Ange ou Fantôme escrita por Maiumy hime
Silas acordara de modo diferente aquela madrugada: não eram a prisão ou a morte de sua mãe que atormentavam seu sono. Dessa vez, tudo que desejava era ter continuado dormindo mas a vida parecia mais uma vez brincar com seus sentimentos.
"Não pense nisso, Deus está com você."
Ele se levantou e olhou para o reflexo no espelho, encontrando-se do mesmo jeito que estava antes de dormir.
"Por que, então, me sinto tão diferente?"
Retirou a túnica e ajoelhou-se completamente nu, admirando o crucifixo onde Jesus se mostrava agonizando em dor pela humanidade.
"A dor é boa."
Fechou os olhos e bateu com força o chicote nas costas, mas em vez dos gemidos abafados que costumava ouvir saindo da própria boca a melodia de uma única palavra ecoou em sua mente.
-Anjo.
-O que?
O jovem albino estava sentado no habitual beco, escondido o suficiente para que os outros mendigos não viessem perturbá-lo. Olhou para o lado e viu que, dessa vez, havia uma pessoa sentada ali com ele. Mais especificamente, uma garota.
-Você fala francês, não é?
Ele balançou a cabeça afirmativamente.
-Por que está sozinho aqui?
-Eles não me deixam ficar em outro lugar. Me chamam de fantasma.
A garota deu um leve empurrão no ombro dele, mas nem chegou a mover seu corpo excessivamente grande.
-Eu não acho que você seja um fantasma, ainda posso tocá-lo...se fosse um fantasma minha mão o atravessaria.
Uma expressão confusa surgiu no rosto claro do mendigo.
-Sabe, antes de começarem a me chamar de sorcière eu ia em igrejas e ficava olhando aqueles anjos pintados no teto...eles se parecem com você. Qual o seu nome?
A cabeça dele se moveu em negação, não fazia ideia do próprio nome.
-Sorcière?
-É, por causa do meu cabelo ruivo. Eles dizem que o diabo me enviou para fazer mal a todos e coisas assim...
-Eles são os mendigos?
-Não. Os padres mais velhos.
De volta ao quarto, Silas bateu novamente nas próprias costas, com mais força dessa vez. Porém, a dor não conseguia afastar as memórias distantes.
-Me solta!
O albino ouvira sua companheira de algumas semanas gritando e se apressou para ver o que estava acontecendo. Quando chegou no beco, a ruiva de nome Gabrielle estava sendo segurada por um homem enquanto o outro corria as mãos por seu corpo. Sem pensar duas vezes, ele se atirou contra o homem que a tocava e quebrou seu pescoço, aproveitando a distração causada tanto pela garota quanto pela bebida. Ambos cheiravam a álcool como seu pai, o que deixava o jovem com ainda mais ódio. Trocou socos com o homem e conseguiu derrubá-lo no chão, pretendendo dar a ele um destino semelhante ao do seu companheiro, mas não houve tempo. A polícia chegou e afastou o fantasma de sua amiga bruxa, mesmo sob os gritos de protesto dela. Porém, o que realmente derrotou-o foi ver aquele bêbado deplorável enterrando um canivete no pescoço da ruiva. Só ele viu. Só ele ouviu. Como se fosse um fantasma, espreitando o que ninguém mais consegue sem poder se comunicar com as outras pessoas.
Nunca antes Silas havia chorado durante sua mortificação corporal, mas ele sabia que não era a dor física que traziam lágrimas aos seus olhos vermelhos. Era a lembrança persistente de seus tempos como fantasma, antes do bispo Aringarosa e antes do Opus Dei. Precisava esquecer. Queria esquecer. Mas como uma punição por seus pecados, Deus mantinha a memória bem viva.
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Essas são as únicas coisas presentes na mente de Silas agora. Nem mesmo a dor e a culpa por ter matado seu salvador, o bispo Aringarosa, atormentam a calmaria em seu estranho leito de morte. O sol machuca seus olhos sensíveis, mas ele sabe que não durará muito.
"A dor é boa", lembra a si mesmo.
Não sabe se irá ao paraíso ou ao inferno em seguida, mas com certeza morrer vale a pena se fosse apenas aquilo que presencia no momento.
"Você não é um fantasma. É um anjo. E anjos ficam no céu."
A voz estranhamente infantil e aguda de Gabrielle é a única coisa que ouve e aquilo parece ainda melhor que o som da harpa dos anjos. Em meio aos delírios finais de sua vida, Silas finalmente consegue se lembrar do nome que a mãe havia escolhido para ele: Beni. Abençoado. Depois, ele já não se lembra do que aconteceu.
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Obs: sorcière é bruxa em francês (segundo o google translater) e eu decidi deixar assim porque sei lá, é mais bonitinho e.e Além disso o nome "Gabrielle" é porque, segundo o google, o nome significa "mulher forte de Deus" e Beni significa "abençoado".