O Andarilho escrita por Murilo Wendler


Capítulo 3
Um Despertar na Inexistência




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“Como era fácil tirar proveito da tendência de uma pessoa à auto destruição; como era simples empurrá-las para a inexistência, depois recuar, dar ombros e concordar que este fora o resultado inevitável de uma vida caótica e catastrófica.” (O Chamado do Cuco).

Abri meus olhos, o Sol da tarde queimou minha visão, fechei-os rapidamente e coloquei minha mão sobre eles, para assim abri-los aos poucos. Eu estava deitado no meio da calçada toda quebrada pela explosão do metrô, sentei e olhei ao redor, toda a rua estava destruída.

Levantei para ter um campo de visão melhor, havia perdido meu óculos escuro em meio as pedras e destroços. A rua estava totalmente cinza e com alguns focos de chamas, grandes crateras haviam se formado pelo chão, dando para ver sua estrutura. Não havia sinal de nenhuma pessoa na rua, não viva pelo menos, tinha vários corpos carbonizados e esmagados por pedras. Uma visão horrível, senti enjoo e uma vontade de vomitar subiu até a garganta e a sensação de queimação veio com tudo. Virei e fechei os olhos para tentar controlar a ânsia.

Escutei os sons de sirenes ao longe, tentei andar em direção contrária à explosão me desviando das pedras, mas estava tonto, andava meio cambaleando. Talvez meu Cerebelo estivesse tentando se adaptar ainda e manter meu equilíbrio.

Cheguei a um ponto onde estava reunida uma multidão de pessoas curiosas querendo saber da explosão e vários policias tentando contê-las. Passei dos lados dos policias e devido a confusão me ignoraram ou não me viram.

– [...] e nossos helicópteros já estão sobrevoando o local. – disse uma repórter, que estava cobrindo as informações da explosão – O prefeito já está voltando para a cidade e falará sobre o ocorrido. Mas a certeza que temos é a partir de uma suposta carta que está circulando pela Internet assinada por aqueles que se auto intitulam de “V.C.G.”, onde eles ameaçam todo o governo, dizendo que bombas foram espalhadas por todas as linhas de metrô e que serão acionadas aos poucos caso suas reivindicações e melhorias para a população não sejam feitas, senão eles irão fazer o mundo esquecer do atentado de 11 de setembro nos Estados no Unidos. Mais informações, eu te chamo, Luís. – E a conexão foi quebrada. Observei a repórter sentar na guia da calçada e beber água.

“Caramba! A coisa é mais séria do que eu pensava, parece que essa ‘guerra fria civil’ finalmente saiu de ameaças. Como será que o governo irá reagir?”. Pensei comigo mesmo. As coisas estavam ficando feias a cada minuto.

– Isso foi só o começo, ficou sabendo daquela carta divulgada hoje de manhã? – Disse uma mulher loira com roupa social.

– Fiquei sim. E a explosão ocorreu apenas nessa parte, então terá mais explosão pela frente. Estou ficando assustada com esse cidade, vou conversar com o Jura para sairmos dessa cidade o mais rápido possível. – Uma outra mulher de social, assim como a outra não deu para ver seu rosto.

– Mas e o trabalho?

– Prefiro perder o trabalho do que a vida! – Respondeu a outra mulher.

Confesso que tive vontade de rir daquilo.

Dei alguns passos e a vi novamente. A menina de mais cedo, ela estava sentada na guia da calçada com as pernas cruzadas, então me aproximei.

Não sei por que, eu geralmente não tomo a iniciativa, mas sentei ao seu lado e ela me olhou indiferente.

– Pois não? – Perguntou. Ela tinha uma voz forte e aparentemente irônica. Seus olhos eram da cor do mel, sério, lindos demais.

Coração disparou, não sabia o que falar. Não que eu estivesse sentindo alguma coisa por ela, mas eu sou assim.

– Eu te vi hoje mais cedo aqui e te achei interessante.

Ela arqueou a sobrancelha esquerda perfeitamente desenhada em seu rosto.

– Não, não é isso. – Tentei me explicar. – É que você sumiu do nada em meio à multidão que estava vendo o acidente que havia ocorrido.

– Sei. – E ficou claro a ironia em sua voz. Ela fez uma careta e segurou o queixo com a mão.

– O que foi? – Perguntei tentando parecer indiferente.

– Meu queixo, ele tá doendo muito. Não só o queixo, às vezes tenho umas dores estranhas por todo o rosto e nos braços e pernas. – Fechou os olhos, seu corpo tremeu e depois parou. – Pronto, agora melhorou.

– Tem certeza? Deveria procurar um médico.

– Não se preocupa, essas dores vem e vão. Isso começou hoje, então de boa. – Respondeu se levantando.

– Me chamo Bernardo. – Apresentei-me também levantando.

– Annie.

– Estava fazendo o que aqui, Annie?

– Não me lembro como cheguei aqui. Só sei que estava indo para o shopping com meu namorado e vim parar aqui.

É claro que uma garota assim não poderia estar solteira. Ela era linda demais, uma das mais bonitas que já vi na vida, superando até minha última ficante.

Agora mais perto, podia ver os detalhes de Annie. Seu cabelo era de um castanho escuro e quase até a cintura, poucas mechas claras se destacavam em sua cabeleira. Ela tinha um nariz fino e alongado com um piercing preto, casando perfeitamente com sua pequena boca e seus grandes dentes brancos. Sua pele era muito clara e dava contraste com seus cabelos e longos cílios. O corpo era fascinante, não era perfeito, era magro; seu decote não era muito grande, mas estava à mostra em sua camiseta preta apertada, dando seus devidos contornos de seu tronco; seu shorts jeans curto... como eu fico doido com alguma menina assim. Ela não usava maquiagem, apenas uma sombra preta nos olhos, afinal, para que maquiagem quando já tem uma beleza natural? Ela era a personificação da menina ideal para mim, pelo menos na aparência, não serei hipócrita.

Um cachorro se aproximou de mim, era um vira-lata muito bonito por sinal. Ele parou e ficou observando a Annie e a mim, tentei me aproximar e ele recuou mostrando seus dentes. Annie deu uma risada e o cachorro começou a latir sem parar.

– Tudo bem então, cachorro. – Eu disse e me afastei.

– Ele não vai nos fazer mal. – Annie bateu o pé no chão e o cachorro saiu correndo assustado. Ela começou a dar uma risada sádica e a fiquei olhando.

De repente ela parou de rir e ficou séria, com uma simples expressão de tristeza começou a olhar para os lados.

– O que está procurando? – Perguntei curioso.

– Meu namorado. – Respondeu. – Ele deveria estar aqui também, não sei por que ele não está.

– Onde ele foi?

Annie me olhou com uma expressão estranha, suspirou e disse:

– Tenho 18 anos, não terminei o Ensino Médio. Sempre fui a ovelha negra da família, ser a primeira filha de um casal de classe média alta é complicado, principalmente depois que perdi meu “trono” com o nascimento do minha irmã mais nova. Ela tem uma espécie de deformação no rosto e todos as atenções são sempre para ela. Comecei a me perder a partir daí. – Ela deu uma pausa. Eu estava ouvindo atentamente e não entendia por que ela estava me contando aquilo. – Com 14 anos comecei a ficar com meninos e meninas; as pessoas da minha escola me odiavam e sempre me excluíam, fingia que não ligava, mas chegava em casa e chorava enquanto escrevia textos no Tumblr.

– Unicórnios. – Brinquei, ela me olhou sério.

– Encontrei boas pessoas no Tumblr, me apaixonei por um menino virtualmente e encontrei uma grande amizade virtual. Aquele que eu me apaixonei, apenas me usava e eu não escutava meu amigo. Ele tentava me ajudar, mas eu nem dava bola, deixei ele de lado e me perdia na paixão. Então comecei a namorar com esse menino, ele era 3 anos mais velho. Ligava a cam e ficava de sutiã para ele, foi aí que comecei minha vida e abandonei meu amigo. Meu namorado e eu fazíamos planos de nos encontrar, ele mora em Brasília, tinha vários sonhos com ele. Eu era inocente e acreditava em tudo o que ele dizia, eu me abria e ele fingia. Até que um dia ele entrou na faculdade e me esqueceu completamente. Depois eu simplesmente pirei, comecei a ir nas festas, e comecei a beber e a fumar com 15 anos.

Ambulâncias passaram na rua, indo em direção ao local da explosão.

– Eu virei praticamente uma puta. Ficava no fundão da sala com os meninos e fazia coisas com eles, ia para a casa de cada um em dias diferentes. – Ela falava aquilo com tanta confiança e eu sentia um peso se esvaindo dela, conforme cada declaração ia saindo.

– Mas por que tão cedo?

– Só queria ser alguém, já que não conseguir ser em casa, pelo menos fora eu era reconhecida, da pior maneira, mas era. Depois de um tempo eu parei com isso e comecei a namorar com o meu atual, ele tem a minha idade e estamos juntos há um ano. Foi a partir desse momento que eu me encontrei, comecei a fumar maconha e a beber mais do que o normal. Só queria ser feliz ao lado dele. Meus pais o odiavam, expulsaram ele de casa muitas vezes e tentaram me manter em casa, mas não percebiam que isso só piorava. Abandonei a escola por causa dele, meus pais quiseram me mandar para fora do país, para uma escola de crianças problemáticas, peguei minhas coisas e fugi.

– Eu nunca entendi o motivo de adolescentes beberem e fumarem, sério. Para mim é algo tão inútil e acho que só diminui o tempo de vida da pessoa. – Disse humildemente.

– Pra você, seu virgem.

– Eu não sou virgem. – Retruquei e segurei minha vontade de xingá-la de algo muito feio.

– Tanto faz. – E sacudiu os ombros.

– "Se deseja ser feliz, não pense no que está por vir nem naquilo sobre o qual você não tem controle. Pense no agora.”

– Poético. – Ela disse.

– Retirado de um livro, Brisingr.

– Óbvio, você não tem capacidade de falar algo assim por si próprio. – Sustentei seu olhar frio e pensei: Uma menina tão linda e perdida.

O mundo de hoje tem várias Annie’s de todas as idades por aí, é realmente muito triste. Tenho quase 18 anos e não vejo como drogas podem acrescentar algo à minha vida. Claro, isso é o que eu penso para mim. Eu fico triste quando vejo adolescentes com seus 14 e 15 anos entrando nesse mundo; existem diversas formas de diversão nessa idade e não necessariamente drogas e bebidas. Um vez experimentei maconha de um primo meu, apenas por curiosidade e odiei, nunca mais coloco um cigarro na boca, seja o normal ou maconha. Eu fui pela curiosidade, sei que muitos usam pelo mesmo motivo ou sucumbem à pressão da roda de amigos, ou até mesmo para chamar atenção, triste isso.

Cada um faz o que quer, já irei morrer cedo devido a poluição dessa cidade, então pra que adiantar isso fumando?

– E você? – Annie me tirou do transe.

– O que tem?

– Conte um pouco sobre você. – Sentou na calçada.

– Como eu disse, sou Bernardo, tenho 17 anos.

– Não estamos nos Alcoólicos Anônimos. – Ela me interrompeu.

– Então você quer que eu fale o quê? – Perguntei irritado.

Ela me olhou com um sorriso estranho no rosto e percebi o quanto ela me irritava. Sentia atração pela sua aparência, mas repugnava seu jeito.

– Eu não sei o que falar, não sou uma pessoa interessante e nem tenho uma vida muito legal para ser contada. Não tenho amigos para compartilhar coisas, sou muito fechado e não gosto de ficar falando o que eu sinto para as pessoas, principalmente aqueles com quem eu tenho algum receio. Já decepcionei muito as pessoas, porque elas criaram grandes expectativas a meu respeito; nunca tive culpa disso, sempre disse que não era perfeito. – Cansei de ficar em pé e sentei ao lado de Annie – Uma vez confiei cegamente em um amigo que eu considerava pra caramba, mas isso não era recíproco, então me afastei e vi a falta que eu não fazia. Foi a partir desse momento que eu comecei a mudar meu jeito. Aprendi que às vezes é preciso ser sozinho, as melhores caminhadas são aquelas com você mesmo. Estar rodeado de pessoas e elas te considerarem, não quer dizer que eu as considero como amigas. Hoje em dia eu sei que nunca tive com quem compartilhar segredos, decisões, experiências.

– Nossa, que coisa triste hein. – Annie simulou que estava dormindo.

– Você que quis saber um pouco de mim, mano. – Minha raiva ia aumentando.

É o meu defeito, sabe, a raiva. É como se existisse uma fera aprisionada dentro de mim, pronta para sair e atacar a todos. Uma vez não consegui controlar e essa fera saiu, tive um acesso de raiva tão forte que estourei minha mão direita na parede da cozinha.

Quando eu começo a ficar nervoso, tudo me irrita e a raiva começa a acordar dentro de mim. Nada que eu faça funciona para tentar amenizá-la.

– Não faz nada da vida?

– Eu não trabalho, apenas estudo para o vestibular.

– Para?

– Jornalismo e estou com medo de não passar.

Ela ficou séria.

– Você não vai passar. – Disse.

Fechei minha mão e apertei forte meus dedos, sentindo eles serem esmagados pela força que eu colocava.

– Quem é você para falar uma merda dessas? – Respondi tentando controlar a raiva.

– Não é isso, Bernardo, não te conheço para falar que não tem capacidade para passar. É só que, – ela respirou fundo e desviou o olhar – você nem ao menos poderá fazer a prova.

– E por quê?

– Porque você morreu.

Eu comecei a dar risada.

– Você é louca. Acho que as drogas apodreceram seu cérebro.

– Não, cara, estou falando sério. – Ela se levantou. – Eu também morri.

Não aguentei e comecei novamente a dar risada.

– O acidente de mais cedo. Olhe ao se redor, não reconhece? Foi aqui que eu morri, meu namorado e eu estávamos andando de moto e batemos naquele negócio de concreto.

– Beleza. – Fiz joinha com a mão. – Tenho que ir, vê se procura um psiquiatra, ou para de se drogar.

– PARA DE SER IDIOTA! – Ela gritou comigo. – Presta atenção.

Ela foi na direção das pessoas curiosas, que ainda estavam tentando saber sobre a explosão, e começou a falar com elas, só que foi ignorada. Depois ela deu a volta e passou pelos policias e não houve resistência por parte deles.

Fiquei parado olhando vidrado, enquanto ela voltava.

– Está vendo? Nós dois morremos.

– Impossível!

– Eu também achava isso, até ver meu corpo estirado e deformado no chão.

– O corpo! – Falei e sai correndo em direção ao local da explosão.

– O que... Idiota! – Ela saiu atrás de mim.

Passei por diversos corpos estirados no chão e alguns bombeiros colocando alguns corpos nas macas. A quantidade de gente morta era assustador, não tinha percebido isso quando passei por ali, as pedras camuflaram bem.

Até que cheguei onde eu havia acordado, olhei ao redor e fiquei estupefato com o que vi. Lá estava meu corpo caído no chão, só que não completo. Tinha uma grande pedra no lugar aonde deveria estar minha cabeça.

Ajoelhei e comecei a chorar. Annie me alcançou e colocou a mão no meu ombro.

– Então foi assim que morri. Durante a explosão...

– Sssh. Não precisa mais falar, Bernardo. – Ela se ajoelhou ao meu lado e me abraçou, foi nesse momento que eu desabei mais ainda e para piorar, minha cabeça doía muito.

Parecia que eu estava perdendo o ar de tanto que eu chorava, meus soluços eram incontroláveis. Tantos anos sem chorar e já nem me lembrava mais como era essa sensação.

Foi nesse momento que eu vi o quanto eu chorava feio.


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Notas finais do capítulo

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