma vida nada fácil. Filha de pais separados, ela morava somente com o pai, o Sr. Alfredo, que a agredia constantemente. Diante das responsabilidades e da violência que sofria dentro da própria casa, amadurecera muito rápido. Como morava ao lado da sua casa, muitas vezes eu ouvia os gritos e berros do seu pai, seguido de sons de socos e tapas. Lua sempre corria para o quintal e passava boa parte da noite lá, aos prantos. De cima do muro eu a observava. Suas lágrimas iam cessando e dando lugar a um brilho indescritível, enquanto ela olhava para a Lua brilhando no céu.
Com o tempo, fomos nos tornando muito mais que simples vizinhos, nos tornamos amigos. Íamos à escola e voltávamos juntos, passávamos o intervalo conversando e, às vezes, até fazíamos dupla de estudo, sempre na minha casa, pois o Sr. Alfredo não gostava de visitas e sempre a culpava por tudo de errado que houvesse em sua casa. Aos poucos, fui descobrindo coisas a seu respeito, como o fato de que seus pais haviam se separado por que brigavam muito e sua mãe, uma dona de casa que se reservava a passar o dia cuidando da filha e dos deveres de casa, sofria muitas agressões de seu parceiro. Também fui conhecendo seus primeiros ideais feministas.
Não teve festa de 15 anos, tampouco fazia questão disso. Gostava de coisas simples e mais profundas. Tanto que sua maior felicidade foi, ao completar 16 anos, poder votar. Disse-me ela no dia do seu aniversário:
-A partir de hoje, não sou mais uma “marionete em potencial”. De agora em diante, posso ajudar a escolher nossos representantes. Quero fazer a melhor escolha possível, e que esta faça toda a diferença ao futuro da sociedade na qual estou inserida de forma ativa, não passiva!
Eu sempre a imitava fazendo esse discurso, o que nos fazia-nos cair na gargalhada. Porém, havia uma seriedade em tudo aquilo. Suas promessas pareciam estar escritas nas estrelas, pois tudo o que me dizia viria a se concretizar. Mas ações antecedem reações, e esse fato mudaria todo o curso da história. Da nossa história.
Com o passar dos anos, fui absorvendo o mesmo ar revolucionário que ela respirava. Engajamo-nos em campanhas de conscientização e atividades comunitárias aos necessitados.
-Não adianta tentar conscientizar as mulheres de que elas devem ter voz, se não lutarmos contra a pobreza e a miséria que silenciam suas expectativas de uma vida melhor e sem violência. Dizia ela.
Começamos a adentrar em uma realidade bem mais complexa do que imaginávamos. Víamos mulheres agredidas por seus parceiros e até mesmo por seus familiares, na maioria das vezes homens. O pior é que muitas delas, além de sofrerem violências físicas, sofriam psicológicas, como ameaças, o que levava a muitas delas a terem medo de denunciar ou manifestar-se contra tais atos. Descobrimos também que, em alguns casos, a própria justiça era ineficaz, pois muitas mulheres perdiam a confiança na efetivação da aplicação das leis, silenciando-se. Lua me dizia que até mesmo na historiografia o sexo feminino é visto em segundo plano, uma vez que sempre estudávamos nossos “heróis”, sendo que não somente eles fizeram a diferença, mas também muitas mulheres, que lutaram e fizeram a sua árdua parte, mesmo que de forma tímida.
Lua não tinha religião definida. Acreditava que elas separavam os homens e rebaixavam as mulheres.
-Diga-me Allan, por que teve de ser uma mulher a provar do fruto proibido? Tudo bem, eu entendo que isso é uma metáfora, mas por que Eva e não Adão? E por que nós, mulheres de gerações posteriores à dela, temos que pagar pelo seu “erro” e sermos submissas aos homens? Poxa, é a mulher que carrega no ventre uma vida. É ela que passa meses com uma criança dentro de si e ainda suporta a dor do parto. E o que ganhamos? O apelido de “sexo frágil”.
Dizia também:
-A ciência explica que esse androcentrismo nasceu ainda no período Paleolítico, quando o homem foi percebendo que a sua forma física robusta e rústica era ideal para a caça e os trabalhos pesados, enquanto para a mulher, era unicamente reservada a criação dos filhos e a coleta de alimentos. E, por mais que já tenhamos passado dessa era, ainda há pessoas (digo “pessoas”, por que há até mulheres) com essa “mentalidade paleolítica”.
Lua conseguia ampliar ou até mudar a concepção de qualquer um que a ouvisse, sendo mulher ou não. Muitas mulheres começaram a entender a mensagem que queria passar e, aos poucos, foram manifestando-se contra a opressão que sofriam, saindo de casa em busca de um verdadeiro lar ou denunciando seus agressores.
Dizia:
-Não quero incentivar nenhuma “revolução feminista”, mas sim uma “evolução feminista”, visando equiparar os nossos valores aos masculinos.
Porém, seus ideais feministas começaram a desagradar muita gente. Homens que não aceitavam ver suas mulheres e filhas ganharem autonomia e autoconfiança começaram a vê-la como uma ameaça ao seu posto de liderança e absolutismo. Então, Lua começou a ser perseguida como uma feiticeira em meio à inquisição. Começou a receber ameaças e ofensas. Diziam que se ela não parasse, ia se arrepender daquilo. Por um momento, senti em mim um espírito covarde em preferir que parasse de manifestar-se antes que o pior a acontecesse. Ela, no entanto, não sentia medo; tampouco se recuava diante das ofensas e ameaças.
-Não existe vitória sem batalhas, Allan. E, se para vencer essa luta seja preciso derramar sangue, que seja o meu a ser derramado.
-Não diga uma coisa dessas, Lua.
-Sim, eu digo. E digo mais. Esta semana partirei. Não sei para onde, muito menos quando voltarei, mas sinto que não conseguirei atingir meus propósitos se continuar aqui. Preciso ampliar minha visão de mundo e minha concepção a respeito do que fazer para mudar essa triste realidade.
-Aline, uma andorinha só não faz verão. Você se pressiona demais em fazer algo para mudar a realidade, mas acaba esquecendo que não só depende de você.
-Odeio esse nome Allan, e você sabe disso. Mas você está certo. Uma andorinha só não faz verão. Mas acha mesmo que o verão se fará sozinho? Precisamos de andorinhas que tomem por si só a iniciativa de voar rumo à liberdade. Se uma ficar esperando a iniciativa da outra, ninguém voará. Todas ficaram na expectativa e o verão não será feito. Voarei Allan, e voarei alto e longe.
-Mas Lua...
-Sim?!
-Eu amo você e sempre a amei, desde quando a vi pela primeira vez. Tudo que eu sempre quis foi estar com você.
-Também amo você, Allan. E sempre estivemos juntos, esse tempo todo, não lembra?! Foi você quem esteve comigo quando mais precisei. Quando o mundo tirava as minhas forças, era em sua presença e companheirismo que eu me sustentava e as carregava. E sou muito grata por tudo isso. Mesmo.
Beijamos-nos. Um beijo longo e indescritível. Passamos um bom tempo olhando um ao outro. O seu olhar havia adentrado em mim de tal forma que eu podia sentir que ela estava lendo os meus pensamentos. Depois de uma longa pausa, tornou a falar.
-Como eu havia dito, sou muito grata a você. Mas tenho um caminho a ser trilhado e tenho certeza que não conseguirei trilhá-lo se continuar aqui. E você, mais do que ninguém, sabe o quanto eu esperei por esse momento. Não agüento mais essa opressão. Do mundo, até suporto, mas dentro de minha própria casa? Oprimida por meu próprio pai? Não consigo suportar, não mais. E espero que entenda.
Novamente nos beijamos. Um beijo tão longo e maravilhoso quanto o primeiro. Então Lua retirou-se para sua casa.
Não a vi mais desde então.
Confesso que por meses chorei a sua ausência. Eu sentia algo único quando estava com ela. Lua me mostrou que iniciativa e determinação são indispensáveis nessa busca incansável pela igualdade de gêneros e que essa concepção machista e androcênica devem ser abandonadas, esquecidas e superadas.
De meses em meses recebo cartas dela, sempre me dizendo que está bem e que está progredindo, mas ainda há muito a ser feito e realizado. A sua casa é o mundo, nunca está em um lugar fixo. Não sei se sente saudades, mas sei que onde quer que ela esteja eu continuarei amando-a.
Aprendi que toda mulher é cheia de crateras da vida e que, assim como a Lua, elas possuem o seu brilho e beleza. Em meio a tanto machismo e androcentrismo, são enormes as dificuldades encontradas pelo sexo feminino para exercer seu papel na sociedade, mas há homens e mulheres dispostos a mudar essa realidade.


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