Contos de Redenção- Prólogo escrita por Tiagobm


Capítulo 3
Vida Nas Ruas


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Eu e o homem nos encaramos após nosso curto diálogo que viria a mudar minha vida. Até que ele deu o que parecia ser um pequeno sorriso e jogou um mandrack de bronze dizendo:

–Você é uma criança interessante. Tente não morrer.

Não se preocupe, vou explicar esse pequeno roubo que chamamos de economia em Torreno:

A moeda corrente em Torreno é divida em dois tipos, os mandracks e os tendracks. Os mandracks são usados pelas camadas populares, ou a ralé, como os nobres gostam de nos chamar. Um mandrack de prata vale dez vezes mais que um de bronze, e um mandrack de ouro vale dez de prata.

A nobreza utiliza os tendracks. Eles são basicamente o mesmo que os mandracks, mas cada moeda vale duas vezes o valor de seu respectivo metal utilizado pelo resto da população.

Você deve estar se perguntando no que estava pensando ou no quão bêbado estava o maldito que criou isso. Não estava presente na ocasião, mas imagino que tenha sido assim:

“Oh Robert, estou tão podre de rica que não posso mais me limpar depois de ir no banheiro com moedas de prata, só de ouro. Mas, acho que não é o suficiente”

“Julieta, por que não dobramos o nosso dinheiro? Assim ficaríamos ainda mais ricos!”

“Mas, e o povo?”

Após isso ambos deveriam então cair em gargalhada, afinal, que idiota se preocuparia com o povo?

Surpreso? Angustiado? Com raiva? Acostume-se meu caro, é assim que o mundo é por baixo dos panos.

Tendo isso entendido, voltemos à história. A primeira coisa que fiz foi rastejar desesperadamente até a moeda que representava uma sopa velha, fria e de origem duvidosa. Ora vamos, é mais do que havia comido há muito tempo, não me julgue.

O tempo que eu demorei a pegar a moeda foi apenas de um instante, mas, quando olhei para onde o misterioso senhor não estava mais comigo, já não havia ninguém lá.

Este curto encontro acendeu uma chama de esperança que já havia sem extinguido em mim. Se aquele homem havia visto algo de interessante em mim, outros haveriam de ver também, certo? Errado.

Acontece que esperei ansiosamente por qualquer tipo de ajuda vinda de qualquer tipo de pessoa. Mas recebia apenas alguns olhares penosos e culpados de gente que fingia não me ver.

Não culpo ninguém. Mal há dinheiro para se comer hoje em dia, que dirá para dar a desconhecidos na rua. Parte disso vem dessa economia estúpida estipulada pelo governo. Mas, como já disse antes, não o odeio, nem um pouco.

Eu já pensava até em tentar achar o quartel da guarda e aceitar as consequências de minha fuga, sejam elas quais fossem. Isto se eles reconhecessem minha aparência suja e desleixada formada por três semanas sem higiene e roupas limpas. Mas o medo, como geralmente ocorre com as crianças, falou mais alto que a razão.

Entretanto, de certa forma, após aquele encontro eu havia traçado um objetivo. Se conseguisse me alimentar melhor e parecer uma criança saudável e promissora, alguém poderia ter pena e vir me ajudar.

Por isso, obriguei-me a tentar melhorar minhas habilidades de sobrevivência executando roubos mais ambiciosos e difíceis para melhorar minha alimentação.

Isso resultou, no início, em apenas surras piores e mais demoradas. Mas, depois de algum tempo, eu já conseguia furtar algumas coisas com mais facilidade. Quanto mais eu roubava, menos eu me importava com as consequências, em geral o senso de certo ou errado das crianças é deturbado. Quem nunca roubou um brinquedo de um colega quando era menor?

Mesmo depois de ter perdido minhas esperanças de ser ajudado por uma alma bondosa, continuei com meus treinos. Eu brincava de fugir de vendedores irritados, roubar moedas de esnobes que passavam pela rua e, principalmente, tentar ficar vivo.

E foi em um desses furtos, semanas depois, no qual minha estupidez infantil comprometeu minha vida. De novo. Acostume-se, meu potencial de fazer inconsequências perigosas é, no mínimo, acima da média.

Era uma daquelas tardes quentes e o calor parecia fluir pelo meu corpo inteiro. Eu me encontrava atrás de uma barraca de vendas fechada observando meu alvo favorito: a banca de frutas do senhor Tordez.

O pobre homem vivia resmungado sobre como os estoques estavam acabando rápido e eu vivia rindo e roubando mais. Ele seguia à risca uma rotina bem simples. Quando ele saía, eu fazia a festa.

Esperei a hora diária de senhor Tordez verificar os estoques que ficavam em um galpão na parte sul da cidade. Assim que ele fechou a entrada da banca com um cadeado e foi em direção ao galpão, eu saí detrás da barraca e fui até a banca trancada.

A tenda ficava no canto esquerdo de uma espécie de pátio quadrado cortado por ruas nas laterais com barracas e bancas pelos cantos onde geralmente ficavam os comerciantes mais ricos. No centro, todas as ruas da cidade se encontravam em um monumento dos fundadores de Hoder.

Mas, quando cheguei à barraca, algo muito curioso chamou minha atenção na silhueta do velho senhor, havia algo brilhando em seu cinto.

Mais curioso que faminto, decidi ir olhar mais de perto o que era aquele misterioso objeto. Alternei entre corridas e caminhadas para impedir a desconfiança de qualquer guarda da feira até que alcancei o velho comerciante.

Estando perto do homem, me deslumbrei ao ver o brilho do cristal decágono com um brilho azulado preso por uma argola ao cinto do homem. A pedra era, no mínimo, linda, devia valer muito dinheiro. O suficiente para encher minha barriga por semanas.

Ao ver aquela joia brilhando como se houvesse uma espécie de energia à sua volta, só consegui pensar em pegá-la para mim. Era óbvio que eu sabia que não tinha capacidade de roubar de alguém algo de seu próprio cinto. Mas, eu estava tão confiante, já fazia doze dias que ninguém me pegava.

Sem parar arquitetar um plano, eu simplesmente pus-me a acompanhar o homem à distância até que chegamos a um pequeno espaço entre os amontoados de casas medianas, que estava deserto.

Após certificar-me de que não estava sendo visto. Aproximei-me e compassei minha passada com a sua, alinhei nossas respirações, como uma sombra, eu fazia de mim mesmo a imagem silenciosa de Tordez.

A cada passo que nós dávamos em conjunto, eu dava um pequeno tapa com a ponta dos dedos na argola do cinto do senhor. Em cada tapa sutil e imperceptível a joia se deslocava um pouco na argola, ficando cada vez mais frouxa. Tive sorte de ele ser velho, seus sentidos já não deviam ser os mesmo de outrora.

Ao passarmos por uma pequena rua, onde já avistávamos o galpão, ele parou e, de repente virou, para trás, havia percebido minha artimanha. Mas já era tarde de mais, tudo o que tive de fazer foi agarrar a argola e correr. Era mais que óbvio que o senhor não conseguiria me alcançar.

O que eu não esperava, era que o lojista fosse retirar uma adaga do bolso e atira-la com precisão em minha coxa esquerda. Junto com a dor a dor agonizante de ter minha coxa perfurada, comecei a sentir o sangue quente deslizar por minha perna.

Geralmente culpo meus fracassos dessa época ao meu pensamento infantil, mas agora eu acho que até você, caro leitor, deve concordar comigo: Um velho idoso, carregando facas nos bolsos, é de surpreender a qualquer um.

Se bem que, pensando nisso agora, anos mais tarde, imagino que alguém que vive em Hoder, uma cidade cheia de ladrões e pivetes, por tanto tempo já devia ter muita experiência com encrenca e suas próprias formas de defender-se dela. Com a idade, vem a sabedoria. Mas, deixemos meus devaneios de lado, de volta à história.

Eu escutei as passadas firmes do homem correndo a trote lento até minha direção. E, mesmo um senhor de idade pode alcançar uma criança mancando com a perna machucada.

Não tinha tempo para pensar, muito menos para agir com um bom plano. Eu precisava de uma distração, um contratempo, qualquer coisa. Quando, de repente, pensei em um improviso.

Estávamos quase chegando de volta à feira, quando eu já escutava sua respiração, não havia mais tempo. Mas, a primeira e maior barraca que assinalava o início da feira, a ferraria, já estava a alguns metros à distância.

Conhecido pelos seus fregueses ricos, o ferreiro possuía a barraca mais bonita da cidade. Era feita de um tecido vinho que se alongava até formar uma longa aba de alguns metros de altura presa nos prédios em volta.

Assim que a mão suada do velho tocou em meu ombro, nós chegamos à loja. Só tive tempo de ver de relance à cara atônita do ferreiro enquanto eu cortava as cordas que fixavam a enorme aba da barra na parede do pátio com a faca que estava presa em minha coxa.

Não tive tempo de fazer mais nada. Tordez havia me segurado com mãos firmes e eu não conseguia me soltar. Mas o estrago já estava feito, as abas enormes da barraca caíram por cima de nós, senti seu aperto afrouxar pelo susto.

Embaixo do tecido que tapava a luz do Sol, tudo se resumia a uma luta desesperada por liberdade dentro da tênue escuridão vinho que nos envolvia.

Enquanto tentava escapar de dentro daquela prisão vermelha, dei de cara com o velho, ele estava nas abas comigo é claro. Como em um reflexo rápido, virei-me para a outra direção e dei-lhe um coice com a perna boa. Engatinhei em frenesi até finalmente conseguir me livrar dos tecidos.

Em meio à confusão de gente indo ver o que havia acontecido e pessoas tentando tirar o velho debaixo das abas da barraca, ninguém me viu escapando sutilmente pela direita. Só consegui mancar até uma viela vazia antes de desmaiar de dor.

Mas, não pense que isso significou vitória para mim. Por causa de minha prepotência e arrogância, agora eu estava sem condições de roubar nada e havia adquirido uma ferida profunda sem nenhum tratamento.

Os dias que se seguiram foram duros. Além de encarar a fome e não poder fugir da chuva, vento, o frio da noite solitária e quaisquer outros problemas climáticos da cidade, ainda tinha que suportar a dor da ferida que parecia estar se infeccionando.

Já encarava minha vida como encerrada, contava os momentos até a minha morte e passava dias chorando e chamando tia Lucia em vão.

Até que, um dia, enquanto me encontrava deitado, delirando por comida e conforto, vi uma figura se aproximando. Não me surpreendi ao ver o homem que havia me dado uma moeda há tanto tempo atrás. Para mim, não passava de outro delírio causado por meu estado deplorável.

Ignorei-o e continuei choramingando sozinho. Quando ele se agachou e tocou meu braço, arregalei meus olhos, era real. O homem sorria com uma pontada de pena mal disfarçada em seus olhos.

Ele disse enquanto me levantava e me encostava numa parede próxima para que eu pudesse me sentar :

–Sabia que você conseguiria!

Olhei para o homem confuso e perguntei:

–Do que você está falando?

–Você passou no meu pequeno teste.

Eu não fazia a menor ideia do que ele falava e a dor na minha coxa dificultava o meu pensamento.

–Teste? O que o senhor quer dizer?

Ele assumiu uma expressão de culpa e disse com seriedade:

–Não fique irritado, eu queria ajuda-lo, queria mesmo. Mas não temos espaço para qualquer um. Eu precisava saber que você seria um bom investimento, se não eles não me deixariam socorrê-lo. Mas, observando tudo pelo oque você passou sozinho, ninguém pode dizer que não tem valor.

Todas as minhas esperanças esquecidas retornaram a mim quase instantaneamente. E abri meu sorriso juvenil enquanto mais perguntas surgiam na minha cabeça:

–Mas, por que eu? Nós conversamos por apenas alguns instantes.

Ele sorriu pra mim, um sorriso acalorado, como quem parece estar se divertindo com a situação:

–Existem outras maneiras de se analisar uma pessoa além da conversa. E agora que você passou você está dentro.

–Dentro? -Meu sorriso cresceu ainda mais enquanto eu imaginava que ele diria algo como "dentro de minha família", como eu era ingênuo.

–Dentro da irmandade de ladrões, vadios, mercenários e afins. - Disse ele sorrindo.

Meu sorriso murchou na hora:

–Hã?!

–Bem-vindo à família!


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